A feira livre é um patrimônio territorial que resiste às mudanças da sociedade

Pesquisa da USP estudou como as feiras representam a resistência do campo nas cidades mesmo com o surgimento dos mercados

Por
Thais Morimoto
Data de Publicação

Feira livre com várias pessoas andando entre as barracas de frutas e verduras
Feira na Rua Paulino Vital de Moraes, Capão Redondo, São Paulo. Imagem: Arquivo pessoal/Milaine Aparecida Pichiteli

Em homenagem ao dia do feirante, comemorado em 25 de agosto, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP traz informações de uma pesquisa que valoriza o trabalho feito em feiras livres e revela como elas são um patrimônio de São Paulo.

Presentes formalmente no Brasil desde 1914, existem mais de 942 feiras na cidade, que geram cerca de 36 mil vagas de empregos diretas e indiretas, segundo dados da prefeitura de São Paulo. 

Na sua tese de doutorado, Milaine Aparecida Pichiteli compreendeu a importância da feira como espaço de resistência do campo na cidade. Ela também percebeu como a feira tem impactos positivos para várias pessoas, ao possibilitar melhorias no padrão de vida.

“Tudo que a minha família tem vem da feira, meus pais trabalharam muito para dar isso aqui para a gente e agora eu trabalho e a feira me dá as coisas que tenho, eu gosto de trabalhar aqui”, um entrevistado relatou para Milaine em uma das entrevistas.

Pandemia

Com a interferência da pandemia da covid-19 na pesquisa, Milaine compreendeu que nem todos os feirantes foram afetados economicamente de forma negativa. Parte deles relatou que a pandemia aumentou as vendas dos produtos. Um dos motivos é que houve menos restrições em relação às feiras livres do que aos supermercados na cidade de São Paulo e, como as feiras ocorrem a céu aberto, as pessoas tinham menos medo de frequentá-las. A pandemia também criou a necessidade de muitas pessoas trabalharem em casa e cozinharem a própria comida e a feira era o local escolhido por várias para comprar os produtos. 

Mas, segundo a pesquisadora, várias feiras em municípios do interior de São Paulo foram impactadas negativamente com a pandemia, por causa das restrições e das medidas de segurança determinadas pelas prefeituras. 

Feira livre à céu aberto com várias barracas e algumas árvores
Feira na Rua Cruz de Malta, Parada Inglesa, São Paulo. Imagem: Arquivo pessoal/Milaine Aparecida Pichiteli

Mais do que movimentar a economia

Milaine também percebeu que a quantidade de feiras não está diminuindo, mesmo com o aumento de locais que vendem frutas, verduras e outros alimentos. “A feira tem altos e baixos. Teve o momento de nascimento dela e teve um momento, principalmente na década de 50 e 60, quando o supermercado chega em São Paulo, que ela tem uma baixa”, afirma. Segundo a pesquisadora, nesse momento, os jornais e o Poder Público viam o mercado como substituto da feira, o que não se concretizou. 

Feiras vão morrer, 200 anos depois”
“Contra os supermercados só há um argumento: a tradição”

Manchetes do jornal Estadão de novembro de 1968

Para Milaine, as pessoas não deixaram de ir à feira por gostarem do ambiente, além de ela trazer alimentos mais frescos e ser um espaço de integração. “As feiras são patrimônio territorial e a paisagem fica guardada na mente das pessoas”.

As feiras também apresentam um espaço diferente no meio da cidade de São Paulo, com seus prédios altos e suas casas. Milaine comenta que, ao possibilitar um contato mais próximo das pessoas com o campo, a paisagem da feira é um espaço de resistência ao mostrar a relevância do campo na cidade.

Ao longo do trabalho, além de pesquisar o histórico das feiras, Milaine visitou seis feiras na cidade de São Paulo e conversou com agentes do governo e feirantes para compreender a dinâmica de funcionamento delas. 

Mapa mostra as seis feiras abordadas no estudo
Mapa mostra as seis feiras livres abordadas no estudo. Arte feita por Thais Morimoto. Imagem: GeoSampa/Prefeitura de São Paulo

Preconceitos 

Ainda hoje, pessoas criticam as feiras livres porque as consideram  sujas ou com mau cheiro, principalmente quando há a oferta de peixes e carnes. "Muitas pessoas gostam de feira, mas não nas suas ruas", comenta Milaine. 

Foto de perfil de Milaine Aparecida Pichiteli
Milaine Aparecida Pichiteli. Imagem: Arquivo pessoal

Na análise das feiras livres ao passar dos tempos, a pesquisadora percebeu que a visão preconceituosa sobre elas é histórica. Nas décadas passadas, jornais propagavam notícias de como as feiras eram sujas e como estavam fadadas ao fim com o surgimento de supermercados e outras formas de vendas de frutas e verduras. 

Atualmente, parte da população ainda carrega essa visão e também não vai à feira por não confiar nos produtos oferecidos. Mas, de acordo com a pesquisadora, as feiras estão mais limpas e regulamentadas. Além das várias licenças que precisam ter, como de feirante e o Termo de Licenciamento de Uso, existem fiscais da prefeitura que passam e verificam a regularidade das barracas. Muitos feirantes também se preocupam com a qualidade dos produtos e procuram oferecer aos seus clientes os mais frescos. No final, a prefeitura é responsável pela limpeza da rua. 

“Sinto que [o imaginário de que a feira é suja e com produtos de baixa qualidade] pode ser deixado para trás. Hoje é mais regulamentado e a feira é tratada de maneira muito séria. Temos que lutar para acabar com esse preconceito”, afirma Milaine. 
 

Banca de legumes, como batatas, cebolas e cenouras
Banca de legumes na feira da Parada Inglesa. Imagem: Arquivo pessoal/Milaine Aparecida Pichiteli

Diversidade

Milaine visitou feiras em vários perfis de bairros e percebeu que as diferenças entre elas vai além do preço dos produtos – que é maior em bairros elitizados. As feiras que ocorrem nesses locais também possuem maior variedade e disponibilidade de produtos exóticos e caros, como pitaya e salmão. 

É possível perceber ainda diferenças entre o perfil das pessoas que frequentam as diferentes feiras. De acordo com a pesquisadora, em bairros nobres, existem mais pessoas com uniformes de empregada doméstica ou de babá e elas estão comprando muitas vezes para seus patrões. Nos outros bairros, as pessoas compram mais para consumo próprio ou de sua família. 

O doutorado Paisagem cotidiana e patrimônio-territorial: um olhar sobre as Feiras Livres da cidade São Paulo, de Milaine Aparecida Pichiteli e orientado pelo professor Francisco Capuano Scarlato, foi defendido no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da FFLCH USP, em junho de 2023.