Entrevista professor Marcos Francisco Napolitano

Serviço de Comunicação Social: A mobilização de forças militares e da elite civil contra uma suposta ameaça comunista é motivação mais conhecida para a deposição do presidente João Goulart. Isso é correto? Quais fatores foram decisivos para sua queda em 1964?
 
Marcos Napolitano: A mobilização anticomunista das elites civis e militares, com apoio das classes médias, foi a motivação que aglutinou os golpistas. Havia efetivamente um clima de anticomunismo alimentado pelo contexto da Guerra Fria e da Revolução Cubana. Mas acho que há uma causa mais profunda, de longa duração, que é o elitismo e o antirreformismo civil e militar, que não viam com bons olhos os movimentos de massa, a agenda reformista, e as lideranças carismáticas de esquerda, que gravitavam em torno do governo Goulart, mesmo que não apoiassem o Presidente em tudo. Por fim, havia uma crise política e uma crise econômica, em parte, alimentada pelas fragilidades e indecisões do próprio governo Goulart e das esquerdas na construção de sua agenda política. Tudo isso convergiu em 1964. 

Serviço de Comunicação Social: É possível apontar semelhanças entre aquele clima político pré-64 e o que vivemos atualmente?
 
Marcos Napolitano: Já não há mais Guerra Fria, e o protagonismo militar na política está muito enfraquecido. Na época, as Forças Armadas se viam como um poder superior e tutelar em relação aos outros poderes e partidos da República, e eram frequentemente convocadas pelos civis conservadores. De resto, há algumas semelhanças: uma elite que se diz liberal, mas estimula o golpismo, sob a crítica ao “populismo” e à “irresponsabilidade fiscal” da esquerda. Outro aspecto, é a mesma desconfiança e criminalização dos movimentos sociais. Por outro lado, no campo majoritário da esquerda, tanto o reformismo gradual quanto a defesa da revolução, estão muito enfraquecidos, restando o apelo do nacional-desenvolvimentismo e de uma agenda inclusiva moderada. Obviamente, as esquerdas estão em crise, e muitas mudanças neste campo devem ocorrer em médio prazo. 
 
Serviço de Comunicação Social: Que importância teve as primeiras medidas logo após a instauração do Regime Militar, no governo de Castelo Branco? E quais suas consequências?
 
Marcos Napolitano: Há debate historiográfico se a ditadura plena já se afirmou antes de 1968, ou se ela foi se afirmando gradualmente, abandonando seu suposto caráter “brando”, e revelando-se “escancarada” a partir de 1968. Da minha parte, entendo que o “terrorismo de Estado” tornou-se um sistema organizado e abrangente em 1969, após o AI-5, mas o caráter ditatorial e autoritário do regime já estava posto desde os primeiros dias do pós-golpe, se afirmando plenamente com o AI-2 (outubro de 1965). Com este Ato, as ilusões dos liberais golpistas que acreditavam em um “governo tampão” de Castelo Branco, começaram efetivamente a se dissipar. O regime avisava, já no preâmbulo do Ato, que tinha vindo para ficar. Além disso, as medidas legais do governo Castelo Branco, quando analisadas em seu conjunto, apontam para uma institucionalização autoritária do regime: Lei de Greve, AI-2, Lei de Imprensa, Lei de Segurança Nacional, Nova Constituição. Um regime ditatorial autoritário não se caracteriza apenas pelo terrorismo de Estado, embora esta seja sua face mais dramática e violenta, mas também por uma institucionalidade legalista e por normas que impõe a centralização, a restrição tutelar de direitos e o controle do Estado sobre a sociedade política. 
 
Serviço de Comunicação Social: Passados mais de 30 anos do seu fim, a visão sobre o regime militar começa a ser reinterpretada e reavaliada (principalmente fora das Universidades e meios intelectuais) por outros aspectos que não os de uma ditadura, principalmente por pessoas que não viveram o auge do regime. Essa afirmação é correta? E que consequências podem acarretar?
 
Marcos Napolitano: Não há dúvidas, na historiografia acadêmica, que se tratou de uma ditadura ou de um regime autoritário, se quisermos chamar assim. Mesmo no debate acadêmico e na imprensa liberal há debates sobre a natureza do regime (civil-militar ou militar), sua complexidade e mutações ao longo do tempo, seus conflitos internos, sobre as bases sociais que ele dispunha.  Este debate é muito saudável, pois vários temas que eram tabus no campo da memória social vêm sendo enfrentados seriamente pela pesquisa histórica (ex. o tema da “sociedade vítima” dos militares que não tinham apoio de ninguém). Ocorre que, na sociedade, há correntes de opinião autoritárias que se identificam com o regime e seus métodos (censura, tortura, restrições aos direitos civis) e tem desprezo pela democracia e acreditam em soluções de força para os conflitos sociais e políticos. Estes grupos têm crescido e se alimentado tanto pela falta de uma cultura histórica mais sofisticada, como pelo desprezo aos políticos, em geral. Além disso, o medo social contra a criminalidade, que é um problema real e sério, tem sido alimentado e instrumentalizado pelos setores conservadores, autoritários e elitistas (vide a intervenção no Rio de Janeiro). Tudo isso converge e alimenta uma memória “nostálgica” e positiva do regime militar.