Publicação de "O Processo" de Kafka

A grande obra de Franz Kafka coloca em conflito o poder da autoridade e sua legitimidade

Por
Lara Tannus
Data de Publicação

 

Publicado "O Processo" de Franz Kafka (Arte: Davi Morais)
O professor Daniel Puglia sobre a obra: “Talvez seja equivalente à importância das obras de Michelangelo para a pintura e a escultura ou dos quartetos de Beethoven para a música”.  (Arte: Davi Morais)


Uma coisa que anda nos assustando bastante é o quanto os problemas do passado vêm se tornando recorrentes na nossa sociedade. O Processo de Franz Kafka escrita no começo do século XX, não se exclui disso. “O Processo fica mais atual do que nunca”, analisa o professor Daniel Puglia, do Departamento de Letras Modernas da FFLCH USP.

O romance de Kafka, publicado no dia 26 de abril de 1925, conta a história de Josef K., um bancário que cumpria seu cargo de maneira exemplar e foi processado sem motivo algum, tornando assim a busca de sua inocência o foco da narrativa. 

Dentre as muitas críticas que podem ser apontadas no livro, o professor Daniel Puglia ressalta ilegitimidade do poder, em que a “autoridade e a hierarquia raramente conseguem demonstrar que são justificáveis”, explica. 

Além disso, o docente destaca a característica do narrador que sabe tanto quanto o leitor, em que Modesto Carone analisa como o “universo alienado em que todos nós vivemos”.

Confira abaixo a entrevista completa em que Daniel Puglia comenta a obra que se perpetuou como uma das mais grandiosas da literatura:

Serviço de Comunicação Social: Qual foi a importância da obra para a literatura e qual a principal crítica que ela traz?

Daniel Puglia: É difícil mensurar a relevância de um romance como O Processo para a literatura. Talvez seja equivalente à importância das obras de Michelangelo para a pintura e a escultura ou dos quartetos de Beethoven para a música. 

Kafka construiu um monumento literário. Antes ou depois dele existem poucas realizações comparáveis. Os caminhos de nossa espécie, nossos erros e nossas eventuais qualidades, aparecem de forma lúcida e contundente. 

Assim como no restante de sua obra, Kafka cria um romance que é um verdadeiro patrimônio da humanidade, com um detalhe primordial: é uma realização estética que jamais se coloca acima ou além das leitoras e dos leitores. Isso é raro. Um gesto de profunda crença democrática. 

Quando lemos O Processo, também é difícil destacar qual seria sua principal crítica. Um impulso fundamental que parece nortear a obra é a análise acerca do caráter ilegítimo do poder. 

Seu arbítrio e as múltiplas violências decorrentes dele são detalhados em vários episódios. O romance vai criando um caleidoscópio que oferece combinações reveladoras. A autoridade e a hierarquia raramente conseguem demonstrar que são justificáveis.

Isso em todos os níveis: no cotidiano, na relações afetivas, nas relações de trabalho e nas demais esferas de poder. Em dado momento, percebemos que estamos lendo uma narrativa de realismo implacável. Num certo sentido, e isso não é uma boa notícia, O Processo fica mais atual do que nunca.   

Serviço de Comunicação Social: Em O Processo, Kafka apresenta alguma novidade, seja na forma ou no conteúdo da obra que possa ter colaborado com um novo jeito de se fazer/pensar a literatura?

Daniel Puglia: Modesto Carone, tradutor e estudioso da obra de Kafka, aponta uma novidade fundamental, um tipo especial de narrador: "o narrador não consciente ou insciente, que sabe tanto quanto o personagem e o leitor, ou seja, nada ou quase nada, o que os leva, por uma mediação estritamente literária, ao universo alienado em que todos nós vivemos".

Isso pode gerar um certo incômodo na primeira leitura. Sistemas de poder autoritários costumam também criar súditos dóceis. Não é incomum que as artes e a literatura em sentido amplo também criem consumidores passivos. Nas obras de Kafka as instâncias de poder não são decifradas: nós leitores temos de trilhar a descoberta junto com os narradores.

O Processo ilustra de maneira notável esse veredicto sobre o universo alienado em que vivemos. 

Outro aspecto relevante no romance, algo também presente nas narrativas curtas, é a junção da forma e do conteúdo. 

Kafka desenvolveu uma prosa sóbria e límpida permeada por um tom de fina ironia. Imagens perturbadoras são definidas em frases precisas. Conteúdos filosóficos, políticos ou psicológicos são sintetizados em poucas sentenças: no detalhe de uma entonação ou na descrição de um objeto. 

O sarcasmo e um recorrente humor soturno dissecam situações estranhamente familiares. Fazendo isso, O Processo oferece um novo jeito de fazer e pensar a literatura. E, quem sabe, também um novo jeito de fazer e pensar a vida.