Os movimentos lutaram por justiça, democracia, direitos humanos, dignidade e liberdade dos abusos policiais
A Primavera Árabe foi uma série de protestos de rua que aconteceram nos países árabes do norte da África e no Oriente Médio, a partir de 2010. O contexto político era caracterizado pela repressão, insatisfação popular, perda de direitos fundamentais, altos níveis de desemprego, corrupção e pobreza.
Os protestos começaram na Tunísia, mas logo influenciaram outros países que se opunham às condições impostas por regimes ditatoriais, como Argélia, Líbia, Jordânia, Iêmen, Egito, Síria, Iraque e Bahrein, além de pequenos incidentes na Mauritânia, Omã, Arábia Saudita, Líbano, Sudão e Marrocos.
Os movimentos lutaram por justiça, democracia, direitos humanos, dignidade e liberdade dos abusos policiais. A comunicação midiática era censurada e controlada pelos governos, por isso as redes sociais foram adotadas como a forma principal de disseminar a informação e mobilizar mais pessoas. O ambiente digital permitiu que a população se comunicasse e manifestasse opiniões que seriam barradas em meios tradicionais. “Os meios digitais apontaram o protagonismo dos jovens, que foram decisivos no movimento revolucionário iniciado na Internet e esparramado por todo o Egito”, explica Denise Bazzan, mestre em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. A dissertação de mestrado da pesquisadora analisou a construção dos discursos para engajar o público para a Revolução. Confira a entrevista completa:
Serviço de Comunicação Social: Num panorama geral, qual era o contexto político nos países árabes naquele momento?
Denise Bazzan: Encontramos, em 2010, um cenário político no norte da África e no Oriente Médio extremamente repressivo, inflamado pelo descontentamento da população em relação à perda de seus direitos e pelos altos níveis de desemprego e corrupção, elementos propulsores das reivindicações que marcaram o início de movimentos populares, de rua, conhecidos no Brasil como Primavera Árabe. No Egito, especificamente entre 2010 e 2011, jovens egípcios usaram as redes sociais para pedir o fim do regime de Hosni Mubarak, dando início ao evento que viria a mudar a história do país. O cerne das manifestações estava no clamor da população pelo fim da pobreza opressiva, da corrupção, do desemprego, da injustiça, dos abusos policiais que assolavam o país e provenientes do regime autoritário de Mohammed Hosni Mubarak, havia 30 anos no poder. Não havia trabalho. As pessoas trocavam de emprego o tempo todo. Não havia hospitais, nem escolas. Não havia esperança de um futuro melhor para o país. Irritada, a nação perdeu o medo.
Serviço de Comunicação Social: Como se iniciou o que ficou conhecido como Primavera Árabe?
Denise Bazzan: Em 2010, ocorreram uma série de protestos de rua nos países árabes do norte da África e no Oriente Médio, compreendendo os países que compartilham a língua árabe e a religião islâmica, apesar de étnicamente diversos. Esses movimentos foram reconhecidos como democráticos pela maioria dos meios de comunicação. Foram iniciados na Tunísia e acabaram influenciando, por conta da oposição às péssimas condições de vida impostas pelos regimes ditatoriais, outros países do mundo árabe, como Argélia, Líbia, Jordânia, Iêmen, Egito, Síria, Iraque e Bahrein, além de pequenos incidentes na Mauritânia, Omã, Arábia Saudita, Líbano, Sudão e Marrocos.
Na Tunísia, mais precisamente em Sidi Bouzid, a morte de Mohamed Bouazizi, um vendedor ambulante que ateou fogo ao próprio corpo em 17 de dezembro de 2010 como forma de protestar contra o confisco de seus bens de trabalho pelas autoridades, reuniu em seu funeral mais de 5.000 pessoas, e marcou o início das manifestações, ampliadas pela indignação da população contra a corrupção do governo. O ditador Zine El Abidin Ben Ali, não resistindo à revolta popular, deixou o poder depois de mais de duas décadas. Da Tunísia, a revolta espalhou-se pelos países vizinhos, dando origem a uma onda revolucionária em grande parte do Oriente Médio. Esses movimentos, marcados por um cenário político extremamente repressivo e por reivindicações populares contra os altos níveis de desemprego, pobreza, corrupção, injustiça e desrespeito aos Direitos Humanos, ficaram conhecidos como Primavera Árabe.
Serviço de Comunicação Social: Quais foram os principais resultados e desdobramentos da onda de protestos naquela região?
Denise Bazzan: Acredito que o quadro a seguir consiga explicar e exemplificar a origem e os desdobramentos dos movimentos da Primavera Árabe:
Serviço de Comunicação Social: Os meios digitais tiveram papel relevante nesse movimento?
Denise Bazzan: Os meios digitais foram primordiais nesse movimento, já que qualquer outro tipo de comunicação midiática era controlado pelos governos. Vale ressaltar que os meios de comunicação digitais (redes sociais virtuais) foram adotados de modo “comum” em todos esses movimentos e responsáveis pelas disseminação da informação, promovendo uma agremiação que seria, como disse, impraticável por meios tradicionais, já que os regimes totalitários impostos nesses países impõem a censura e não permitem à população a livre manifestação de opiniões. Portanto, o canal digital, por intermédio da Internet, propiciou à população ter um amplo acesso à informação, em termos mundiais, e o uso dessa tecnologia foi extremamente relevante na mobilização por legítimos anseios populares. O povo estava dizendo não ao seu regime político. Queria de volta seus direitos fundamentais. Queria de volta a sua dignidade. Pelos meios digitais, a viralização (expansão exponencial de uma informação) dos protestos iniciados em 2010 se expandiram. Centenas de greves eclodiram no país.
Outro fator importante dos meios digitais é a capacidade de conexão da pluralidade identitária em diferentes espaços e ao mesmo tempo, no mesmo momento. Os meios digitais apontaram o protagonismo dos jovens, que foram decisivos no movimento revolucionário iniciado na Internet e esparramado por todo o Egito. Um milhão de pessoas foram concentradas na Praça Tahrir, tendo como maioria jovens, reivindicando uma sociedade egípcia verdadeiramente justa, democrática e livre.
Serviço de Comunicação Social: Poderia comentar um pouco sobre sua dissertação de mestrado?
Denise Bazzan: Fui aluna da FFLCH e, na graduação, me apaixonei pelo discurso, pela semiótica, pelos efeitos da linguagem nos discursos, pela eficiência do texto em persuadir e engajar, a partir da sua ordem e construção. No mestrado, tive a oportunidade de concentrar os estudos nos efeitos da linguagem e em seu papel na transformação social. Em conversa com meu orientador, Mamede Jarouche, resolvi analisar até que ponto as informações contidas nos textos escritos no meio digital, na página intitulada “We are All Khaled Said”, da rede social do Facebook, que motivaram, mobilizaram e legitimaram a Revolução do Egito 2011, foram favoráveis ao engajamento das pessoas à página, a partir da sua ação responsiva de interatividade, sob a ênfase da geração de sentido a partir da construção dos textos. Assim, surgiu minha dissertação.
Porém, ao concluí-la descobri mais do que os indícios da pesquisa. Mais do que examinar a articulação dos recursos de linguagem para compreender o seu papel na transformação social que motivou, mobilizou e legitimou a Revolução Egípcia de 2011, descobri a união de um povo. Em Tahrir, eram todos iguais; eram reflexos uns dos outros. Viam-se amando uns aos outros sem perceber. Um sentimento compartilhado, que uniu as diferenças. Juntos, tinham a convicção de ser ali uma sociedade, organizada de acordo com seus ideais, com respeito, justiça e dignidade. A Primavera Árabe caracterizou-se pela prática da coexistência das diferenças; do real e o imaginário; da multidão e o singular; do coletivo e o indivíduo; da impessoalidade à personalidade, do contrato à liberdade, do cosmopolita ao urbano, do particular e o comum; do público e o privado. Um estreitamento qualitativo que em tempos como os atuais incorpora o viver seguros e confiantes.
A Primavera Árabe sinestesicamente transpôs o espaço digital. O cheiro da primavera, o cheiro da liberdade, o dia do Sham el-Nessim, invadiu a Praça Tahrir.
A linguagem transforma-se no instrumento pelo qual esse organismo modela seus pensamentos, emoções, sentimentos, desejos, esforços e atos. Pela linguagem, o indivíduo influencia e é influenciado, como base última e mais profunda da sociedade.
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Denise Bazzan é mestre em Letras pela FFLCH e especialista em Gestão de Marcas (Branding) pela Universidade Anhembi-Morumbi. Sua dissertação de mestrado está disponível em Primavera árabe: a força da disseminação da informação pelo meio digital e sua forma de construção de sentido.