Nascimento de Hilda Hilst

Ganhando notoriedade apenas a partir dos anos 2000, a escritora tratou de temas que vão desde o erotismo até a relação entre o homem e Deus

Por
Renan Braz
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Hilda Hilst
"Hilda cria uma linguagem própria e peculiar – o que a aproxima de outro grande escritor brasileiro do século XX, Guimarães Rosa – em que a palavra é também carne, som e forma", analisa a pesquisadora Juliana Caldas. (Arte: Ricardo Freire)

Hilda Hilst foi uma escritora que explorou gêneros literários e tratou de temas variados, tentando encontrar uma forma de ser lida e notada. Dona de um estilo variado em poesia, dramaturgia e prosa, destacou-se principalmente pela temática erótica. E embora seja considerada uma das mais importantes autoras brasileiras, a escritora tornou-se mais conhecida somente após sua morte, nos anos 2000.

Influenciada por nomes como Franz Kafka e Samuel Beckett, Hilst criou uma linguagem particular "em que a palavra é também carne, som e forma, e a escrita passa pelos corpos: dos personagens, dos narradores, da própria autora e do próprio leitor", nas palavras de Juliana Caldas, pesquisadora em Literatura Brasileira pela FFLCH USP, que explicou em entrevista sobre os temas, influências e importância da escritora.

Serviço de Comunicação Social: Quais são as obras de Hilda Hilst que você considera mais importantes? Por quê?

Juliana Caldas: Hilda Hilst foi uma escritora que incursionou em diversos gêneros literários: poesia, dramaturgia e prosa, e produziu uma obra rica e múltipla. Inclusive dentro da sua própria trajetória é possível encontrar fases e dicções poéticas variadas (mesmo quando atravessadas por temáticas parecidas), o que apenas fortalece sua marcante presença na história da literatura brasileira do século XX.

Nesse sentido, seria artificial e pouco fiel à qualidade de sua obra eleger uma ou outra de particular importância. No entanto, sabemos também que a própria Hilda considerava sua literatura hermética, o que pode ter contribuído para a sua tardia recepção pela crítica especializada e também para o pequeno número de leitores contemporâneos a ela enquanto viva. A consciência em certa medida amargurada de tal fato, tornou-se material constantemente incorporado por Hilda aos próprios textos, como na presença de personagens ou narradores escritores em crise entre o desejo de serem publicados pelo mercado editorial (interessado em historinhas de amor para acalentar o leitor) e a angústia para conseguirem escrever sobre uma matéria mais densa que demandaria uma forma e língua cifradas.

Não à toa, ao observarmos de maneira panorâmica a obra hilstiana é possível perceber que o sentimento de quem dizia “sofrer da vontade de comunicação” é moto-contínuo que, no mínimo, subjaz as investidas de Hilda em cada uma de suas obras. Hilda transita da lírica amparada pelas formas tradicionais (elegia, ode e bucólicas) dos primeiros livros (Presságio, 1950; Balada de Alzira, 1951) para a dramaturgia, em 1967; para a prosa de ficção mais “grave” (Fluxo-floema, 1970; Kadosh, 1973 etc.); para a poesia “revisitada” pós-ficção (Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, 1974; Amavisse, 1989 etc.); e para ficção mais “baixa” encarnada na trilogia pornográfica (O Caderno Rosa de Lory Lamby, 1990; Contos D'escárnio / Textos Grotescos, 1990; Cartas de um Sedutor, 1991). Assim, não seria absurdo notar que ao deslocar-se por diversos gêneros Hilda Hilst estava circunscrevendo possibilidades várias para ser lida e apreciada, no limite, comunicar-se.

Nessa linha de raciocínio, se pensarmos que os livros da trilogia pornográfica, sobretudo O Caderno Rosa de Lory Lamby (1990), foram determinantes para “chamar” atenção da crítica especializada e dos leitores em geral para a obra prismática de Hilda Hilst, podemos dizer que eles são uma bela porta de entrada, voluptuosa e vulcânica, para despertar o desejo por outras faces dessa pedra lapidar, que tangencia o metafísico sendo ao mesmo tempo erógena e hilária, que é a obra de Hilda Hilst.

Serviço de Comunicação Social: Existe alguma característica marcante em seus textos, seja a maneira de escrever ou os temas abordados, que a diferenciava de outros autores do mesmo período?

Juliana Caldas: Encarnando a compulsão dos “doidos, tristes e poetas”, Hilda Hilst foi herdeira da tradição moderna e leitora de autores como Franz Kafka e Samuel Beckett, dos quais é possível encontrar ressonância nos temas que mobiliza, como a prisão diante do insondável da existência ou a afasia frente ao vazio contemporâneo.

Inspirada por Kazantzákis, depois da leitura de Carta a El Greco, na qual o escritor grego envia uma carta imaginária ao pintor El Greco narrando suas aventuras em busca da transcendência e do diálogo com Deus e com os homens, Hilda Hilst decidiu afastar-se do burburinho da capital paulista e se resguardar na fazenda Casa do Sol, em 1965, onde veio a se dedicar à literatura como modo de vida. A autora assume, a partir daí, sua literatura como um projeto estético que atravessa a metafísica e a imanência.

Por isso, temas como o trânsito entre o corpo e o espírito, o eu e a alteridade (imediata, como o leitor, ou metafísica, como o Deus), o desejo e a morte tornam-se recorrentes em sua obra.

No entanto, essa busca metafísica não se restringe às tópicas grandiloquentes da alta filosofia, antes está chafurdada em lama, lambuza-se em fluidos orgânicos, é carnal e sexual, ou seja, oriunda de uma existência imanente e ao rés do chão, em outras palavras, que se vale da consciência de saber-se uma experiência mundana e em direção à morte. Para tal, Hilda cria uma linguagem própria e peculiar – o que a aproxima de outro grande escritor brasileiro do século XX, Guimarães Rosa – em que a palavra é também carne, som e forma, e a escrita passa pelos corpos: dos personagens, dos narradores, da própria autora e do próprio leitor.

É, assim, uma autora que dizia querer escrever sobre os estados extremos das paixões humanas e, para isso, valeu-se de uma linguagem fundamental, intensa, na qual frases desarranjadas pela sintaxe tradicional da língua e palavras associadas aparentemente de modo caótico e valorizadas pelo ritmo da poesia, pela sonoridade das sílabas ou pelo “sêmen” de múltiplos significados dão o tom do seu texto.

Talvez por isso sua obra tenha gerado em seu público reações inconciliáveis, mas coexistentes: fascínio e repulsa, familiaridade e estranhamento, perfeição e excremento. E aqui possivelmente resida um dado fundamental para quem for se aventurar em sua literatura: saber-se adentrando uma floresta densa em companhia de um estado de desassossego que é provocado pela falta de ar diante da ausência de pontuação; pela coceira nos olho que perdem de vista a frase e a sequência lógica do texto; pelo riso nervoso que profana o imponderável da existência; pelo choro aliviado diante da consciência trágica do fracasso como glória única e possível.

Serviço de Comunicação Social: É possível encontrar alguma influência de suas obras na literatura contemporânea?

Juliana Caldas: Descoberta recentemente pela crítica especializada, pelo público mais amplo e também pelo mainstream do mercado literário, Hilda Hilst, embora almejasse essa circulação de sua obra em vida, talvez não tenha imaginado tamanha profusão que seu trabalho alcançou a partir dos anos 2000.

Tributária da falência da narrativa pós-traumática da contemporaneidade, Hilda Hilst é uma escritora em embate com o fato de não haver linguagem que dê conta de representar os vazios deixados pelo fim das grandes metanarrativas. Deus, o homem, a arte e também a linguagem estão, assim, rebaixados aos seus limites mundanos e fadados a um perpétuo fracasso. “Se todas as histórias podem já ter sido contadas”, como afirmou Hilda Hilst em entrevista de 1977, cabe à sua literatura desnudar os procedimentos e performar o ato da escrita em si. Desse modo, ela atribui à linguagem um papel corpóreo e performativo, liberando-a da normatividade representativa. A língua se torna gesto, o texto se torna palco.

Todo esse preâmbulo para dizer que se hoje vemos uma eclosão de novos procedimentos escriturais e gêneros literários, além do ar revigorado da pornografia como tema recorrente na contemporaneidade, podemos pensar que Hilda Hilst preparou muito desse cenário, sobretudo, a partir dos anos 1970. Além disso, outro aspecto interessante de sua obra é seu caráter visual e coreográfico que tem possibilitado uma transcrição de muitos de seus trabalhos em outras linguagens, como a dança, o teatro, o cinema.