Narrativas medievais de viagens pelo mundo dos mortos se tornaram mais detalhadas com o tempo

Doutorado da USP estudou a individualização das personagens na literatura medieval de viagens pelo além-túmulo

Por
Thaís Morimoto
Data de Publicação

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Uma das versões francesas da "Visão de Túndalo" - Fonte: Getty Museum

Desde a Antiguidade, a jornada pelo mundo dos mortos fascina a humanidade. Obras clássicas como a Eneida, de Virgílio, e a Odisseia, de Homero, já exploraram esse tema, guiando seus protagonistas por reinos misteriosos e cheios de ensinamentos sobre o pós-vida. Ao longo dos séculos, essa temática se repetiu em várias obras literárias do Ocidente, mas com uma mudança: a progressiva individualização de suas personagens em contexto medieval. 

Em sua tese de doutorado, Tiago Augusto Nápoli, pesquisador da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, analisa essa transformação, destacando como os viajantes do além foram ganhando forma e personalidade ao longo do tempo. Em obras do século 6, como os Diálogos, de Gregório Magno, os protagonistas muitas vezes não eram nomeados e apresentavam poucas características. Eram figuras como clérigos que percorriam um mundo dos mortos pouco definido.

A situação mudaria profundamente por volta do século 12, época em que a Europa Medieval passou por um significante desenvolvimento do comércio e de seus grupos sociais. Nápoli observa que, apesar de intrincado, é possível estabelecer um vínculo entre a individualização das personagens deste gênero literário e algumas das mudanças verificadas na Idade Média Central. Um exemplo é o texto "A Visão de Túndalo", escrito no século 12, onde o protagonista é um membro da cavalaria, figura incomum nas obras anteriores. 

Essa individualização das personagens contribuiu para uma maior riqueza e complexidade nas narrativas sobre o mundo dos mortos. As obras literárias passam a explorar de forma mais profunda as experiências individuais no além, as diferentes concepções de pós-vida e as relações entre o mundo dos vivos e dos mortos. De acordo com o pesquisador, atingia-se na Idade Média uma espécie de meio-termo entre os heróis clássicos de um passado mitopoético e figuras quase que anônimas como aquelas observadas em Gregório Magno.

A morte é uma presença constante

“Esses textos têm uma relação muito clara com o conceito da morte, de permanência e de memória, elementos que estão presentes em todas as épocas, a despeito da religiosidade de seus indivíduos”, afirma Nápoli.

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Tiago Augusto Nápoli - Foto: Arquivo pessoal

Embora constante, a visão sobre a morte mudou ao longo do tempo. Em parcela do imaginário medieval, “a morte era vista como uma entrada para a vida verdadeira, seja pela conexão mais direta com uma divindade, seja pela reconexão com parentes e conhecidos já falecidos”, diz o pesquisador. “A morte hoje possui um caráter ambíguo. Por um lado, é algo a ser escondido, privada, algo sobre o qual se deve calar. Por outro, trata-se de um produto midiático, cuja reiteração lhe cria uma falsa proximidade”, complementa.

A literatura, com sua capacidade de abordar temas delicados e complexos de maneira sensível e profunda, oferece um espaço importante para essa reflexão. Através da ficção, é possível explorar diferentes perspectivas sobre a morte, confrontar nossos medos e angústias, em busca de uma tentativa de significação das ações humanas.

“Acho fascinante, por exemplo, a concepção de que haverá uma justiça plena daquilo que se faz em vida. No caso dessa literatura, são narrativas que visam, a um só tempo, provocar temor nos fiéis, mas também os reconfortar. O que se está dizendo no fundo, é que alguém zelará pelas pessoas, segundo sua conduta”, afirma Nápoli.

A tese de doutorado Entre heróis e anônimos: o itinerário do Outro Mundo como fonte identitária na literatura medieval de viagens pelo além-túmulo orientada pelo professor Ricardo da Cunha Lima, foi defendida por Tiago Augusto Nápoli em novembro de 2023 no âmbito do programa de pós-graduação em Letras Clássicas.