O primeiro título de “Em busca do tempo perdido” é uma abertura à grande literatura subjetiva de Marcel Proust
Publicado em 1913, No caminho de Swann é o primeiro título da obra Em Busca do Tempo Perdido, importante romance escrito em 7 partes pelo francês Marcel Proust. Em entrevista concedida ao Serviço de Comunicação Social, a pesquisadora Amayi Luiza Soares Koyano, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, considera que o livro se trata de “leitura e escrita, de memória, de relações humanas, incluindo a si próprio, da nossa relação com o tempo, com a música, com a pintura… ele trata de nós”.
Diante das diversas análises possíveis para serem feitas acerca desta obra de Proust, a pesquisadora, especialista na influência que Proust exerceu na obra de Michel Butor, mostrou três pontos que podem servir de análise: a estrutura do texto e a forma de se escrever, a presença de obras de artes como a pintura e o estudo da linguagem por meio de nomes próprios.
No caminho de Swann elabora a questão da memória involuntária, um comportamento fundamentalmente humano, o despertar de pensamentos aleatórios devido a fatores externos ao ser. Esse elemento presente no narrador do livro pode fazer com que a memória involuntária dos leitores também desperte, bem como os instigue e inspire à reflexão sobre o tempo, o lembrar e o relembrar.
Amayi Koyano considera que a literatura é importante por ser uma ferramenta de libertação dos indivíduos, por nos “apresentar inúmeras formas de lidar com a vida cotidiana, com as emoções, além de nos mostrar ferramentas linguísticas, através da escrita, de como melhor desenvolver nosso imaginário, nosso saber-ser e nossas reflexões pessoais, entre muitos outros pontos”. Segundo a pesquisadora, Em Busca do Tempo Perdido segue este princípio ao abordar importantes aspectos da subjetividade humana, passando pela “pintura, música, fenomenologia, filosofia”.
Confira a entrevista completa com Amayi Koyano sobre sua pesquisa, seus processos criativos como pesquisadora e a obra abordada:
Serviço de Comunicação Social: Do que se trata o livro No caminho de Swann, de Marcel Proust?
Amayi Luiza Soares Koyano: Esse livro trata de tanta coisa! Para mim, ele trata de leitura e escrita, de memória, de relações humanas, incluindo a si próprio, da nossa relação com o tempo, com a música, com a pintura… ele trata de nós.
Serviço de Comunicação Social: Quais análises você considera possíveis para este livro, pensando no universo acadêmico?
Amayi Luiza Soares Koyano: São muitas as análises possíveis em se tratando de pesquisa proustiana. Mais importante do que eu apenas listar possibilidades de análise, o que certamente seria muito limitado visto que não sou especialista em Proust, gostaria de exemplificar o caminho que fiz enquanto pesquisadora para chegar ao tema da minha pesquisa e citar alguns exemplos de temas já trabalhados.
Em literatura, e isso não só na obra de Proust, o primeiro passo para se pensar em pesquisa é de se fazer uma leitura detalhada da obra que se deseja trabalhar. Parece óbvio, mas essa etapa é de extrema importância e não pode ser negligenciada. Ao longo dela, recomendo uma auto-observação do próprio eu-leitor: O que chama minha atenção? O que eu gosto/desgosto e por quê? O que me remete a outros campos que tenho interesse e/ou a outras obras? O que eu gostaria de trabalhar nesta obra, como e por quê? A partir de quais elementos, eventos, personagens? O passo seguinte é partir para a busca em bibliotecas (físicas ou digitais) para verificar o que já foi feito dentro dos meus centros de interesse. Em seguida, é ler os trabalhos já publicados e tentar mapear onde meus centros de interesse sobre aquela obra, que eu trabalhei na minha leitura e na catalogação desta, podem melhor se encaixar e contribuir para a área. Participar de mesas-redondas e eventos literários, como ouvinte, é também uma ótima forma de entender melhor como as pesquisas são feitas e o que nos interessa enquanto pesquisadores. Aproveitar eventos e congressos para conversar com pesquisadores na hora do cafezinho é muito enriquecedor. Brinco sempre que eu resolvi grande parte das questões da minha pesquisa nos corredores da FFLCH e no café da Tia Bia.
Citando alguns exemplos de análises feitas da obra, no meu mestrado, por exemplo, uma análise que fiz é a da relação de influência da obra de Proust na obra do escritor que pesquisei, Michel Butor. Eu trabalhei com três pontos de influência: a ideia de estruturação do romance do ponto de vista da arquitetura da obra, ou seja, de como o texto literário se sustenta a partir de elementos de base tal qual uma construção de um edifício, o que podemos chamar de plano textual; a da presença das obras de arte, especificamente a pintura em No caminho de Swann; e, por último, o do estudo da linguagem por meio dos nomes próprios. O Dr. Fillipe Mauro, um grande influenciador do meu trabalho, fez uma tese belíssima sobre o estilo de Proust nos romancistas brasileiros Pedro Nava, Jorge Andrade e Cyro dos Anjos. O professor Philippe Willemart tem vários trabalhos sobre crítica genética e psicanálise na obra de Proust e é a maior referência que temos do autor.
Serviço de Comunicação Social: Na sua opinião, por que devemos ler No caminho de Swann?
Amayi Luiza Soares Koyano: Gostaria de começar minha resposta a partir de um dos podcasts franceses que mais gosto e que mais recomendo aos meus alunos, Grand bien vous fasse !, da rádio France Inter. No dia 21 de novembro deste ano, foi publicado um episódio intitulado Comment la littérature Proustienne peut nous sauver? (Como a literatura Proustiana pode nos salvar?) no qual o apresentador e os entrevistados começam a discussão falando sobre a importância da escrita, neste caso a literária, e como esta pode representar uma libertação para nós, seres humanos, ao nos apresentar inúmeras formas de lidar com a vida cotidiana, com as emoções, além de nos mostrar ferramentas linguísticas, através da escrita, de como melhor desenvolver nosso imaginário, nosso saber-ser e nossas reflexões pessoais, dentre muitos outros pontos.
No caso específico da obra de Proust, Em Busca do Tempo Perdido é considerado uma obra universal no sentido de que os personagens, conflitos e situações apresentadas interagem com os leitores de realidades muito diversas daquela apresentada no livro. É um romance desenvolvido ao longo de sete volumes e que fala de tudo do ponto de vista da subjetividade: pintura, música, fenomenologia, filosofia… Proust é uma excelente leitura por nos mostrar como a literatura tem o potencial de abarcar áreas tão distantes dela mesma, como o caso da arquitetura e da matemática, por exemplo. E Proust faz isso com maestria.
Outro ponto fundamental desta obra, que já aparece no início de No caminho de Swann, que é o primeiro volume, é a questão da memória involuntária e do tempo, ambos imensamente presentes nas nossas vidas. A memória involuntária, a grosso modo, pode ser definida como pensamentos que são ativados por conta de fatores externos aleatórios. Quem nunca andou pela rua, indo a um compromisso, e passou por um desconhecido na calçada que exalava o mesmo perfume de alguém do nosso passado mais distante e de quem a gente nem se lembrava mais, até aquele momento? Ou quem de nós nunca escutou uma música que há décadas não ouvia e da qual não lembrávamos nem o nome e que, ao ser tocada na rádio por puro acaso, nos transporta para uma época tão distante da nossa atual realidade e nos faz sentir as mesmas coisas que sentíamos na época que ela fazia parte da nossa vida? A aparição dessas memórias involuntárias do narrador-personagem deste livro representa, para mim, o que acho de mais mágico na escrita proustiana: embarcamos nesta viagem do narrador como seus companheiros de viagem; visitamos as suas memórias e acessamos, involuntariamente, as nossas próprias; aprendemos com ele novas formas de se trabalhar internamente com a ideia de tempo, do lembrar e do relembrar.
Confesso que encontro certa dificuldade em falar desta obra e de Proust. Se eu tivesse de escolher uma só obra para ler o resto da minha vida, certamente escolheria Em Busca do Tempo Perdido. Cada releitura de No caminho de Swann que faço é como se estivesse lendo um livro completamente novo – mas, claro, que apresenta também as memórias das leituras anteriores. Parece mágica, mas é literatura, é Proust.
Amayi Luiza Soares Koyano é mestra em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês pela FFLCH-USP, profissional do texto e professora de francês e literatura.