Sob a luz da sociologia, universitários analisam em podcast atos violentos que marcaram o 8 de janeiro

Em seis episódios de podcast, estudantes do curso de Ciências Sociais da USP analisam os fatos do 8 de janeiro, da preparação do evento até a invasão, e os sentidos dados pela mídia, políticos e pelos próprios cidadãos

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Redação*
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Alunos de Ciências Sociais produziram seis episódios de um podcast em que tratam de diferentes perspectivas o ato violento que depredou Brasília. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O que seriam apenas relatórios da disciplina de Métodos de Pesquisa em Sociologia, do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, se transformou em um projeto de divulgação científica, com o objetivo de mostrar para a sociedade como o conhecimento auxilia no entendimento de fatos que marcaram a política brasileira. Durante o primeiro semestre deste ano, estudantes de graduação se dividiram em duas turmas para estudar o mesmo tema sob perspectivas diferentes: os ataques do dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília, também referidos como o 8 de janeiro, uma série de vandalismos e depredações do patrimônio público cometida por um grupo de bolsonaristas extremistas, que invadiu os edifícios do governo federal para instigar um golpe militar contra o governo Lula. 

O estudo resultou numa série de seis episódios do podcast O 08 de janeiro, uma produção independente criada sob a orientação de Angela Alonso, socióloga, professora titular da FFLCH e especialista em sociologia política. A produção está disponível na plataforma Spotify e é assinada pelos estudantes Edson Costa e Viviane Souza, com identidade visual de Gabriel dos Santos, trilha sonora e edição de Jonas Paulo. Ao longo dos episódios é possível entender a preparação, a condução e as consequências posteriores ao grande ato violento. “A intenção é que o podcast seja uma série documental sobre os fatos que marcaram a data”, afirma Edson. Os episódios estão disponíveis neste link.

Divulgação científica

A professora Angela Alonso sugeriu uma atividade para duas turmas (vespertina e noturna) do primeiro semestre deste ano: abordar aspectos diferentes acerca da invasão a Brasília no 8/1/23. Os alunos foram divididos em grupos e passaram todo o semestre desenvolvendo uma pesquisa que seria apresentada ao final em forma de relatório. “A professora então propôs aos grupos que adaptassem seus relatórios em um material de divulgação científica. Foi uma atividade voluntária, e seis grupos aderiram”, conta Edson. Ainda segundo ele, a professora investe muito nesse tipo de divulgação, citando como exemplos outros dois documentários, Ecos de junho e Junho de 2013 – O começo do avesso, disponíveis no Globoplay.

A disciplina contava com dois monitores: Viviane Brito e Edson Costa, ambos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, e com formação em outras áreas, Psicologia e Jornalismo, respectivamente. “Preparamos uma oficina de comunicação e produção de roteiro, para ajudar os alunos a transformar seus relatórios em episódios de podcast. A professora coordenou, definiu a ordem dos episódios seguindo a cronologia do evento: indo da preparação até a repercussão posterior”, informa Edson. “Nós na produção, dando um enquadramento jornalístico ao tema da pesquisa, escrevendo os títulos, os textos de abertura e conclusão, e a edição. Mas o conteúdo de cada episódio foi feito pelos próprios alunos: texto, narração e captação”, destaca.

Como explica a própria professora, “a disciplina é voltada para a prática de pesquisa em sociologia. A ideia é que os estudantes façam uma pesquisa inteira, desde a discussão bibliográfica, a escolha de técnicas de pesquisa, levantamento e análise de dados, até a apresentação de resultados”. Angela conta que escolheu os eventos do 8 de janeiro por duas razões: de um lado porque, sendo um fenômeno social recente, permitia coleta abundante de material e contava com  bibliografia restrita. De outro lado,  porque se trata de um evento de enorme relevância para a sociedade brasileira, em que os estudantes puderam ver a importância da sociologia para entender a sociedade em que vivem.

“A comunicação dos resultados será feita pelos meios científicos usuais, com apresentações no Siicusp (Simpósio Internacional de Iniciação Científica e Tecnológica da USP). Mas também, e aí o trabalho dos pós-graduandos monitores da disciplina Edson Costa e Viviane Brito foi fundamental,  por meio de um podcast. Este foi outro aprendizado para os estudantes, o de comunicar de maneira simples e direta resultados de pesquisa científica. E neste caso particular, ajudar a qualificar o debate público sobre um tema ainda em ebulição“, declara a professora.

Além disso, como lembra Edson, a partir dessa experiência, é possível que outros surjam. “Estamos preparando um minicurso de comunicação nas ciências sociais, tendo este podcast como estudo de caso. Acreditamos que a divulgação científica é uma habilidade importante na formação de futuros professores e pesquisadores”, conclui.

Fenômeno político

O primeiro episódio, Política à mão armada, analisa a preparação do grande ato em Brasília, observando como a radicalização foi tomando conta da política na campanha presidencial de 2022: “Era uma noite de quarta-feira em uma chácara, em setembro de 2022, quando Rafael de Oliveira matou a facadas seu colega de trabalho. Benedito defendia Lula e Rafael, Bolsonaro. Aconteceu em Mato Grosso. Ao menos 15 golpes com intenção de decapitar o petista. Outros episódios violentos com motivação política aconteceram em todo o País, em ruas, bares, igrejas e domicílios. Dispararam casos de ameaças, agressões corporais e assassinatos. O senso comum vai dizer que eventos como esses não estão vinculados à conjuntura política, mas a gente acredita que isso é um grave engano e demonstraremos sociologicamente por que”.

O podcast vai mostrando como se deu esse processo de radicalização da violência política na disputa pelo poder no último período eleitoral, ao mapear casos de violência política em escala nacional, no período entre o início da campanha eleitoral, em agosto de 2022, até 7 de janeiro de 2023, o dia anterior ao ato do dia 8 de janeiro. Segundo os autores do episódio, a teoria do confronto político foi a principal orientação teórica do trabalho. “Ela é resultado do trabalho coletivo dos sociólogos estadunidenses Charles Tilly, Sidney Tarrow e Douglas McAdam, e, segundo essa teoria, em situações de mudanças de conflito social, as identidades sociais rotineiras são suspensas e sobretudo determinadas por identidades políticas antagônicas que expressam a disputa política institucional”, explicam os autores.

Os casos de violência política foram coletados no portal on-line G1 e a seleção de eventos obedeceu a dois critérios obrigatórios: ser uma ação violenta ou ameaça de ação violência contra pessoas e ser desencadeada por divergência de valores políticos com a defesa ou contestação explícita a partidos ou grupos políticos. A coleta, segundo eles, mapeou 115 eventos de violência política, sendo 24 ameaças, 74 agressões e 17 assassinatos em todas as regiões do País. Em cerca de ⅓ dos casos houve uso de arma de fogo. “De acordo com os estudos de movimentos sociais, a violência política tende a escalar nos períodos de mudança social, quando novos desafiantes lutam para entrar na política institucional e antigos membros se recusam a sair. O trabalho de pesquisa dos grupos que elaboraram o podcast confirma essa proposição”, informam, acrescentando que os picos dos eventos de violência política ocorreram no primeiro e no segundo turno das eleições de 2022, o que demonstra o quanto estavam condicionados pela disputa do poder político.

Na véspera do segundo turno, como demonstra o podcast, os casos de violência começaram a aumentar, e no dia da votação atingiram o maior indicador de todo o período estudado, caindo somente 19 dias depois. Segundo os dados, essas três semanas concentraram metade dos eventos violentos mapeados: ocorreram 53% dos assassinatos, todos os casos de tiro à queima-roupa. Os 115 eventos estudados mostram que a violência política nesse período foi polarizada, assimétrica e generalizada. “Polarizada porque as vítimas preferidas dos bolsonaristas foram os lulistas e vice-versa. Entre as 83 vítimas agredidas por bolsonaristas, 56 eram lulistas. Já entre as 9 vítimas violentadas por lulistas, 6 delas eram bolsonaristas. Foi assimétrica porque, em números absolutos, os bolsonaristas foram os que mais se utilizaram da violência, totalizando 83 dos 115 casos. Além disso, a assimetria também se observa pelo fato que os lulistas foram os maiores alvos da violência política, vítimas em 59 dos 115 casos. Já os bolsonaristas foram alvos em apenas 11 dos casos”, explicam os autores.

O podcast revela ainda que, após a escalada da violência política nas três semanas após o segundo turno, os eventos violentos diminuíram na frequência mas aumentaram no nível de coordenação: a partir do dia 18 de novembro, os bolsonaristas radicais passaram a realizar acampamentos e bloqueios para planejar ações coordenadas. O objetivo, como eles dizem, foi interromper a rotina social, captar a atenção para suas reivindicações golpistas e incentivar os militares brasileiros a dar um golpe de Estado. Além disso, entre essas performances violentas, o evento de 8 de janeiro apresenta o maior grau de coordenação. Segundo os autores do trabalho, a principal contribuição da pesquisa foi demonstrar empiricamente como a incidência da violência política esteve atrelada à conjuntura eleitoral, demonstrando como um conflito político institucional se alastrou pelos espaços sociais e penetrou nas relações interpessoais cotidianas.

Eleição, derrota e invasão

O segundo episódio, intitulado Eleição sob pressão, dá continuidade à discussão sobre a escalada da violência no campo político, ainda em 2022, mas agora com foco na campanha presidencial e nas disputas que não acabaram depois do segundo turno e como isso contribuiu para o 8 de janeiro de 2023. A pesquisa se apoiou na teoria do confronto político e analisou as performances reivindicativas, estabelecendo o limite dos meios pelos quais as pessoas se engajam em confrontos políticos. O conceito de radicalização, conforme o trabalho da socióloga e cientista política italiana Donatella Della Porta, foi entendido como um processo de escalada de repertórios não violentos para repertórios mais violentos. Essa pesquisa confirma a hipótese de que o evento do dia 8 de janeiro de 2023 decorre de um processo de radicalização relacionado às performances mobilizadas na disputa presidencial. A estratégia de análise realizada em fases permitiu identificar uma escala de performances não violentas a performances violentas na medida em que os apoiadores percebem a impossibilidade de obter seu objeto de reivindicação: a manutenção do poder.

Depois da derrota é o terceiro episódio, que questiona: Depois que o então presidente Jair Bolsonaro perdeu a disputa presidencial no segundo turno de 2022, o que fizeram os insatisfeitos com o resultado? Analisar como eles se articularam ajuda a responder o que levou ao grande ato violento em Brasília. No quarto episódio, A festa da Selma, a questão é outra: Como foi possível reunir tantas pessoas, de uma só vez, para invadir a sede dos Três Poderes? Este episódio analisa os convocadores do grande ato em Brasília, mostrando como tantos internautas se organizaram através de um código que parecia sem sentido: a festa da Selma.

No quinto episódio, a análise recai sobre Os invasores. Segundo os estudantes, ao olhar imagens do grande ato em Brasília, a multidão pode parecer formada por pessoas diversas e de todos os tipos. Mas um estudo cuidadoso mostra que existe um padrão, e que esse perfil dominante diz muito sobre a violência com motivação política. E o sexto e último episódio As disputas pelo sentido do 8 trata da dificuldade em descrever e classificar tudo o que aconteceu logo depois do grande ato violento em Brasília. Cada um, mídia, políticos e cidadãos, interpretaram de uma forma o ato, e essa disputa de sentidos e o que ela representa para a política nacional é analisada no final da série.

*Postagem original: https://jornal.usp.br/universidade/sob-a-luz-da-sociologia-universitari…