Uma forma institucional de fazer ciência

Por Marcos Napolitano e Júlio César Suzuki, professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

Por
Redação
Data de Publicação
Editoria

O Prêmio Internacional dado pelo Comitê Internacional de Ciências Históricas (CISH) à colega Laura de Mello e Souza, professora aposentada do Departamento de História e docente do Programa de História Social, é o reconhecimento de uma brilhante carreira pessoal, mas também de toda uma forma institucional de “fazer ciência”. Como o próprio parecer do prêmio afirma: “Os primeiros trabalhos e primeiros livros de Laura de Mello e Souza estavam intimamente ligados à Universidade de São Paulo, onde se formou, onde obteve seus primeiros títulos acadêmicos e onde iniciou sua carreira acadêmica”.
O CISH foi fundado em 1926, buscando conectar a comunidade historiográfica em nível internacional. Atualmente, congrega 55 associações nacionais de História (incluindo a brasileira ANPUH) e dezenas de organizações de pesquisa, com realização de congressos a cada quatro anos. Ao receber este prêmio, criado em 2015, Laura de Mello e Souza entra para um seleto clube de agraciados que são referências na área de História, como Serge Gruzinski e Sanjay Subrahmanyam. A diferença, fundamental, é que é a primeira mulher e a primeira historiadora latino-americana a receber a distinção. Outro ponto digno de nota, como ela mesma gosta de sublinhar, é que toda sua formação como historiadora e pesquisadora foi realizada no Brasil, na USP, particularmente na FFLCH, sem prejuízo de todas as suas conexões com outras universidades brasileiras e estrangeiras.

A FFLCH, antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), criada como núcleo seminal da pesquisa na formação da USP em 1934, desempenhou papéis fundamentais de debate sobre áreas do conhecimento que não tinham significado prático ou instrumental; sentidos que se aprofundaram com as primeiras formações doutorais a partir de 1942.

É do seio dessa unidade fundamental de organização da USP, a FFCL, constituída por áreas como Filosofia, História Natural, Matemática, Química, Física, Letras, Educação, Geografia, História, Ciências Sociais, dentre outras, que se mantêm forças teóricas, metodológicas e históricas presentes na obra de Laura de Mello e Souza, como a da interdisciplinaridade, em que valorizar a diversidade de dimensões para leitura do real se apresenta como essencial.

Na FFCL, a tradição de pesquisa foi sedimentada pela presença de importantes professores estrangeiros, convidados para sua criação, como Pierre Monbeig, Claude Levi-Strauss, Roger Bastide, Jean Maugüé e Fernand Braudel.

A partir do final da década de 1960, a FFCL será a origem de várias unidades da USP, conduzindo a alteração de sua nomenclatura para FFLCH, tendo em vista os cursos que permaneceram em seu seio, a saber: História, Geografia, Letras, Filosofia e Ciências Sociais.

É neste período de transição de FFCL para FFLCH que se insere Laura de Mello e Souza na graduação; momento também ímpar de consolidação da substituição dos professores estrangeiros para uma geração de docentes e pesquisadores nacionais com reconhecimento dentro e fora do País, como Maria Isaura Pereira de Queiroz, Florestan Fernandes, Pasquale Petrone, Alfredo Bosi, Gilda de Mello e Souza, Antonio Candido, dentre tantos outros.

Na USP, Laura de Mello e Souza se graduou no curso de História, em 1975, fez seu mestrado (1980), seu doutorado (1986), ambos no Programa de História Social, e sua livre-docência (1993). Em 1983, ingressou como professora do Departamento de História e, em 1999, tornou-se professora titular em História Moderna. Entre setembro de 2014 e agosto de 2022, ocupou a cátedra de História do Brasil na Lettres Sorbonne Université (antiga Paris IV), retornando ao Brasil em 2023, o que permitiu ampliar o diálogo que fazia em suas pesquisas e na produção de textos que são referências para a compreensão da História Moderna, particularmente do Brasil colonial e imperial.

Além de professora e pesquisadora, ocupou cargos institucionais importantes. Foi chefe do Departamento de História entre 1999 e 2001; vice-coordenadora do Programa de História Social entre 2002 e 2004; membro do Comitê de Ciências Humanas da Fapesp (1994-2001), do Comitê de História da Capes (1999-2001) e do Comitê de História do CNPq (2011-2013), para mencionar algumas de suas atuações.

Enfim, a trajetória profissional de Laura de Mello e Souza, sem dúvida, fez por merecer o prêmio. Trata-se de uma trajetória consagrada, abrangente e muldimensional, dada sua atuação como professora da graduação e da pós-graduação, pesquisadora, autora e orientadora, formadora de várias gerações de pesquisadores sobre História Moderna e História Colonial brasileira. O parecer que justificou o prêmio, elaborado pelo board do CISH, resumiu muito bem os traços teóricos, metodológicos e estilísticos que marcam a carreira de Laura, e que a distinguiram na comunidade de historiadores:

“As características mais marcantes do percurso intelectual e acadêmico de Laura de Mello e Souza, a par da sua excepcional qualidade, são a sua originalidade e singularidade. Por mais de quatro décadas, ela se envolveu com diversas tendências e ondas da historiografia, tanto internacional quanto brasileira, mas nunca se deixou dominar por elas. A história social e cultural sempre foram os seus campos de eleição, mas ela também as combinou com a história política, religiosa e literária. Privilegiando abordagens qualitativas, nunca deixou de usar números quando necessário, e fez uso frequente da iconografia […]. Sem exceção, porém, a qualidade literária e a elegância da sua obra constituem um estilo admiravelmente distintivo, com raros paralelos na historiografia de língua portuguesa”. 

Em que pese ter sido uma das primeiras historiadoras brasileiras a consagrar temas ligados à chamada “História das Mentalidades” entre nós, perspectiva fortemente conectada à renovação do campo da História Cultural, Laura de Mello e Souza nunca se prendeu a modismos teóricos e agendas de pesquisa restritas.

Pautada pela erudição e pelo livre trânsito teórico, sem nunca cair no ecletismo, os seus livros, artigos e capítulos tornaram-se incontornáveis na boa formação de alunos e pesquisadores. Alguns deles consagraram-se, inclusive, como referências para públicos leitores extramuros da Universidade, como Os Desclassificados do Ouro e O Diabo na Terra de Santa Cruz. Esses livros, entre tantos outros da autora, transitam entre a História Cultural e a História Social, sem diluir e desconsiderar aspectos da política colonial, conectando grandes recortes espaço-temporais com o cotidiano dos que sofreram e criaram o mundo colonial brasileiro e português.

Mas há uma outra dimensão importante neste prêmio, para além do reconhecimento de uma brilhante trajetória individual. Nas palavras da própria agraciada:

“Gostaria de frisar a importância dele para a comunidade de historiadores brasileiros, que é numerosa e competente, e tem sua visibilidade reforçada por um fato como esse […]. Mas em meu campo de estudo e sobre a época que escolhi estudar, do século XVI ao começo do XIX, o trabalho é obrigatoriamente lento, a documentação é em grande parte manuscrita e nem sempre fácil de ler. Isso significa que sem apoio institucional, a exemplo das bolsas que recebi de instituições como Fapesp e CNPq […], os êxitos se tornam bem mais remotos”.

Com estas palavras, tão características de sua generosidade intelectual, Laura de Mello e Souza faz com que sua premiação pessoal se conecte com uma forma coletiva de fazer pesquisa, e com toda uma tradição institucional possibilitada, no contexto brasileiro, pela universidade pública e pelo financiamento público da pesquisa científica no campo das Humanidades. Para além do campo historiográfico, diga-se.

Numa época de busca do produtivismo em si mesmo e de questionamentos superficiais do valor das Humanidades como conhecimento social e cientificamente relevante, o Prêmio Internacional de História dado a Laura de Mello e Souza é um duplo alento. Por um lado, é o reconhecimento de uma forma de fazer ciência que busca combinar erudição e talento, produção e qualidade, sala de aula e trabalho de arquivo, marcas adensadas pelo mérito individual da nossa colega. Mas, por outro, é um alento para quem defende um modelo de universidade pública de ensino e pesquisa, que muitas vezes se vê questionada e ameaçada.

*Texto de Marcos Napolitano e Júlio César Suzuki, publicado originalmente em Jornal da USP