Obra, considerada por muitos parte do cânone literário, retrata a instituição do casamento no século 19
No dia 28 de janeiro de 1813, foi publicado o romance Orgulho e Preconceito, da escritora inglesa Jane Austen. A obra, considerada por muitos parte do cânone literário, retrata a instituição do casamento no século 19, especialmente a construção da relação das personagens Elizabeth e Darcy.
O enredo de Orgulho e Preconceito, de início, pode parecer simples: duas pessoas que, ao longo da narrativa, apaixonam-se e casam-se. Entretanto, como aponta Nara Dias, doutoranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP: “Orgulho e Preconceito traz de forma sutil questões sobre a posição da mulher na sociedade, sobre desigualdade de renda e preconceito de classe. Isso para citar alguns temas tratados ali.”
Ao se aprofundar no desenvolvimento do casal principal, Elizabeth e Darcy, nota-se que a obra remete aos padrões atuais cinematográficos de comédias românticas. No início da história, os dois estão muito distantes um do outro, física e sentimentalmente. A obra se desenrola por aproximações mútuas, resultando na superação de preconceitos preestabelecidos por ambos, especialmente por Darcy, que passa a admirar a inteligência de Elizabeth. Por fim, os dois se apaixonam.
Além de abordar questões sociais, a própria publicação do livro desencadeou reflexões e críticas, visto que foi escrito por uma mulher, algo incomum na época. Jane Austen, com seu estilo irônico e descritivo, conseguiu conquistar um espaço na literatura mundial, ainda que as figuras femininas de seu período não fossem educadas para tal papel.
Uma das explicações para a alta difusão da obra pelo mundo é “a escrita racional e a capacidade de observação crítica do mundo à sua volta (por Jane Austen)”, segundo Nara. Embora a autora integrasse uma classe social privilegiada, ela possuía a capacidade de descrição crítica das realidades presentes na Inglaterra durante sua vida. Assim, a narrativa se aproxima de um retrato histórico da época de Austen.
Confira a entrevista completa com Nara Dias concedida ao Serviço de Comunicação Social da FFLCH:
Serviço de Comunicação Social: Qual o enredo principal em Orgulho e Preconceito e qual a intersecção da narrativa literária com a história pessoal da autora Jane Austen?
Nara Dias: O livro tem início com uma conversa entre Mr. e Mrs. Bennet sobre um pretendente para as filhas. O problema que eles enfrentam é que as moças precisam se casar, pois a casa onde eles moram não será mais delas quando o pai falecer. Então, boa parte da narrativa de Orgulho e Preconceito gira em torno da instituição do casamento, e quatro uniões se completam até o fim da história. Mas a forma como cada casal se une é relevante, e o leitor atento percebe questões de classe e gênero debatidas ao longo da narrativa. Por exemplo, durante os primeiros encontros entre Mr. Darcy e Elizabeth, o orgulho entra em jogo: Darcy se sente muito superior a ela do ponto de vista de classe social, e luta contra a atração que sente; Elizabeth tem seu orgulho ferido, e se revolta. É muito interessante ver a forma como os dois personagens se aproximam, o que passa pela admiração de Mr. Darcy pela inteligência de Elizabeth – um ponto muito importante, visto que, na época em que o romance foi publicado, as mulheres não eram vistas exatamente como criaturas racionais, mas como seres belos e agradáveis. A partir dessa admiração de Darcy, o encanto entre eles vai crescendo. Mas eles só conseguem ficar juntos pois aprendem ao longo da narrativa: no fim do romance, eles não são os mesmos do início.
Assim, o enredo de Orgulho e Preconceito parece bastante simples: dois jovens se encontram, um relacionamento entre eles se desenvolve, até que eles percebem que estão apaixonados. Depois de alguns obstáculos, eles se casam. O que diferencia esse romance de outros com uma história parecida é que essa primeira impressão é apenas isso: a camada mais superficial de entendimento que podemos ter com a leitura.
Sobre a intersecção da obra com a vida de Austen, a autora estava em uma posição privilegiada para observar, na vida real, todas essas personagens que retrata nos livros, no sentido de que tinha uma família bem estabelecida socialmente, com contatos que iam da burguesia até classes sociais mais altas. Portanto, ela conseguia conviver com pessoas de várias camadas da sociedade. O que, é claro, não adiantaria muito se ela não tivesse uma capacidade de observação e pensamento crítico admiráveis.
Serviço de Comunicação Social: Orgulho e Preconceito já foi adaptado diversas vezes para a indústria cinematográfica e para peças teatrais. A partir disso, qual a importância da obra para a literatura mundial? Qual a origem de sua relevância?
Nara Dias: Se a gente parar para pensar, Orgulho e Preconceito tem, à primeira vista, uma história bastante parecida com a de diversos filmes de comédia romântica contemporâneos, o que pode ter contribuído para sua difusão. É algo familiar, com diálogos muito fluidos. E, como permite diversos níveis de interpretação, atende também a todos os públicos. Se você quiser ler um livro, ou assistir a um filme tranquilo, para descansar e fácil de entender, vai gostar dessa história. É uma delícia! Mas, claro, há por trás do final feliz (que já foi comparado a contos de fadas) muita profundidade envolvida. E talvez seja aí que começa a força do romance, o que o destaca nesse mar de histórias sobre casamento. Orgulho e Preconceito traz de forma sutil questões sobre a posição da mulher na sociedade, sobre desigualdade de renda e preconceito de classe. Isso para citar alguns temas tratados ali.
Agora, é difícil pensar sobre a origem da relevância de uma obra. Existe um filtro invisível na história que escolhe alguns livros para fazerem parte desse cânone de grandes obras. Às vezes alguns autores muito bons podem ser esquecidos, e outros não tão bons entram para a lista por motivos políticos ou circunstanciais. Penso que o tempo é um bom regulador nesse processo. Depois de algumas décadas, autores esquecidos podem ser resgatados, e outros são deixados para trás.
Falo isso pois Orgulho e Preconceito me intriga um pouco nesse aspecto. Quando foi publicado, o livro foi bem aceito pela crítica, que o entendia como uma obra para “boas moças”, como se recomendasse bons comportamentos, e era escrito por uma autora modesta, que nem ao menos assinava o livro. Depois, percebeu-se uma influência do Iluminismo nas ideias contidas ali, e parte da crítica passou a aproximar o livro com a luta pela emancipação da mulher. Ou seja, o exato oposto! O mundo mudou, a posição da mulher no mundo mudou também, mas o livro continuou relevante. Talvez os diversos níveis de leitura possíveis tenham contribuído para isso. Ou talvez essa seja uma característica das verdadeiras obras de arte: elas não passam com o tempo.
Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Jane Austen em Orgulho e Preconceito? Qual o peso de ter sido uma mulher a escrever o livro, que é tão difundido socialmente?
Nara Dias: Não se pode falar do estilo de Austen sem considerar a ironia presente nas narrativas. Esse é um dos aspectos mais lembrados na escrita da autora. Mas, em Orgulho e Preconceito, o cenário é também muito importante, assim como a passagem do tempo. A casa em que se está, a estação do ano, o que se vê pelas janelas... Tudo isso contribui para a grandeza do livro. Austen incluía muito bem esses elementos na obra, de forma que o leitor nem percebe, caso não preste atenção. É isso que no fim dá um caráter tridimensional para a história – é possível mergulhar naquele mundo quase como se fosse real. E a evolução dos personagens acompanha esse movimento do que está em volta deles.
O texto em si é quase impecável. Austen revisava várias vezes suas obras e, no caso de Orgulho e Preconceito, temos um registro dela dizendo que tinha “lopt and cropt the manuscript”, ou seja, algo como “podado e cortado o manuscrito”. O resultado disso são diálogos que podem ser transpostos diretamente para o cinema, quase sem alteração, visto a naturalidade deles.
A escrita racional e a capacidade de observação crítica do mundo à sua volta também caracterizam Austen. E talvez essas características tenham contribuído bastante para sua relevância mundial, pois as obras de Austen acabaram se tornando retratos importantes da época em que escreveu.
Agora, quanto ao fato de ter sido uma mulher a escrever esse livro, penso que em um mundo ideal isso não seria relevante. Mas acaba sendo, bastante! Por diversos motivos, o filtro invisível sobre o qual falávamos acabou selecionando muito mais obras escritas por homens do que por mulheres. É fácil observar isso. Basta ler as listas de “100 melhores obras de todos os tempos” que costumam ser publicadas por jornais e revistas para perceber a disparidade entre autores e autoras. Já encontrei listas nas quais, entre 100 escritores, apenas 8 eram mulheres (e uma delas costuma ser George Elliot, que assinava com um nome masculino para ser levada a sério pela crítica). Não acredito que isso seja reflexo de uma habilidade maior de homens na escrita. Na verdade, tenho certeza de que não se trata disso. A questão é que a tradição masculina na escrita e na crítica literária é difícil de ser quebrada.
A própria Austen defende algo nesse sentido em Persuasão. Em um debate sobre a inconstância feminina, a protagonista Anne diz: “Os homens tiveram todos os benefícios ao contar a própria história. Eles têm muito mais acesso à educação; a caneta sempre esteve nas mãos deles. Eu não permitirei que os livros sirvam de prova”. E, de fato, na época em que Austen escreveu, as mulheres tinham pouco acesso à educação. Elas aprendiam costura, pintura, canto. Coisas que, em tese, as tornariam mais atraentes. É por isso que é tão interessante o fato de a atração de Darcy por Elizabeth em Orgulho e Preconceito girar em torno da inteligência.
A recepção de obras escritas por mulheres tem mudado nos últimos anos, felizmente. Mas, na minha opinião, ainda está longe do ideal. E Jane Austen sempre teve uma boa recepção. Ela era uma mulher, escrevendo sobre mulheres em um mundo que dava pouquíssimas oportunidades de aventuras para elas. É preciso ser uma grande autora para conquistar seu espaço em um contexto assim.
Serviço de Comunicação Social: Como a obra é inserida, estudada e recebida atualmente no contexto acadêmico da FFLCH (baseando-se no seu conhecimento e experiência)?
Nara Dias: Jane Austen é consagrada no cânone. Então imagino que sempre vai ser estudada. Os estudos que já vi sobre a obra dela são bastante variados também, indo desde questões relacionadas às mulheres, até estudos históricos e de classe, recepção crítica, estudos comparativos da obra com suas adaptações, entre outros.
Nara Luiza do Amaral Dias é doutoranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela FFLCH USP. Seu mestrado, A razão em Jane Austen: classe, gênero e casamento em Orgulho e Preconceito, foi defendido no Programa de Pós-Graduação de Linguística da mesma instituição. É formada em Jornalismo pela PUC-Campinas e em Letras e Licenciatura em Português/Inglês pela FFLCH USP.