Ao introduzir o primeiro capítulo do seu célebre estudo sobre o “Atlântico Negro”, Paul Gilroy aponta para a urgência de ultrapassar a perspectiva nacionalista, para pensar a articulação e as interseções entre raça, cultura e nacionalidade – ao que acrescentamos também os gêneros sexuais e identitários, as orientações e as perspectivas das sexualidades dissidentes, certa maneira, alijadas, ainda, da condição de pertencimento e de representação de uma nacionalidade.
O pensador britânico sublinha pelo menos duas razões específicas: a primeira diz respeito à necessidade de reavaliar o destaque dado aos Estados-Nação como centros de unidade política, econômica e cultural; a segunda envolve a “popularidade trágica” das teorias sobre a pureza das culturas, construções muitas vezes amparadas em um território – o espaço dos Estados-Nação – específico, fechado por rígidas fronteiras.
Por outro lado, considerar a produção artística e literária a partir do espaço do Atlântico em Língua Portuguesa permitiria pensar as dinâmicas do poder, assim como as culturas disseminadas nas três margens do oceano, de forma transacional, evidenciando tanto a centralidade do colonialismo e da escravidão nos processos de formação desse espaço de fluxos, tanto a persistência dos paradigmas hegemônicos modernos nos trânsitos que atravessam a contemporaneidade global.
Tais deslocamentos, marcados pelas violências e pela exploração ̶ as da colonização e as da escravidão como pontos de partida para pensar o Atlântico, mas também as violências que afetam as experiências migrantes contemporâneas – participam da construção daquilo que Achille Mbembe, em “Afropolitanism” (2007), chamou de “culturas em colisão”, ou seja, culturas “tomadas pelo turbilhão das guerras, das invasões, das migrações, dos casamentos mistos, de religiões diversas que são apropriadas, de técnicas que são trocadas e de mercadorias que são vendidas”.
Destas “colisões” (in)surgem escritas que, ao encenarem a subalternidade/subalternização de determinadas experiências contemporâneas, colocam em xeque diferentes práticas excludentes, denunciando, ao mesmo tempo, as complexas dinâmicas de pertencimento e a identificação impossível com um Estado-Nação cujo (necro)poder está nas mãos de uma elite predatória, claramente expressa, mas não só, ainda hoje, na figura nortecêntrica do homem branco, protestante. Um Estado-Nação cujos atos se assentam na construção da diferença racializada, envolvendo todos aqueles sujeitos que Judith Butler e Gayatri Chakravorty Spivak, em Who sings the Nation-State: Language, Politics, Belonging (2007), consideram “sem estado”: os refugiados, os migrantes, assim como determinados grupos sociais subalternizados, cuja existência à margem nas dinâmicas nacionais aponta para a continuidade dos paradigmas coloniais e escravistas na contemporaneidade.
A partir dessas considerações, o número 40 da revista Via Atlântica convida para a publicação de artigos e ensaios que possibilitem uma reflexão de caráter interdisciplinar sobre:
A construção do espaço atlântico nas literaturas de língua portuguesa, como uma alternativa ao modelo hegemônico do Estado-Nação.
Literaturas Afro-brasileira e Afro-europeia em perspectiva comparatista.
Escritas em trânsitos, constituídas por múltiplas geografias.
Persistência dos paradigmas coloniais e escravistas na contemporaneidade global.
Modos e formas de insurgência e construção de identidades dissidentes na literatura e na arte contemporânea.
ORGANIZAÇÃO: Emerson da Cruz Inácio (Universidade de São Paulo), Luca Fazzini (Universidade de São Paulo) e Roberto Francavilla (Universidade de Gênova).
PRAZO PRORROGADO PARA ENVIO DE TRABALHOS: 30 de setembro de 2021.