Questão estrutural da academia dificulta entrada de mulheres na carreira de pesquisador

Para Aline Dainez, o perfil pesquisador que a academia cobra, com disponibilidade total de tempo, exclui mulheres e mães

Por
Lívia Lemos
Data de Publicação

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Arte: Lívia Lemos Foto: Freepik 

O que faz com que as mulheres pesquisadoras não sejam reconhecidas? O mestrado de Aline Dainez, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP refletiu o porquê de a carreira de pesquisador acadêmico ser dificultada para o público feminino. Para a pesquisadora, é uma questão estrutural presente na academia, que foi pensada para homens e exclui mulheres, sejam mães ou trans.

Aline chama atenção para o padrão de pesquisador que a academia criou e alimenta até hoje: “O que se espera de um intelectual é que ele fique sentado num quarto branco escrevendo o dia inteiro. Mas para isso, ele precisa de alguém que cuide dos afazeres domésticos, como cozinhar e cuidar dos filhos, e sustente essa estrutura”.

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Aline e sua filha de 4 anos, Helena [Imagem: Arquivo Pessoal]

A necessidade de entender qual é esse perfil pesquisador veio por uma negligência da instituição com a sua realidade. Aline graduou-se em Filosofia pela USP em 2018 e tinha como objetivo se tornar pesquisadora acadêmica. Durante seu primeiro mestrado, em 2019, engravidou. Junto com a pandemia de Covid-19, ela vivenciou as dificuldades para uma gestante continuar realizando pesquisas. Uma delas foi o desafio de conciliar a nova rotina com os prazos universitários.

Seu primeiro mestrado não foi concluído. O apagamento de seu mestrado, como a pesquisadora nomeia, a levou a refletir: o que faz com que as mulheres tenham seus nomes apagados da história? Essa questão deu origem a um novo mestrado.

Questão estrutural

Para responder a pergunta e entender a questão estrutural, Aline analisou que os papéis atribuídos ao gênero feminino, ao longo da história, difundiram no imaginário da sociedade de que a mulher, por ter que cumprir com os cuidados domésticos, não possui tempo e nem capacidade para executar outras tarefas, como pesquisar.

Além disso, existe um perfil pesquisador que a academia cultivou que privilegia homens. Isso porque, para pesquisar, a academia cobra dedicação em tempo integral. Os homens, por terem alguém para realizar suas obrigações domésticas, consequentemente possuem mais tempo para estudar, como aponta Aline: “Nessa estrutura, as mulheres assumem a função do cuidado enquanto os homens têm tempo para ler, trabalhar e pensar”.

Em contrapartida, quando é a mulher quem deseja ingressar na carreira, não há essa mesma rede de apoio. Aline também critica a falta de incentivo da própria academia para com o público feminino: “Há um desencorajamento e uma dificuldade que a academia coloca para que você possa fazer uma pesquisa em filosofia”.

A pesquisadora pontua outra questão que não é levada em conta para homens na hora do processo seletivo para se tornar pesquisador: se ele vai ou não ter filhos. “Mas essa mesma pergunta é feita para as mulheres por alguns orientadores, já que a rotina dos cuidados com o filho não condiz com esse ideal do pesquisador”.

Apesar disso, Aline destaca como fez seu mestrado: “Eu o escrevi enquanto cozinhava, brincava e trocava a fralda da minha filha. Mas isso não deve ser visto como uma história de superação, e sim como uma questão grave. Não é à toa o adoecimento de tantas pessoas. A universidade e a própria filosofia deveriam ser o lugar privilegiado para repensar nessa estrutura”.

Complexo de Agar

Para sua pesquisa, Aline criou o método Complexo de Agar. Na narrativa bíblica, Agar foi uma serva de Abraão que engravidou de seu senhor, mas não é lembrada como uma figura materna: “A história segue apenas a linhagem de seu filho Ismael e os homens seguintes, mas não há menção sobre a mãe dele. No Alcorão ela é apagada e na Bíblia, ela é apenas a escrava”.

Daí vem o mito, o Complexo de Agar, conforme explica Aline: “Eu crio esse complexo para responder essa dissolução desse lugar, onde aquilo que produzo é tomado pelo outro e eu não o reconheço nem o recupero. A partir desse mito, faço uma formalização da estrutura que fundamenta nossa posição na sociedade. O resultado é o apagamento do nome das mulheres da história”.

Mulheres apagadas 

A pesquisadora traz algumas mulheres que foram apagadas da história ou que tiveram suas reflexões apropriadas por homens, como Fanny Louise Von Sulzer-Wart. Apesar de Sigmund Freud ser considerado o pai da psicanálise, Aline aponta o papel fundamental que Sulzer-Wart teve para a elaboração da teoria:

“Ela é trazida por Freud apenas como uma paciente, mas em uma das sessões, ela pede para que ele se cale e a deixe falar tudo que vier à sua cabeça, antes de perguntar quais sintomas tem. Ele percebe que quando faz isso, a análise acontece e a partir daí fundamenta a regra de ouro da psicanálise: a associação livre. Por isso, aponto ela como inventora da psicanálise”.

Outras mulheres, filósofas e pensadoras ainda pouco estudadas, foram mencionadas, como por exemplo a filósofa e antropóloga brasileira Lélia Gonzalez. Durante sua graduação, Aline conta que teve apenas uma disciplina, a última, que trouxe algumas autoras pensadoras.

A dissertação de mestrado Agar, serva de Sarai, de onde vens e para onde vais?": o mito do apagamento do nome das mulheres da história, orientada pela professora Tessa Moura Lacerda e coorientada pelo professor Vladimir Safatle, foi defendida por Aline Dainez da Costa em abril de 2024 no Programa de Pós-Graduação em Filosofia.

A reportagem em áudio está disponível no Spotify: