Livros e documentos pessoais que pertenceram ao professor estão à disposição para pesquisas e outras atividades acadêmicas
O acervo do professor Paul Singer, falecido em 2018, está aberto para pesquisas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Reunindo cerca de 9 mil itens de sua biblioteca e documentação pessoal, a coleção está disponível para consulta pública e uso em cursos de graduação, pós-graduação e extensão, além de seminários e exposições que vierem a ser feitas pelo IEB.
Doado pela família de Singer em 2018, o material já havia passado pelos protocolos de conservação em 2019. Após a pandemia, entre 2022 e 2023, os trabalhos foram retomados, com o início da catalogação e da descrição, sendo realizados por funcionários e estagiários do IEB, com a colaboração do Instituto Paul Singer.
Para o professor Alexandre de Freitas Barbosa, do IEB, um dos maiores especialistas na obra de Paul Singer, a presença do acervo no instituto é muito significativa porque, em primeiro lugar, significa estar dentro da própria USP, um dos espaços de atuação mais importantes da trajetória de Singer.
Graduado na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP no final dos anos 1950, Singer tornou-se professor da instituição logo em seguida. Depois, defendeu seu doutorado, orientado pelo sociólogo Florestan Fernandes, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP. Tornou-se então, na segunda metade dos anos 1960, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, onde realizou sua livre-docência. Aposentado compulsoriamente pela ditadura militar, retornaria como docente para a FEA nos anos 1980. “Singer é um professor com toda uma atividade política mesclada a uma trajetória acadêmica feita na USP”, comenta Barbosa. “O acervo está na Universidade em que ele atuou.”
O professor destaca ainda que, no IEB, o acervo de Singer está “em ótima companhia”. Ele compartilha salas, estantes e arquivos com as coleções de outros grandes pensadores brasileiros, como Celso Furtado, Caio Prado Júnior, Milton Santos e o amigo Antonio Candido, espécie de mestre de Singer durante seu período no antigo Partido Socialista Brasileiro (PSB).
A importância, entretanto, é de mão dupla, pontua Barbosa. Isso porque o acervo de Singer conta parte importante da história da esquerda democrática brasileira, sendo valioso para o IEB. “O arquivo de Paul Singer se destaca por si só”, afirma o docente. “Ele sempre tentou entrar em partidos de participação, da perspectiva da classe trabalhadora, desde os anos 1950, quando foi dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo na famosa greve dos 300 mil. Há toda uma trajetória ali.”
Trajetória essa que resultou em reflexões teóricas checadas e lapidadas a partir do contato com os movimentos populares, frisa Barbosa. Um pensamento enraizado. Como pode ser visto – aponta o professor – na ideia da economia solidária, da qual Singer se tornou o principal nome, assumindo a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) de 2003 a 2016.
“A economia solidária era uma aposta no socialismo, uma atuação nos interstícios do capitalismo, buscando se tornar um modo de produção dominante”, analisa Barbosa. “A perspectiva socialista de Singer era de base popular, muito influenciada pela obra de Rosa Luxemburgo.”
No acervo sob os cuidados do IEB é possível mapear as referências e reflexões que levariam à formulação da ideia de economia solidária, além de outras facetas intelectuais, militantes e pessoais de Singer. Como o panorama da esquerda democrática e o papel do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) – que Singer ajudou a fundar em 1969, após ser aposentado compulsoriamente da USP – como pólo do pensamento crítico no período da ditadura militar. E também a centralidade de Singer no Partido dos Trabalhadores (PT), desde sua fundação, nos anos 1980, sua atuação como secretário do Planejamento do município de São Paulo na gestão de Luiza Erundina (1989-1992) e a criação da Incubadora USP de Cooperativas Populares, em 1998.
Um percurso sempre ancorado na perspectiva da classe trabalhadora, sublinha Barbosa. Uma circulação pela Universidade, mas também pelo debate público, atuando de acordo com os espaços e os momentos históricos que se impuseram. O que não significa dispersão do pensamento, indica o professor. As reflexões que levariam à economia solidária, por exemplo, já estariam em escritos do início dos anos 1970 sobre a relação dos setores informais da economia com o capitalismo. “A economia solidária ainda não estava no radar, mas a moldura teórica que permitiria colocá-la no centro da questão já estava presente nos anos 1970.”
Esse é só um exemplo, para Barbosa, de como Singer elaborou uma interpretação do Brasil que não está concentrada em uma única obra exemplar, mas que se espalha por seus livros, entrevistas e outros materiais que agora estão disponíveis para pesquisa no IEB. “Singer se proliferava tanto na atuação política que sua obra teórica acabou não sendo valorizada como deveria. Essa é uma agenda de pesquisa e, nesse sentido, seu acervo merece destaque.”
Militância e coerência política
Quem escutou essas palavras de Barbosa foi a jornalista Paula Quental, que inaugurou as pesquisas no acervo de Paul Singer. Sob orientação de Barbosa, Paula apresentou, no primeiro semestre de 2024, no IEB, sua dissertação de mestrado, intitulada A Trajetória Política e Intelectual de Paul Singer: da Crítica Marxista à Economia Solidária. O trabalho não só teve como base os documentos sob guarda do IEB, mas foi, inclusive, moldado pelo acervo.
Paula conta que o interesse pela economia solidária já vinha de muito antes, quando o tema a conquistou para a ideia de um portal de notícias especializado no assunto, ainda em 2012. O projeto não foi adiante, mas a jornalista se encontraria com Singer em 2014, para entrevistá-lo. Familiarizada principalmente com o tema da economia solidária, Paula ingressou no mestrado com a ideia de pesquisar os últimos 20 anos da atuação intelectual e política de Singer. Um período que compreende sua passagem pela Senaes e representa, ao mesmo tempo, uma diminuição no ritmo de sua produção teórica.
“É quando Singer coloca em prática tudo que havia produzido teoricamente”, diz Paula. Com essa perspectiva, a pesquisadora pretendia investigar o acervo atrás do que Singer havia escrito, mas não publicado. O intuito seria refletir a respeito das possíveis diferenças entre a teoria do intelectual e a prática do gestor público.
A entrada de Paula na pós-graduação, contudo, ocorreu exatamente durante a pandemia de covid-19. Com isso, ela só pôde ter acesso aos documentos guardados no IEB em 2022, encontrando-os ainda desorganizados em virtude da interrupção dos trabalhos de catalogação e descrição provocada pela pandemia. “Havia caixas mais ou menos organizadas pela secretária de Singer, com carteira de trabalho, diplomas, artigos antigos, coisas dos anos 1940 e 1950, pastas com documentos de sua passagem pela Secretaria de Planejamento de São Paulo”, relembra. O material mais recente, porém, que seria a base para sua pesquisa, estava em grande parte digitalizado e repartido em várias mídias, tornando a pesquisa mais difícil.
“Diante de um acervo ainda desorganizado, o que você faz? Começa pelo princípio, pelos documentos mais antigos”, explica a pesquisadora. Foi assim que Paula teve contato com os materiais dos anos 1940 e 1950, que documentavam a trajetória política de Singer nas organizações de esquerda durante a juventude. Tratavam-se de manuscritos, cartas, esboços de propostas políticas, anotações de reuniões, estatutos e outras atividades da militância. Diante disso, Paula reorientou sua pesquisa, focando a trajetória política e intelectual de Singer.
Analisando essa documentação, Paula encontrou uma coerência na atuação de Singer que a impressionou. “Ele sempre foi um socialista, mas crítico ao Partido Comunista e à fórmula soviética. Sempre se posicionou no socialismo democrático. Por isso estava no antigo PSB, uma vertente minoritária da esquerda crítica à União Soviética. E ele ficou nessa vertente a vida toda, até fundar o PT.”
Graças a essa coerência e à militância constante ao longo da vida, a pesquisadora considera que falar do homem Paul Singer revela não apenas seus caminhos, mas um quadro mais abrangente da política do País, como também acredita Barbosa. “Contar a história de Paul Singer é contar a história de uma vertente da esquerda brasileira”, afirma Paula. “É algo além da trajetória do homem e do intelectual.”
De acordo com a pesquisadora, o material do acervo mostra como Singer se envolveu profundamente nas organizações de que participou. Redigia documentos e assumia cargos de liderança, desde cedo. Paula encontrou textos de um jovem Singer, de 16 anos, escritos para o jornal da organização sionista socialista Dror. Uma atuação na imprensa que seguiu por toda a vida. “Singer contribuiu com vários jornais da esquerda. Ele tinha esses aspectos do intelectual, do militante e do divulgador”, diz a pesquisadora. “Ele tinha realmente a alma do militante. Tornou-se intelectual para subsidiar a própria militância.”
O acervo também permitiu a Paula atestar o interesse precoce e o entendimento profundo que Singer tinha do marxismo, fruto de leituras realizadas desde, pelo menos, os 16 anos. Um conhecimento que o fez ser convidado, ainda durante a graduação em Economia, para integrar o famoso grupo de estudos de O Capital, de Karl Marx, do qual participaram nomes como José Arthur Giannotti, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni e Fernando Novais.
Desse domínio do pensamento marxista, Singer fazia inspiração, não dogmatismo. Escrevia e pensava sobre modos de produção alternativos dentro do próprio capitalismo. Uma influência – não muito comentada pelo próprio Singer – de Rosa Luxemburgo, que seria considerada heresia pelo marxismo clássico, pontua Paula.
“Ele trazia uma série de inovações, preocupado com o trabalho informal e as diferenças entre a realidade industrial europeia e a brasileira”, comenta a pesquisadora. “E isso é interessante. Quando admite vários modos de produção, inclusive não capitalistas dentro do capitalismo, Singer já começa a criar o embrião da economia solidária”, explica Paula, fazendo coro à visão de Barbosa.
Paula explica que Singer via a economia solidária como um modo novo de produção, que poderia levar ao socialismo por uma via paralela – e mais importante – do que a tomada do poder político. Isso porque Singer acreditava que a mudança deveria acontecer na sociedade. “Ninguém vê o que há na economia solidária como percurso para o socialismo”, considera a pesquisadora. “Eu só fui entender a consistência do projeto da economia solidária a partir da pesquisa. Entender a trajetória de Singer mostra a consistência da própria trajetória da economia solidária”, finaliza.
Mais informações estão disponíveis no site do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.
*Texto de Luiz Prado, publicado no Jornal da USP