Dia da Consciência Negra

Data marca a luta do movimento negro para se apropriar de narrativas e de trajetórias que representam a identidade afrodescendente e a luta antirracista

Por
Gabriela César
Data de Publicação

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"Tornar o Dia da Consciência Negra um feriado nacional pode contribuir para a popularização da data e consequente aumento da visibilidade das pautas raciais. Implica inferir que a problemática racial é uma questão que envolve toda a sociedade brasileira." diz Eliany Cristina Ortiz Funari (Arte por: Gabriela César/ Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

No dia 20 de novembro é comemorado o dia da Consciência Negra em referência à presumida morte de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares. Símbolo da resistência negra, a data “propõe revisitar o passado histórico, porém com o olhar voltado para os desafios do presente e para as propostas de possíveis futuros”, como afirma a pesquisadora Eliany Cristina Ortiz Funari, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Há discussões acerca da elegibilidade do dia 13 de maio, celebrado o dia da assinatura da Lei Áurea, como a data com maior representatividade para o movimento negro. Isso porque, de acordo com a pesquisadora, apesar de ter exisitido apoiadores negros abolicionistas na luta antiescravista, a data se associa a uma noção idealizada de “benevolência” ligada à imagem da Princesa Isabel. Por isso, o grupo de estudiosos negros, denominado Grupo Palmares, buscou um melhor momento histórico representativo para o movimento, o que os levou ao dia 20 de novembro e à Zumbi dos Palmares. 

Pela primeira vez, em 2024, o dia da Consciência Negra será celebrado como feriado nacional, a partir da Lei 14.759/2023, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Essa ação reflete a luta do movimento negro pela busca de espaço, pela apropriação de suas perspectivas históricas e, dessa forma, a liberdade de reivindicação para eleger figuras representativas.

Além da comemoração em novembro, os movimentos sociais que defendem pautas raciais buscam visibilidade à causa não só neste mês, mas ao longo de todo o ano. Assim, esses grupos organizados almejam por políticas afirmativas que visem  “a superação das enormes e injustas desigualdades que ainda recaem sobre a população afrodescendente”, conforme diz a professora Maria Helena P. T. Machado, do Departamento de História da FFLCH. 

O Serviço de Comunicação Social da FFLCH entrevistou Eliany Cristina Ortiz Funari e Maria Helena P. T. para falar sobre o Dia da Consciência Negra. Confira a seguir as entrevistas:

Eliany Cristina Ortiz Funari

Serviço de Comunicação Social: Por que o dia da Consciência Negra é celebrado em 20 de novembro? Comente a relevância da data para o movimento negro na atualidade e no passado.

Eliany Cristina Ortiz Funari: A designação do dia 20 de novembro para celebrar o Dia da Consciência Negra é uma proposta gestada no seio de setores do movimento negro e faz referência à memória de Zumbi dos Palmares como figura histórica alçada a ícone da resistência à escravidão transatlântica e opressão colonial no Brasil. O dia escolhido remete à presumida data da morte de Zumbi, em 1695, à frente do Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, em Alagoas. A associação do Dia da Consciência Negra à imagem de Zumbi dos Palmares afere às lutas seculares da população negra por liberdade e justiça racial que envolvem a simbologia do 20 de novembro. Sua celebração oficial pelo Estado brasileiro tornou-se um marco de conquista do movimento negro com a aprovação da lei 12.519, de 10 de novembro de 2011, que instituiu o dia nacional de Zumbi e da Consciência Negra, e da lei 14.759, de 21 de dezembro de 2023, consolidando esse dia como feriado nacional, após décadas de reivindicação da data por parte de movimentos organizados. 

Em 4 de novembro de 1978, o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR) declarou, por meio da proclamação de um Manifesto Nacional, o dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, pronunciando:

“Nós, negros brasileiros, orgulhosos por descendermos de ZUMBI, líder da República Negra de Palmares, que existiu no estado de Alagoas, de 1595 a 1695, desafiando o domínio português e até holandês, nos reunimos hoje, após 283 anos para declarar a todo povo brasileiro nossa verdadeira e efetiva data, 20 de novembro, DIA NACIONAL DA CONSCIÊNCIA NEGRA! (...)”.

No entanto, pesquisas mostram que desde 1971, em Porto Alegre, um grupo cultural de estudiosos negros denominado Grupo Palmares já exaltava o 20 de novembro como uma data mais representativa para a população negra em detrimento da celebração do 13 de maio, data de assinatura da Lei Áurea, que instituía a abolição do sistema escravista no Brasil. Apesar de toda articulação de setores negros da sociedade que integraram o movimento abolicionista em pressão pelo fim da escravidão, o formalismo oficial do 13 de maio associado a uma ideia de “benevolência” vinculada à imagem da Princesa Isabel levaram esse grupo de pesquisadores a buscar uma data alternativa que melhor representasse o protagonismo negro nas lutas e conquistas de emancipação, chegando assim a Palmares (que deu nome ao Grupo), à Zumbi e ao 20 de novembro.

O reconhecimento do Dia da Consciência Negra pelo Estado brasileiro se consagra como uma vitória da população negra envolvida em mobilizações sociais, culturais e políticas organizadas a que se convencionou chamar de movimento negro, tratado pela pesquisadora Nilma Lino Gomes como agente educador e transformador. Um movimento que propõe revisitar o passado histórico, porém com o olhar voltado para os desafios do presente e para as propostas de possíveis futuros. 

Serviço de Comunicação Social: O que representa a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em dezembro de 2023, de tornar o dia da Consciência Negra feriado nacional?

Eliany Cristina Ortiz Funari: Tornar o Dia da Consciência Negra um feriado nacional pode contribuir para a popularização da data e consequente aumento da visibilidade das pautas raciais. Implica inferir que a problemática racial é uma questão que envolve toda a sociedade brasileira. 
Nas palavras de Lélia González, “o 20 de novembro transformou-se num ato político de afirmação da história do povo negro” (González, 1982, p.57). Assim, a assimilação do Dia da Consciência Negra como feriado nacional reconhece o espaço conquistado pelos movimentos negros para se apropriar de suas próprias narrativas históricas e contemplar trajetórias que lhes representam, incluindo o poder de elegibilidade dos chamados heróis, como foi o caso com Zumbi dos Palmares, hoje tornado figura de relevância histórica nacional. Fortalece narrativas que retiram a pessoa negra do lugar comum do “escravo” ou “descendente de escravo”, onde ela é apenas vinculada a uma força de trabalho, sem história, sem conhecimento. Narrativas que exaltam a diversidade civilizatória de origem africana que se instaurou no Brasil nos seus mais variados aspectos, seja cultural, científico, artístico, tecnológico, agindo diretamente na autoestima e orgulho da população negra, muitas vezes estilhaçada por inferiorização e estigmatização racistas. Semelhantemente ao que propunha Steve Biko, ativista e autor do Movimento de Consciência Negra na África do Sul, “a consciência negra procura infundir na comunidade negra um novo orgulho de si mesma, de seus esforços, seus sistemas de valores, sua cultura, religião e maneira de ver a vida”.

Serviço de Comunicação Social: Para além do dia da Consciência Negra, quais políticas sociais se fazem necessárias para a conscientização sobre a data e para a ampliação dos direitos da comunidade negra?

Eliany Cristina Ortiz Funari: O entendimento do significado histórico e cultural do Dia da Consciência Negra não pode estar restrito ao mês de novembro. Ele passa por projetos educativos mais amplos, que garantam a aplicação efetiva das leis 10.639/03 e 11.645/08, de obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena, mas também passa pela expansão do escopo da educação. Em uma sociedade que tem o letramento racial falho, se faz necessário que a educação de combate ao racismo chegue não só às escolas e universidades, mas também ao setor empresarial, às diversas entidades sociais, instituições públicas e privadas, e às grandes mídias. 

A sociedade brasileira carrega as marcas sociais deixadas por séculos de escravização e subalternização da população negra que se traduzem em violação de direitos. A perseguição religiosa sofrida pelas religiões de matrizes afro-brasileiras, os ataques a comunidades tradicionais de terreiro, o índice de mortalidade de jovens negros alvos da truculência policial e do tráfico de drogas, a violência obstétrica sofrida em maior número por mulheres negras, são alguns poucos exemplos de como a hierarquização racial ainda se faz presente tornando desigual o direito à vida digna no Brasil. A população negra ainda sofre em massa com a exclusão do acesso a direitos básicos e a almejada liberdade se torna mais distante quando só se vive para sobreviver. Diante desse cenário, a necessária ocupação de espaços de decisão por parte de setores negros precisa estar vinculada a políticas sociais robustas de reparação, distribuição de renda, reforma agrária, saúde, moradia, educação.

Maria Helena Pereira Toledo Machado

Serviço de Comunicação Social: Por que o dia da Consciência Negra é celebrado em 20 de novembro? Comente a relevância da data para o movimento negro na atualidade e no passado.

Maria Helena P. T. Machado: O dia da Consciência Negra ao rememorar o Quilombo dos Palmares e a figura de Zumbi adquire enorme relevância histórica para a sociedade brasileira, que ainda precisa se conscientizar das injustiças do passado e para a intensa e corajosa resistência dos africanos e afrodescendentes frente a opressão da sociedade escravista e pós-abolição, chegando aos dias de hoje. É preciso notar também que a data de 20 de novembro relembra todas as lutas encetadas pelos homens e mulheres escravizados, que foram trazidos ao Brasil de maneira forçada pelo tráfico ou nasceram aqui e se mantiveram escravizados por força do princípio do “pater sequitur ventrem”, isto é, que o filho ou filha segue o status materno.

Serviço de Comunicação Social: O que representa a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em dezembro de 2023, de tornar o dia da Consciência Negra feriado nacional?

Maria Helena P. T. Machado: É um momento importante pois serve para nos manter alerta para que a data não seja mais esquecida e sim mantida como um feriado tão importante quanto o 7 de setembro, o 15 de novembro, entre outras datas nacionais.

Serviço de Comunicação Social: Para além do dia da Consciência Negra, quais políticas sociais se fazem necessárias para a conscientização sobre a data e para a ampliação dos direitos da comunidade negra?
Maria Helena P. T. Machado: A comemoração do dia da Consciência Negra deve lembrar-nos da necessidade do estabelecimento de políticas públicas efetivas para a superação das enormes e injustas desigualdades que ainda recaem sobre a população afrodescendente, majoritária em nosso país.

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Eliany Cristina Ortiz Funari é bacharela e licenciada em Letras, com habilitação em inglês e português pela Universidade de São Paulo. Possui mestrado em Estética e História da Arte pelo Programa de Pós Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP e é doutoranda em História Social pela FFLCH USP. Sua produção acadêmica é voltada para a área de arte e cultura afro-brasileira, com ênfase em História e Historiografia da Arte, Danças e Expressões Culturais do Recôncavo Baiano.

Maria Helena P. T. Machado é professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas na USP, com especialidade história social da escravidão, abolição e pós-emancipação e ênfase em gênero e maternidade na escravidão, processo social da abolição, naturalistas, representação visual e teorias raciais no século XIX.