Pesquisa questiona relação das universidades com as periferias

Tese evidencia novas possibilidades de colaboração entre as universidades e as periferias, a partir da criação de um espaço de autoria e protagonismo aos jovens das comunidades

Por
Alice Elias
Data de Publicação

Jovens criadores do Memórias Quebradas - Rafael Lucas Leonel Cyríaco, Joyce Alves dos Santos, Vitória Viana L. Passos e Vinícius Henrique dos Santos
Jovens criadores do Memórias Quebradas - Rafael Lucas Leonel Cyríaco, Joyce Alves dos Santos, Vitória Viana L. Passos e Vinícius Henrique dos Santos.

Cotas e bolsas de permanência possibilitaram uma presença maior de pessoas negras e moradores da periferia nas universidades. Porém, o protagonismo e espaço para a produção de conteúdo dessas pessoas ainda é limitado. Frequentemente, as periferias são tratadas como objeto de estudo por pesquisadores que não fazem parte das comunidades e se apropriam de vivências e tradições para fins acadêmicos.

A tese de doutorado “Histórias de vida, histórias de luta: as memórias das lutas populares nas periferias de São Paulo”, de Angélica Gonçalves Garcia, questionou a natureza da relação entre universidades e periferias, bem como propôs garantir espaços, dentro das universidades, para que as pessoas da periferia pudessem produzir conhecimento e participar ativamente de debates e dinâmicas acadêmicas. 

Angélica, que viveu na periferia até os 24 anos, explica que escolheu o tema a partir da insatisfação que sentia ao ver a coletividade periférica se tornando um objeto para alguns espaços universitários. Isso impulsionou a criação do Centro de Memórias das Lutas Populares Ana Dias e do podcast Memórias Quebradas, projetos desenvolvidos por residentes de bairros periféricos de São Paulo, que produziram em conjunto um registro das mobilizações populares e memórias da comunidade, e resultaram no protagonismo de jovens da periferia dentro da universidade. 

Angélica estudou a mobilização na periferia em prol de melhorias e investimentos públicos em espaços que historicamente conquistaram avanços, como creches, escolas, hospitais, asfaltamento de ruas e linhas de transporte público.

Ela enfatiza a importância do registro de tais lutas e vivências, uma vez que frequentemente são apagadas das narrativas oficiais, filmes e livros. Dessa forma, a tese buscou discutir a importância das lutas populares e a relevância da criação de conteúdos e registros partilhados na periferia. 

A expectativa da pesquisadora não se voltou à produção do conteúdo em si, mas sim à conquista de um espaço dentro da universidade. A propagação da memória das lutas históricas visava fortalecer os movimentos da periferia e encorajar essas pessoas a batalharem por seus direitos, uma vez que grandes conquistas foram alcançadas por meio da mobilização popular. 

“No âmbito da pesquisa, sempre foi mais importante levar esses debates dentro da universidade: o debate da relação que a universidade estabelece com as periferias e que tipo de relação é essa – quando a gente vai fazer uma pesquisa na periferia, a gente está respeitando a autonomia, autoria e os saberes daquelas pessoas ou estamos indo como detentores do saber tentando colonizar essas pessoas?”, explica Angélica.

O Centro de Memória e o podcast são resultados de uma experiência concreta de produção partilhada do conhecimento, o que evidencia o potencial criativo existente nas comunidades periféricas. Com sucesso, os projetos conquistaram espaço na universidade, em uma posição de autoria e protagonismo, na qual a universidade atua como apoiadora das criações: os jovens do Centro de Memória foram convidados a participar de debates, rodas de conversas e, inclusive, foram entrevistados pelo “Jornal da USP”.

“O impacto para as pessoas que participam é justamente o reconhecimento dos saberes, da história, e das opiniões, uma vez que estamos falando de uma periferia que sempre foi estereotipada, estigmatizada, excluída e discriminada. O impacto pro grupo que produz o podcast é justamente ocupar outro lugar e ter a oportunidade de ser reconhecido e valorizado, no movimento contrário da estigmatização e do preconceito”, afirma Angélica. 

De acordo com a pesquisadora, o trabalho ressalta a importância do resgate das histórias individuais, pois elas compõem as histórias coletivas de São Paulo, uma cidade que está em constante processo de transformação. Em certa medida, a tese procura reivindicar um espaço de produção e criação autoral das vozes da periferia dentro de espaços acadêmicos.

“Pra mim, pessoalmente, foi muito mais do que um doutorado, e essa vivência toda que eu tive foi uma oportunidade de reelaborar e restabelecer a minha relação com a periferia. E também foi um jeito de resgatar, a partir da história de outras pessoas, a história da minha própria vida”. 

A tese está disponível em Histórias de vida, histórias de luta: as memórias das lutas populares nas periferias de São Paulo, e o instagram do Centro de Memórias das Lutas Populares Ana Dias é @centroanadias.