Mulheres dos séculos 19 e 20 encontravam espaços de poder e orgulho dentro das cozinhas

Pesquisa investigou objetos presentes na vida das donas de casa, que eram símbolos de poder e afirmação de sua própria identidade

Por
Astral Souto
Data de Publicação

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Limpar o chão, fazer comida para toda a família, administrar a despensa, lavar a louça, cuidar dos filhos e planejar a rotina de todos. Esses são alguns dos afazeres historicamente associados às mulheres. O espaço ocupado por elas, normalmente, é restringido ao ambiente doméstico. Nos séculos 19 e 20, poucas conseguiam cursar uma faculdade ou ter empregos que iam além do trabalho de casa.

Esse sistema limitante, por muito tempo foi aceito juridicamente, principalmente por meio do Código Civil de 1916, que cerceava a liberdade da mulher a partir de uma ideia de naturalidade, como se a vida confinada à cozinha fosse inerente ao corpo feminino. Porém, mesmo com a autoridade do marido dentro de casa, as mulheres achavam meios para se sentirem importantes e orgulhosas, ao mesmo tempo que eram submissas à família.

Esse foi o tema central da tese de doutorado de Viviane Soares Aguiar intitulada As chaves, os cadernos e as mulheres: poderes e produção de si nas cozinhas domésticas (São Paulo, 1870-1960), defendida em fevereiro de 2025, que analisou objetos que simbolizam a ressignificação de prisão para o espaço de poder para as donas de casa não remuneradas, entre o período de 1870 e 1960. Para a pesquisadora, os objetos que mais se destacavam nessa função eram as chaves da despensa e os cadernos de receita. 

A chave tinha um valor simbólico de poder importante para as mulheres, pois, em uma época em que não existia geladeira, cuidar da despensa e ter o poder sobre a comida de toda a casa, era um trabalho essencial. A conservação da comida era necessária e cuidar disso significava encarregar-se da vitalidade das pessoas da casa. O principal gasto daquela época em uma residência familiar era com comida. Deixá-la estragar não iria só desbalancear a saúde da família, como seria um prejuízo financeiro para todos. A importância das chaves era de conhecimento de toda a família, muitas vezes usado como justificativa para manter as mulheres dentro de casa, explica Viviane: “A chave da despensa vem nesse momento como esse símbolo que é usado inclusive pelos homens para afirmarem que as mulheres não precisam ser escritoras ou advogadas ou terem qualquer profissão pública, elas já tem a chave da dispensa, elas deveriam se contentar com isso, que já era o poder delas”. 

A economia doméstica foi uma ciência completamente voltada às mulheres do século 20. Existiam manuais com esse tema que eram lançados durante o período para auxiliar as mulheres no serviço doméstico. Por isso, houve um incentivo para que começassem a aprender a ler, escrever e fazer contas. Elas liam os manuais, estudando como ser esposas melhores e cuidar do lar com perfeição e também ajudavam seus maridos com o orçamento das finanças da casa. Em especial, com os gastos feitos com alimentação. Isso proporcionou a elas a confecção de cadernos que continham suas próprias receitas, além de pensamentos e reflexões sobre tudo que as rodeavam. Então, as mulheres conseguiam ter um espaço muito particular e único por meio desses cadernos, algo que não era compartilhado com a família, mas que, muitas vezes, passavam de mulher para mulher. Assim, fortalecendo um ciclo de conexões singular que outros grupos não tinham ou não queriam ter acesso. Era exclusivo e, por isso, tornava-se mais significativo. 

Os cadernos de receitas também significavam, por algumas vezes, uma ligação com o universo externo para além do lar. Algumas conseguiam publicar suas receitas ou ensinavam culinária. A indústria se apropriou da afetividade que existia nas mulheres em volta desses cadernos e começou a vender livros de receitas com as criações dessas mulheres. A publicação das receitas tinha um valor simbólico para as autoras, pois tinham os conhecimentos reconhecidos. 

Porém, mesmo que os cadernos de receitas fossem objetos de produção e afirmação da individualidade feminina, eles também eram uma marca de exclusão entre as mulheres, principalmente entre aquelas não brancas ou não embranquecidas socialmente. A educação formal para as mulheres era algo muito escasso: nem todas conseguiam fazer ou ter acesso aos cadernos de receitas. Quitandeiras, doceiras que vendiam nas ruas e empregadas domésticas, que eram em grande parte negras, não tinham os livros ao seu alcance, porém, também não precisavam deles. O conhecimento, comumente passado de mãe para filha, era de forma oral, pela memória. A técnica de passagem de informação, incorporada na ancestralidade, era vista por essas mulheres como uma forma de resistência e também de orgulho. Portanto, não ter um caderno de receitas também era valorizar esse saber. 

A diferença racial, tanto a resistência de mulheres negras contra a situação delimitada a elas, também era muito marcada dentro das cozinhas a partir da relação entre as empregadas domésticas e as donas de casa. A pesquisadora discorre: “Outra questão muito importante também é a assimetria que esses objetos construíram com relação às próprias mulheres quando de origens raciais e sociais diferentes. Então, você vê a chave da dispensa sempre na mão da mulher branca ou embranquecida e a mulher negra submetida à chave da dispensa. Em alguns romances da Júlia de Almeida Lopes ela mostra quando a chave é dada para as mulheres negras que são empregadas da casa. Elas acabam roubando a comida, o que é um ato de resistência, porque essa comida era negada a elas”.

A valorização do conhecimento e do trabalho doméstico estava sempre presente nas cozinhas que aprisionavam as mulheres a uma condição de submissão a suas famílias, afastando-as do mundo externo. Viviane chamou esse ato de “feminismo doméstico”. Como uma forma de defesa, a valorização do único trabalho que podiam concretizar era uma resposta à dominação masculina. Era como se dissessem aos homens: Sou tão importante, ou até mais que você.

No entanto, ao passo que os direitos das mulheres aumentavam e tomavam conta de cada vez mais espaços, os saberes domésticos e consequentemente a sua valorização, foram sendo rechaçados por mulheres que lutavam por esses direitos. O doméstico acabou por ficar visto como símbolo de sujeição feminina para com os homens, um retrocesso. Nas faculdades, a relação das mulheres com as cozinhas domésticas demorou a ser um tema relevante de estudo. Apesar dessa visão feminista ser compreensível, ela não era coerente com a resistência feita dentro das cozinhas pelas mulheres, que não rompiam com o sistema vigente, muitas vezes, por não ter a oportunidade de sair do lugar de subserviência. Essa visão só foi dissipada a partir dos anos 1990. A tese da pesquisadora Viviane Aguiar é um dos estudos que fogem dessa visão feminista restritiva e se aproxima das “mulheres comuns” e suas demandas.