Nascimento de Jean-Paul Sartre

Escritor, professor e filósofo, Sartre explica sobre existência, humanidade e abstração

Por
Astral Souto
Data de Publicação

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Arte por: Astral Souto (Serviço de Comunicação Social da FFLCH)

Filósofo existencialista e íntimo de Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre nasceu em 21 de junho de 1905. O escritor francês, estudante da École Normale Supérieure, foi autor das obras: O Ser e o Nada e A Transcendência do Ego. Seu interesse por filosofia e o começo de sua jornada com o existencialismo, deu-se pelo seu contato com o estudo sistemático da fenomenologia de Edmund Husserl. Antes de publicar sua obra mais célebre, O ser e o nada, a direção de seus estudos era voltada a críticas à fenomenologia husserliana. O objetivo de Sartre era tirar o idealismo e a subjetividade de Husserl, trazendo suas ideias para a ação.

Nos anos 1930, formou-se e se especializou em filosofia, além de dar aulas e se dedicar ao seu primeiro romance, A Náusea, lançado em 1938. A história relata os registros de diário de Antoine Roquentin, que tenta reviver o que aconteceu em sua vida. Porém, percebe que não conseguiria recuperar suas memórias como sujeito, pois para haver uma reflexão sobre si mesmo seria necessário se distanciar do próprio Roquentin. O livro aborda várias questões filosóficas de Sartre como a dominação das pressões sociais e dos hábitos na produção de sentido e a incongruência entre a experiência vivida e a sua memória. 
Na Segunda Guerra Mundial, Sartre é convocado para servir o exército francês e é preso, em 1940, durante a ocupação nazista, presenciando violências e torturas. Foi nesse cenário que a produção de O Ser e o Nada surgiu. O livro, de 1943, trouxe à tona seu pensamento e envolvimento político, no qual cria um sistema de explicação de mundo através da análise da realidade humana, do abstrato e do concreto.

Em 1944, Sartre escreve e estreia uma peça chamada Entre quatro paredes que contém uma de suas frases mais famosas O inferno são os outros. A peça se estrutura ao redor de três personagens mortos que estão no inferno. Eles estão sentenciados a passar a eternidade presos em uma sala de estar sozinhos, onde sua convivência é também sua tortura. Todos conversam sobre seus sonhos mal sucedidos e escolhas mal tomadas. Contudo, percebem que a avaliação do que fizeram em vida só pode ser julgada pela observação do outro. A frase célebre se encontra na peça, pois os personagens descobrem que o rumo de suas vidas depende dos outros.

Mesmo que Sartre até hoje seja considerado um dos principais filósofos existencialistas, por muito tempo ele não identificou essa ideia com suas obras. Como uma forma de mudar a percepção da interpretação delas, em 1945 Sartre proferiu a conferência intitulada O Existencialismo é o Humanismo, publicada contra sua vontade em 1946. 

Um ano depois da publicação desta conferência, Martin Heidegger, também filósofo e professor alemão, publicou uma crítica a ela, Carta sobre o Humanismo, em que ataca a ideia central de que a existência precede a essência. “Para Heidegger, essa afirmação seria apenas uma reversão da ideia básica da metafísica platônica em que “a essência precede a existência”; mesmo trocada, os termos manteriam suas raízes, e a formulação não escaparia da metafísica como Sartre o desejaria”, afirma Gustavo de Almeida Nogueira, mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais (FFLCH) na USP. 

Gustavo também falou sobre a importância de Sartre na filosofia atual: “Se o trabalho filosófico é impensável sem uma construção contínua da história da filosofia, com sua releitura de caminhos, reformulações de conceitos e sua criação a partir da atualização do que se fez ou do que se deixou por fazer, então o existencialismo sartreano e sua postura engajada seguem como um momento inescapável para se compreender a filosofia do século 20 e seus meios de circulação”.

Confira a entrevista com Gustavo de Almeida Nogueira para o Serviço de Comunicação Social da FFLCH:

Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Poderia comentar um pouco sobre a jornada de Jean-Paul Sartre até ele se tornar um filósofo existencialista?

Gustavo de Almeida Nogueira: Se quisermos ver a trajetória de Sartre na década de 1930 como um caminho cujo ponto de chegada seria a formulação de seu existencialismo próprio, o evento principal desse desenvolvimento seria o encontro e o estudo sistemático da fenomenologia de Edmund Husserl, sobretudo de sua obra Investigações Lógicas  (1901). Outros dois pontos que configuram sua filosofia existencialista são a leitura de Ser e Tempo (1927) de Martin Heidegger e seu contato com a interpretação particular de Alexandre Kojève em seus seminários sobre a Fenomenologia do Espírito de G. W. F. Hegel. O marco da filosofia existencialista sartreana é a publicação, em 1943, de sua obra máxima, O Ser e o Nada. Até lá, podemos resumir seu esforço intelectual em uma só direção: tirar a fenomenologia husserliana de seu idealismo e de sua subjetividade, que Sartre via como encarcerada em si, e abri-la para o mundo e para a ação.

Tal movimento é propulsionado não somente por suas leituras filosóficas, mas também elas experiências dentro da situação histórica específica em que esse trajeto se desenrolou. O caminho do Sartre existencialista é indissociável do caminho do Sartre político, de sua postura ativa no debate público enquanto intelectual engajado. Nos anos iniciais da década de 1930, pouco nos parece indicativo da figura do filósofo que ele viria a se tornar. Aluno brilhante da École Normale Supérieure, onde conheceria Simone de Beauvoir, Sartre tinha posições céticas e mesmo misantropas quanto aos rumos de sua época; se era pacifista e antimilitarista, não via o engajamento nessas causas como algo que valesse a pena gastar seu tempo. Durante a primeira metade desta década, ocupa-se em dar aulas de filosofia em diversas escolas e dedica-se à lenta e árdua composição de seu romance intitulado A Náusea (1938). A relação de Sartre com a literatura é intensa e formativa desde o início de sua trajetória; são inúmeros os momentos em que o francês se pergunta se seria um escritor literário ou um filósofo. De fato, sua filosofia é permeada por trechos que ultrapassam a mera exemplificação de conceito filosófico e adquirem um estatuto literário, enquanto sua literatura sempre caminhou no mesmo compasso de seus caminhos filosóficos — as reformulações contínuas de A Náusea são reflexo desses últimos. Neste romance de forte cunho autobiográfico, as entradas do diário de Antoine Roquentin que compõem a obra ficcional estão repletas das questões filosóficas com as quais Sartre estava às voltas na década de 1930: a inescrutabilidade do objeto — qualquer que seja, um banco, uma pedra —, a náusea causada pela percepção da falta de sentido inerente a ele, bem como o desencontro entre a palavra que o nomeia; a arbitrariedade não somente das convenções sociais, mas dos próprios hábitos de produção de sentido herdados pela tradição; o descompasso entre aquele que vive a experiência e aquele que reflete posteriormente sobre a experiência vivida.

Essas são algumas das questões com as quais Sartre se debateu em sua contínua leitura crítica da fenomenologia de Husserl. No contexto francês, sua defesa de uma interpretação anti-idealista do filósofo alemão iria na contracorrente do neo-kantianismo e do idealismo de Léon Brunschvicg predominantes à época. Em linhas gerais, seu ponto de partida reside em uma leitura específica da definição do conceito de “Intencionalidade” em Husserl: se toda a consciência seria transitiva, ou seja, seria consciência de algo, então — Sartre afirma — não haveria oposição metafísica entre o interno e o externo. Em outros termos, uma vez que a consciência é voltada para algo além dela, a possibilidade de seu refúgio em uma interioridade pura, intacta, fechada à exterioridade, seria insustentável. Para explicarmos melhor essa virada para fora, voltemo-nos ao seu primeiro ensaio filosófico de maior fôlego, intitulado A Transcendência do Ego (1936). Nele, Sartre insiste na distinção entre duas formas de experiências subjetivas: a pré-reflexiva, que não necessariamente envolveria uma distância com seu objeto intencional; e a reflexiva, que pode tomar sua própria experiência vivida como esse objeto intencional. Essa última não teria acesso ao sujeito que vivenciou uma experiência porque só poderia tomar essa experiência como um objeto sobre o qual se debruça. Em A Náusea, Roquentin percebe que ao escrever seu diário e rememorar o que viveu, ele não conseguiria resgatar quem foi durante os episódios enquanto sujeito, pois a reflexão a respeito deles imporia uma distância que o objetifica tanto quanto ao escrever sobre qualquer assunto: este “Eu” sobre o qual se debruça está jogado no mundo, objeto entre objetos. Já na experiência pré-reflexiva — Sartre nos dá exemplos banais, como correr atrás de um ônibus, checar as horas, observar um retrato —, estaríamos mergulhados no mundo dos objetos, que nesses momentos formariam nossa própria consciência, sendo assim descabido falarmos em um “Eu” isolado do mundo. Essa seria a virada para fora da fenomenologia husserliana, passo central das reflexões de Sartre antes de sua própria formulação do existencialismo.

Concomitantemente a essas reflexões, vive a Segunda Guerra como uma experiência que o fez sentir de súbito todo o peso de uma situação histórica concreta. Sartre foi preso em 1940 durante a ocupação nazista, vivenciou os horrores do campo de detenção e, após sua liberação, testemunhou por anos até o fim da guerra as torturas, as traições e os assassinatos de membros da Resistência francesa que reagiam heroicamente ao estado de coisas. A concepção de O Ser e o Nada é realizada no centro desse contexto, em 1943, fundando de um só golpe o existencialismo sartreano e o imperativo de engajamento político para a figura do intelectual.

Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Fale um pouco sobre o que é a filosofia existencialista e comente em quais pontos a filosofia de Sartre difere de outros pensadores (Como Søren Kierkegaard, por exemplo).

Gustavo de Almeida Nogueira: A filosofia existencialista como a conhecemos surge durante a Segunda Guerra com a publicação de O Ser e o Nada de Sartre em 1943, vindo à proeminência nos anos subsequentes no contexto intelectual francês, junto à sua ampliação em frentes distintas ou divergentes como o existencialismo cristão, de Paul Tillich, e o existencialismo fenomenológico, de Maurice Merleau-Ponty. É importante ressaltarmos que o termo “existencialismo” não foi empregado por Sartre de partida para definir sua obra máxima, mas veio de um leitor de primeiro momento que viu uma afinidade central com a filosofia de Søren Kierkegaard: este também já havia se contraposto à ideia de que haveria uma essência que definisse a priori a vida humana em seus valores, sentidos, possibilidades e destinos. O “pensador subjetivo” de Kierkegaard considera a concretude em primeiro lugar, como ponto de partida para identificar abstrações, e não o inverso; em outras palavras, seria o desenrolar objetivo da existência do indivíduo em suas contínuas decisões que revelaria sua essência. Nesse sentido, uma significativa parte da obra de Friedrich Nietzsche também o coloca entre os precursores do existencialismo, em especial por seu contínuo desmonte de instâncias supra-individuais — a Moral, a religião, Deus — que são tomadas como definidoras das qualidades do humano.

Após um período de rejeição ao termo “existencialismo”, que se popularizava, Sartre mudaria de estratégia e tomaria o leme das interpretações de sua obra para si na sua célebre conferência intitulada O Existencialismo é um Humanismo (realizada em 1945 e publicada no ano seguinte, ainda que sem a anuência de seu autor). Em uma fala que Sartre rejeitaria em vários pontos anos depois, mas que serve até hoje como uma introdução livre de jargões à sua filosofia, o famoso axioma segundo o qual “a existência precede a essência” é explanado e defendido não só apontando uma ausência de pré-determinações específica ao humano, mas também de uma finalidade, não podendo ser definido pela simples perpetuação da espécie. Da angústia dessa indeterminação, implicando a ausência de um sentido prévio, decorrem duas conclusões centrais: a condenação à liberdade — pois mesmo que nos deixemos no determinar pelos outros, por instituições ou convenções sociais, isso também seria sempre uma escolha — e a responsabilidade por um projeto de vida por meio do qual se assume as consequências de suas ações mesmo considerando o risco de embaralhamento que o mundo e as contingências fazem da relação entre intenção e resultado. Cada decisão tomada é uma decisão que define não somente o indivíduo, mas toda a humanidade – sendo essa a soma das decisões individuais, cada um deve ter uma imagem-projeto do que é ser humano.
No próprio gesto dessa fala de Sartre, que consiste em esclarecer o que via como mal entendidos, rebater críticas de hegelianos e marxistas, e expor para um público mais amplo alguns dos pontos fundamentais de O Ser e o Nada, já temos um elemento de distinção de seu existencialismo: o chamado para fora da torre de marfim filosófica, para a ação e pela busca do contato público. Isso faz parte de uma postura de diversos intelectuais existencialistas — ou momentaneamente relacionados ao existencialismo — em seguir o caminho do engajamento e o sentido de coletividade da Resistência francesa na reconstrução do pós-guerra. Dentre diversos exemplos desses intelectuais, a mais proeminente é Simone de Beauvoir; de seu prolífico trabalho, poderíamos citar duas obras em que o engajamento e o existencialismo mostram-se inseparáveis: o romance sobre os anos da França ocupada, O sangue dos outros (1945); e o produto de seus desenvolvimentos próprios do existencialismo no seu estudo central em O Segundo Sexo (1949), sua contribuição máxima ao pensamento feminista. Ainda que sempre crítico à sua definição enquanto existencialista, Albert Camus foi nos anos imediatos do pós-guerra um aliado no debate político e filosófico até sua dissensão em 1951, com a publicação de O Homem Revoltado, obra na qual se afasta definitivamente de qualquer afinidade tanto ao existencialismo quanto ao marxismo.

No que se refere às diferenças do existencialismo de Sartre a outros pensadores, acredito que as mais importantes se encontram em relação com as filosofias a partir das quais ele foi concebido, ou seja, especialmente com as obras de Edmund Husserl e de Martin Heidegger. Quanto ao primeiro, já apontamos algumas das críticas de Sartre durante a década de 1930, mas uma diferença que aparece de modo mais contundente em O Ser e o Nada é a divergência quanto à própria natureza da consciência. Para Husserl, a ideia de que toda consciência seria consciência de algo significaria uma relação de conhecimento com esse objeto para o qual a consciência se dirige; qualquer relação que possa se estabelecer entre um ser e o outro — ou, se quisermos, um indivíduo e outro — é uma relação estrita de um conhecer que continuará enclausurada na consciência daquele que conhece. Sartre convergiria com Heidegger ao negar que a consciência se resumiria ao conhecimento; para o francês, a consciência seria nada menos do que existência, já que, como vimos anteriormente, ela seria tomada pelo objeto ao qual se projeta, sem que haja um distanciamento entre consciência e objeto a partir do qual um conhecimento se estabeleceria, com os polos sujeito-conhecedor e objeto-conhecido mantidos.
Já quanto às diferenças com Heidegger, poderíamos citar aquela que o filósofo
alemão mesmo insistiu em uma crítica a O Existencialismo é um Humanismo, intitulada Carta sobre o Humanismo (1947). Nela, ele ataca a fórmula famosa que diz que “a existência precede a essência” em sua pretensão de que a questão central da existência estaria agora no mundo, na concretude da existência. Para Heidegger, essa afirmação seria apenas uma reversão da ideia básica da metafísica platônica em que “a essência precede a existência”; mesmo trocada, os termos manteriam suas raízes, e a formulação não escaparia da metafísica como Sartre o desejaria.

Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Dê uma explicação sobre a frase “O inferno são os outros”.

Gustavo de Almeida Nogueira: A fama desta frase nos revela a profundidade com que o existencialismo se infiltrou na cultura de massas: tornou-se título de seriados, discos, uma canção dos Titãs, e aparece estampada em camisetas e em citações na web. Fora do contexto original, ela pode parecer uma formulação carregada de misantropia ou mesmo de irresponsabilidade sobre si. Nada seria mais distante da filosofia sartreana. A frase é tirada de uma fala emblemática nos momentos finais da peça Entre quatro paredes, escrita e encenada em 1944, ainda durante a Segunda Guerra. Em linhas gerais, ela trata de três personagens mortos e confinados a um inferno reduzido a uma sala de estar, algo comum; o pior de seus martírios é a convivência entre si. Ao longo da peça, vemos tais personagens se debaterem com o fracasso de seus projetos de vida, a incapacidade de domar seu próprio destino, a irreversibilidade das escolhas e ações tomadas, o inconfessável revelando-se em acusações recíprocas. Procedimento próprio ao gênero teatral, as histórias vão se desvelando a partir da dinâmica dos diálogos, por meio dos quais as verdades particulares escondidas são arrancadas uma a uma e expostas ao olhar dos personagens e de leitores e espectadores.

Nesse confinamento final, eterno e imposto, a avaliação do que se fez com a vida passa a depender do reconhecimento que o outro lhe concede. Em desespero, a comunicação, para as três personagens, torna-se uma necessidade humana, cujo preço encontra síntese na famosa frase. “O inferno são os outros” porque a determinação de quem se é e o controle de seu próprio destino esbarra na força que o outro lhe impõe em cercear sua liberdade, delimitada a partir da prisão da objetificação estática que o outro faz de seu ser: és isso, objeto, e não sujeito. A prisão do passado, lembrado e acusado pelo outro, é o fator que impede, na peça, que as personagens exerçam sua liberdade de autodeterminação para se recriarem continuamente.

Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Qual a influência de Sartre na filosofia atual?

Gustavo de Almeida Nogueira: Para figuras que tiveram uma influência tão intensa e abrangente por anos, como é o caso de Sartre, diria que sua maior influência atual é a marca de sua importância histórica. Se o trabalho filosófico é impensável sem uma construção contínua da história da filosofia, com sua releitura de caminhos, reformulações de conceitos e sua criação a partir da atualização do que se fez ou do que se deixou por fazer, então o existencialismo sartreano e sua postura engajada seguem como um momento inescapável para se compreender a filosofia do século 20 e seus meios de circulação.
O apagamento de Sartre após seu apogeu na década de 1950 nos dá a justa dimensão de sua importância. Poucos filósofos enfrentaram um deslocamento tão brusco para fora do centro dos debates filosóficos como o que ocorreu com o autor de O Ser e o Nada. Em grande medida, isso ocorreu pela ascensão do estruturalismo e sua realocação da questão da linguagem para o foco das reflexões, em defesas que contrastavam diretamente com as de Sartre: a limitação da palavra em estabelecer relações com quaisquer referenciais externos que não sejam outras palavras em outros textos, a autorreferencialidade inescapável à literatura etc. São defesas que se estabelecem em contraposição a determinados projetos sartreanos, como o de lançar a palavra no mundo e de estabilizar suas definições para que haja um chão comum no debate público. Esse esforço foi realizado no contexto de oposição à guerra semântica das ideologias do pós-guerra que puxavam cada uma para seu lado os significados de palavras como “liberdade”. Tal preocupação foi vista pela onda estruturalista como uma grande ingenuidade frente à natureza instável própria ao sistema da linguagem. Entretanto, não é a isso que voltamos quando discutimos hoje, por exemplo, quanto à defesa de uma suposta “liberdade de expressão” que a extrema-direita se diz representar ao escamotear o discurso de ódio?
Ao fim, a importância do que relegou o existencialismo como algo datado é impensável sem sua oposição a Sartre e nos dá a medida de sua influência à época. Sartre é o último filósofo do ocidente a ter uma centralidade que perdurou por décadas, em uma extensão verdadeiramente global, nas mais diversas frentes: filosofia; crítica e recepção das obras literárias; colonialismo e neocolonialismo; e os debates políticos da ordem do dia comentados imediatamente no calor da hora, como era imperativo à atuação do intelectual engajado conforme o concebeu, defendeu e encarnou. Seria também difícil dimensionar a infiltração do existencialismo sartreano na cultura de massas; não houve filosofia que tenha penetrado tanto a cultura pop desde então. Por desencontros próprios à mercantilização das ideias, o existencialismo acabou se tornando em parte uma consolidação da figura do francês blasé da segunda metade do século 20. Nada poderia ser mais oposto à figura sartreana: o que une todas as suas facetas é o combate à indiferença, ao conformismo solipsista, à dessensibilização frente à opressão e um chamado à ação direta.

A variedade e o volume impressionantes de seus escritos reunidos nos volumes intitulados Situações revelam a extensão da influência de sua obra: há ensaios de crítica e política, análise de figuras históricas em uma combinação particular de psicanálise existencialista e marxismo; artigos sobre colonialismo e neocolonialismo que demonstram um esforço de anulação da visão eurocêntrica raro entre filósofos europeus de sua época, como o prefácio a Os Condenados da Terra (1961) de Frantz Fanon. Toda essa atividade concorre para a consolidação da figura do intelectual engajado. Nesse sentido, sua importância é melhor compreendida quando nos atentamos para a predominância da figura do intelectual isolado no contexto europeu, o intelectual da torre de marfim, ou no Grande Hotel Abismo – conforme a imagem de Lukács em crítica a essa postura. Se temos hoje uma desconfiança produtiva e saudável quanto à atividade intelectual fechada em si, isso deve em parte ao exemplo contrário de figuras  como a de Sartre

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Gustavo de Almeida Nogueira é graduado em Letras (Português e Francês) pela (USP), mestre em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) e doutorando pelo mesmo departamento.