Política pública de combate ao trabalho escravo no Brasil envolve tanto o governo como a sociedade civil

Pesquisa da USP entendeu que políticas voltadas à defesa de direitos humanos só podem ser construídas em um ambiente democrático

Por
Thais Morimoto
Data de Publicação

Trabalho análogo à escravidão
Trabalho análogo à escravidão no Brasil. Foto: MPT

O desenvolvimento de políticas públicas de combate ao trabalho escravo no Brasil é realizado a partir de aprendizados de membros do Ministério Público e dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas, não são apenas os órgãos do governo que participam desse processo, a atuação da sociedade civil também é essencial para os avanços nos desenvolvimentos dessas ações.

Em tese de doutorado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a jornalista e cientista social Natália Sayuri Suzuki percebeu que “políticas voltadas à defesa de direitos humanos só podem ser efetivadas num ambiente democrático, em que a sociedade civil tem condições de participar e executar junto com o Estado”. 

Natália Sayuri Suzuki
Natália Sayuri Suzuki. Foto: Arquivo pessoal

Desde 2011, Natália é coordenadora do projeto Escravo, nem Pensar!, da ONG Repórter Brasil, que visa fazer a prevenção ao trabalho escravo por meio da educação. A partir de seu envolvimento pessoal, a pesquisadora se interessou pelo tema e estudou a política pública de combate ao trabalho escravo no Brasil desde antes de sua consolidação, que ocorreu da década de 1990 até os dias atuais. 

Estado e sociedade civil

“Os atores estatais empreendem ações dedicadas ao combate do trabalho escravo por causa da pressão e da sensibilização da Comissão Pastoral da Terra (que representa a sociedade civil). As estratégias são diversas, como denúncias à imprensa e fóruns internacionais, interlocução direta com órgãos estatais e até a elaboração de uma publicação, o ‘Caderno de Conflitos no Campo’", exemplifica a pesquisadora. Ela afirma que a sociedade civil enxerga o que o Estado ainda não vê e pode atuar de forma crítica. 

O doutorado também aponta que a sociedade civil é responsável por guardar a memória da política pública. Enquanto o governo apresenta grande rotatividade entre os membros, a sociedade civil continua atuando ao longo de toda a existência da política pública. 

“A memória é também uma capacidade técnica e um capital valioso. Nas organizações sociais mais relevantes, como a CPT e a Repórter Brasil, a rotatividade dos seus quadros costuma ser baixa, por isso as mesmas pessoas podem ocupar os mesmos cargos por décadas e, assim, transitar por esse período alongado nos espaços de formulação de política pública”, afirma a pesquisadora.

Combate ao trabalho escravo: uma luta dinâmica

A pesquisa ainda aborda como o trabalho escravo é dinâmico e se adapta ao contexto. O trabalho só aparece em situações que não é possível nem imaginar, o que é desafiador, explica Natália. “Existe trabalho escravo na moda, que é diferente do trabalho escravo na pecuária e na carvoaria. Em comum, existem trabalhadores em situação de vulnerabilidade explorados. Mas a forma como a exploração acontece é adaptável às atividades econômicas”, exemplifica. A pesquisadora explica que a partir do diálogo, instituições do Estado e entidades da sociedade civil acumulam aprendizados sobre a temática e os instrumentos que devem ser mobilizados para enfrentar o trabalho escravo. 

Com essa adaptação, aqueles que lutam contra o trabalho escravo precisam ser criativos para encontrar instrumentos, formas de sanção, de responsabilização ou de prevenção para cada contexto. De acordo com Natália, “o Estado tem que correr atrás e compreender como essas mudanças acontecem, para não ser ludibriado e achar que está fazendo o seu trabalho, mesmo sem ser eficiente”. 

Ainda segundo a pesquisadora, o Estado tem vozes diversas que defendem pontos de vista únicos. Dentro de um mesmo governo, há pressão para que haja uma ênfase maior na política pública contra o trabalho escravo e pressão para que ela retroceda. 

A Constituição de 1988 foi um dos passos que promoveu avanços, mas Natália relata que uma das constatações da pesquisa é a falta de assistência à vítima resgatada de trabalho escravo, o que já é conhecido desde 2007. “Faz mais de 10 anos que localizamos o problema e não conseguimos dar conta disso, então precisamos inovar. Hoje, a minha avaliação é que a política pública é eficiente até onde ela consegue alcançar, mas ela não é suficiente. Ela já está obsoleta em 2023.”

Os termos 
Como outros pesquisadores da área, Natália usa trabalho escravo e trabalho análogo à escravidão como sinônimos e define os termos de acordo com o que está colocado no art. 149 do Código Penal. A pesquisadora também explica que o termo escravidão é usado para se referir aos trabalhadores, a maioria vindo da África, que foram explorados durante o período colonial e imperial sob o regime de aprisionamento, o que era legalizado pelo Estado até 1888.

Natália ainda discorda do termo escravidão contemporânea ou escravidão moderna. “Existem muitos pesquisadores que possuem outra opinião, mas, eu, como pesquisadora, digo que o que a gente tem hoje de trabalho escravo não é uma continuidade da escravidão do passado, é algo distinto”, explica. Para ela, existem intersecções entre a escravidão e o trabalho escravo contemporâneo, por causa dos legados do processo escravagista no Brasil, mas a escravidão do passado em tese foi realmente abolida porque tratava-se de uma questão jurídica, mesmo que condições ruins de trabalho continuem.

A tese de doutorado Trabalho escravo contemporâneo: institucionalizações e representações no desenvolvimento da política pública de erradicação foi defendida em abril de 2023 por Natália Sayuri Suzuki e orientada por Adrian Gurza Lavalle no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política.