Pesquisadores constroem ponte intercultural entre Brasil e Japão

Grupo de Estudos Arte Ásia da USP e Unifesp está completando dez anos. É o único no País que reúne professores, artistas e estudantes de pós do Brasil e exterior a se dedicar à pesquisa da arte e cultura através da publicação de livros, teses e dissertaçõ

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Redação*
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A relação do jovem estudante com o painel de Hiroshima e a bomba atômica no Museu Memorial da Paz
A relação do jovem estudante com o painel de Hiroshima e a bomba atômica no Museu Memorial da Paz - Foto: Atilio Avancini

Construir uma ponte cultural entre o Brasil e a Ásia é o desafio que o Grupo de Estudos Arte Ásia (GEAA) vem travando há dez anos. Com o registro junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), está vinculado ao Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ao Departamento de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e ao Centro de Estudos Japoneses (CEJ) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. E tem à frente professores, artistas e estudantes da pós-graduação de universidades do Brasil, Japão, França e outros países.

Nesta travessia, que continua em processo, o principal foco tem sido o Japão. Importante considerar que o Brasil abriga a maior população de origem japonesa, fora do seu país. Laços de amizade e muito trabalho que vêm desde 1908, são mais de 1,5 milhão de nipo-brasileiros. “O GEAA nasceu na Escola de Comunicações e Artes da USP, quando oito professores participaram de um convênio da USP com a Kyoto University of Foreign Studies (KUFS), realizado entre 2006 e 2015”, conta o professor Atilio Avancini, da ECA e vice-coordenador do GEAA. “Cada um dos docentes passou um ano no Japão desenvolvendo atividades pedagógicas para difundir a cultura brasileira e aprendendo, no dia a dia, a cultura japonesa.”

A experiência dos professores Avancini, Dilma de Melo Silva, Joel La Laina Sena, Célia de Moraes Dias, Marco Giannotti , José Luiz Proença, Felisberto da Costa e Ivan Siqueira originou um intercâmbio que resultou na vinda de estudantes e professores para pesquisar a arte, literatura, cinema, fotografia, música, dança e o cotidiano do Brasil. “Diante deste movimento, Marco Giannotti, também artista, decidiu iniciar um grupo que pudesse divulgar e agregar pesquisas, experiências e histórias”, observa Avancini.

Integrantes do GEAA no lançamento do recente livro “Ecos de Catástrofes” - Foto: Lucas Gibson
Integrantes do GEAA no lançamento do recente livro “Ecos de Catástrofes” - Foto: Lucas Gibson

O projeto foi desenvolvido em parceria com a professora Michiko Okano, especialista em cultura japonesa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também colaboradora na pós-graduação do Centro de Estudos Japoneses da USP e atual coordenadora do GEAA.  ”Hoje contamos com mais de 35 pesquisadores da USP, Unifesp, Universidade Federal Fluminense, Universidade Estadual Paulista, Universidade Anhembi Morumbi, Pontifícia Universidade Católica, Kyoto University, Tokyo University of Arts, Universidade Paris Diderot e pesquisadores independentes”, explica Okano.

O GEAA está aberto a todos os acadêmicos interessados: mestrandos, doutorandos e pesquisadores. “Não há requisito, mas pedimos uma carta de interesse para a análise da coordenação sobre a inclusão no grupo. Não abrimos para a graduação porque é um grupo de acadêmicos cadastrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq”, observa a coordenadora.

O professor e fotógrafo Joel La Laina Sene diante das paisagens de Kyoto - Foto: Joel La Laina Sene
O professor e fotógrafo Joel La Laina Sene diante das paisagens de Kyoto - Foto: Joel La Laina Sene
A cultura milenar sempre presente
A cultura milenar sempre presente - Foto: Joel La Laina Sene
Em busca de uma travessia intercultural
Em busca de uma travessia intercultural - Foto: Atilio Avancini
Nas festas de Kyoto, o respeito à tradição
Nas festas de Kyoto, o respeito à tradição - Foto: Atilio Avancini

A produção do GEAA, USP e Unifesp pode ser acompanhada na página do grupo. “Trata-se de um espaço repositório de teses e dissertações dos pesquisadores, principais verbetes da arte e cultura japonesa e suas publicações, que estão à disposição para download gratuito”, orienta Michiko Okano. “Fazemos reuniões mensais on-line, para facilitar a participação dos pesquisadores. Acreditamos que a maior repercussão das nossas atividades seja no desenvolvimento de conhecimento com os membros do grupo, a partir da pesquisa e riqueza das discussões desenvolvidas, pois é um dos raros, senão o único grupo de estudos acadêmicos da arte asiática, sobretudo a japonesa, no Brasil.”

O site traz informações sobre lançamentos de livros, peças de teatro, músicas, exposições e cursos. Também reúne notícias e reflexões sobre a arte em todos os tempos, como, por exemplo, o espetáculo de dança O Poço da Mulher Falcão, dirigida por Emilie Sugai (1965-) e Fabio Mazzoni, apresentada e reapresentada no decorrer deste ano no Sesc, que reuniu as culturas irlandesa, japonesa e brasileira. “O que é oriental, o que é ocidental? O que de oriental ficou no Ocidente e o que de ocidental resta após tanto Oriente? Já são perguntas para além das duas propostas acima e merecem ensaios longos, trabalhos acadêmicos aprofundados…“, pontua Gisele Wolkoff, poeta, tradutora, pesquisadora do GEAA e professora do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal Fluminense.

Há também as histórias dos pesquisadores no Japão, como as de Daniel Aleixo, ator-dançarino e bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e Cultura Japonesa da Universidade de São Paulo (USP). “A empreitada de um mês de intercâmbio de pesquisa no Japão não teria sido possível sem o aval da USP, em parceria com a Universidade de Kanagawa (KU), através do convênio com o Centro de Pesquisa de Documentos Não Escritos (Himoji Shiryō Kenkyū Center), o qual visitei sob a calorosa supervisão de Akane Narita”, relata. E escreve as suas impressões:

“Meus olhos tragaram a luz de suas ruas, seus letreiros e o semblante das pessoas. Retratos das caminhadas nas madrugadas chuvosas. O aroma era um amigo esquecido que me esperava mesmo sem dele me recordar. No meu ingênuo apego às imagens, havia esquecido que a saudade extrapola as raízes da mente, que imagina como uma máquina fotográfica ou como um decalque. A saudade, apesar de também se portar enquanto imagem, está longe de ser dela exclusiva. Diante do corredor entre o avião e o Aeroporto de Haneda, não custei muito a reaprender pelo olfato, em primazia, que as memórias também se abrigam nos demais sentidos…”

Publicações do GEAA
Conceitos Estéticos: do transtemporal ao espacial na arte japonesa Ecos de Catástrofes: a proposta é analisar e compreender o significado dos acontecimentos desastrosos naturais e aqueles causados pelo homem

A travessia do GEAA, em sua primeira década, é expressa em dois livros organizados por Atilio Avancini, Madalena Hashimoto Cordaro e Michiko Okano. Ambos reúnem artigos que trazem os estudos, reflexões e a arte dos pesquisadores. 

O primeiro livro, Conceitos Estéticos: do transtemporal ao espacial na arte japonesa, foi lançado em julho de 2021 com a parceria da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp. E o segundo, Ecos de Catástrofes, em novembro de 2023, publicação financiada pelo Programa de Apoio à Pós-Graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Proap-Capes). Os dois livros estão disponíveis para download gratuito.

A arte de Marco Giannotti abre o livro Conceitos Estéticos: do transtemporal ao espacial na arte japonesa. São quatro imagens da série Torii, palavra que simboliza a passagem para o sagrado. O artista e professor apreende o Japão através da transparência das cores nas colagens em papel artesanal japonês washi. E revive a sua estadia de um ano em Kyoto, no programa de intercâmbio da ECA-USP com a Kyoto University of Foreign Studies em 2011. Das práticas tradicionais como o sagrado da cerimônia do chá à síntese do haikai e à contemplação do Monte Fuji, há uma infinitude de horizontes que os artigos delineiam, sugerem e questionam.

Marco Giannotti
Marco Giannotti, série Torii 1, 2 e 3: Colagem com papel washi, 30x20 cm, 2011- Foto: Livro Ecos de catástrofes

Ecos de Catástrofes é resultado de um projeto de pesquisa iniciado em janeiro de 2020. Os organizadores Atilio Avancini, Madalena Hashimoto e Michiko Okano explicam que a meta é “estudar a arte de catástrofe, isto é, analisar e compreender o significado dos acontecimentos desastrosos de grandes proporções. Existem os desastres naturais, como terremoto, tsunami e maremoto, ou aqueles causados pelo homem, como é o caso da bomba atômica de Hiroshima e Nagasaki, e uma combinação dos dois, como o acidente nuclear de Fukushima e a epidemia do coronavírus.”

Ecos de Catástrofes desperta o leitor para a reflexão dos pesquisadores e delineia aspectos artísticos e culturais do Japão. “Em alguns casos, a arte pode ser a representação do horror, dor, estupor, desesperança, mas também pode refletir a ressignificação de valores, resistência crítica ou ressurgimento de sentimentos, como a solidariedade”, assinalam os organizadores.

Um ensaio visual da professora e artista Madalena Hashimoto Cordaro, da ECA-USP, abre o livro. São imagens que revelam a trajetória da cultura milenar do Japão. Cordaro conduz o leitor a descobrir o pensamento e a história entre camadas de sombra. A presença dos seres humanos é sutil e, ao mesmo tempo, determinada, “controlando árvores em chamas” ou se movimentando como em uma cena do teatro . Uma arte que revela o conhecimento da pesquisadora e professora sobre a poética e a história do Japão. E, ao mesmo tempo, questiona o contemporâneo e busca a luz sob os ecos de catástrofes.

Madalena Hashimoto: Hokusai nos trópicos 199 e 208
Madalena Hashimoto: Hokusai nos trópicos 199. 1994-2022. Colagem e têmpera sobre papel artesanal, com excerto de calendário Shikō Munakata (1903-1975) e Hokusai Manga volume 2 (1879). 29 × 22 cm (irregular). Monges budistas em prática de magias e preleções; Madalena Hashimoto: Hokusai nos trópicos 208. 1994-2022. Colagem de xilo e tinta sumi sobre papel artesanal, com excerto de Hokusai Manga volume 2 (1879).29 × 22 cm (irregular). Monge Kūkai 空海 (774-835), mais conhecido como Kōbō Daishi, fundador do budismo Shingon, autor de peças denō, retira-se no monte Takano e controla árvores em chamas - Foto: Livro Ecos de catástrofes
Madalena Hashimoto Cordaro: Hokusai nos trópicos 209, 217
Madalena Hashimoto Cordaro: Hokusai nos trópicos 209. 1994-2022. Colagem de xilogravura e tinta acrílica sobre papel artesanal, com excerto de calendário Shikō Munakata (1903-1975) e Hokusai Manga volume 2 (1879). 29 × 22 cm (irregular). Lendário monge Hōshōbō 法性坊, mestre de Michizane Sugawara (845-903), personagem de teatro Nō, que assusta na forma de relâmpago e apazigua o espírito do mestre zen Eihei Dōgen (1200-1253); Madalena Hashimoto: Hokusai nos trópicos 217. 1994-2022. Colagem e tinta sumi sobre papel artesanal, com excerto de Hokusai Manga volume 2 (1879). 29 × 22 cm (irregular). Handaka sonja 半託迦尊者 o 16o arhat recluso nas montanhas; tinha poderes mágicos como voar, atravessar rochas e portar tigelas, das quais escapam dragões - Foto: Livro Ecos de catástrofes

O professor e artista da ECA Luiz Claudio Mubarac encerra o livro com a série Sobre os corpos primevos e a mortalidade da alma. São fotos de guerra feitas em branco e preto selecionadas na internet, que Mubarac retrabalhou. E tecem um contraponto com o horror e a violência das imagens nas gravuras em vermelho esmaecido entre crânios e figuras em preto. A leitura do artista sugere o pânico, a dor, a destruição do ser humano e a “mortalidade da alma’’, como ele próprio define.

Luiz Claudio Mubarac
Luiz Claudio Mubarac: ponta-seca, água tinta e monotipias sobre pergaminho (acima). Fotografia feita com o celular de arquivo da internet retrabalhada (abaixo) - Série “Sobre os corpos primevos e a mortalidade da alma”- Foto: Livro Ecos de catástrofes

A história do GEAA está na inauguração da Cátedra de Estudos Japoneses, no México

Desde o dia 14 até o próximo dia 19, o Grupo de Estudos de Arte Asiática (GEAA) da USP e Unifesp participa das atividades inaugurais da Cátedra de Estudios sobre Arte Japonesa Terry Welch, sediada no Centro de Estudos da Ásia e África (CEAA), do El Colegio de México – Colmex, apontado como o único do gênero no mundo ibero-americano. As atividades de celebração deste projeto foram organizadas em colaboração com o Museo Kaluz, localizado no centro histórico da Cidade do México, onde se encontra a Coleção de Arte Japonesa Terry Welch, doada pelo colecionador a esta instituição. 

As professoras Michiko Okano e Madalena Hashimoto Cordaro apresentam o GEAA em sua primeira década de muitas histórias, pesquisas, produção de livros, exposições, dissertações e teses. No âmbito dessas celebrações, ao longo da próxima semana, no Auditório Alfonso Reyes, El Colegio de México, vão ser apresentadas também duas conferências, sessões com painéis de especialistas, a apresentação do catálogo da exposição Casi oro, casi ámbar, casi luz: bienvenida del paisaje mexicano al paisaje japonés e ainda a projeção do documentário El lugar de las tres cascadas: pequeñas historias de Hiroshima, tornando esta semana de atividades uma visita obrigatória para todos os amantes do Japão e da arte japonesa.

*Texto: Leila Kiyomura, da editoria Universidade do Jornal da USP