Nascimento de Hannah Arendt

De pensamento inclassificável e complexo, a filosofia de Arendt foi importante para ampliação da compreensão do totalitarismo no século 20

Por
Pedro Seno
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“Penso que a característica particular de seus escritos, (...) é não ser facilmente identificada com um lado ou outro do espectro político”, afirma a pesquisadora Adriana Novaes. (Arte: Pedro Seno)

Nascida no dia 14 de outubro de 1906, a filósofa Hannah Arendt é de origem judia e alemã. Precisou se exilar nos EUA por conta do nazismo e teve sua trajetória marcada pelo combate ao antissemitismo, além de ter dedicado seu pensamento à compreensão do totalitarismo, incorporado nos então governos nazista e stalinista. É o que Adriana Carvalho Novaes, pesquisadora em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica em entrevista concedida à Comunicação.

Arendt ganhou notoriedade quando publicou Origens do Totalitarismo, em 1951. Até os dias de hoje, ela é tanto alvo de críticas quanto influenciadora no ramo das humanidades. De todo modo, sua obra é caracterizada por ser vasta e complexa, sem dúvidas muito importante e, ainda, “inclassificável”, conforme diz a pesquisadora. As críticas se devem sobretudo a esse perfil e por ser considerada de “postura independente”, assumindo o “contraditório” e se afastando de uma identificação clara no espectro político. Importante não confundi-la como “neutra”, uma vez que seu pensamento questiona as ideologias, tornando-se “contraditório, complexo e sofisticado”.

Uma das contribuições mais relevantes da filósofa, desde seu auge até os dias atuais, é o encontro das fronteiras entre política e filosofia. Ela observou, no seu tempo, a derrota do pensamento tradicional diante das grandes tragédias do século 20. Porém, afirmou que não se deveria destruí-lo, tomá-lo como “derrotado”, mas sim esforçar-se para recuperá-lo e restituir o seu sentido, sobretudo no âmbito político, como forma, inclusive, de contrapor o totalitarismo vigente. Em suma, ela propôs o surgimento de uma “nova filosofia moral e uma nova filosofia política”.

Confira a entrevista na íntegra para mais detalhes sobre a autora:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Hannah Arendt?
Adriana Carvalho Novaes: Hannah Arendt foi uma filósofa de origem judia e alemã, que combateu o antissemitismo e teve de fugir do nazismo, estabelecendo-se nos Estados Unidos a partir de 1941 até o fim de sua vida, em 1975. Ela se dedicou à compreensão do totalitarismo - nazismo e stalinismo -, o auge de um processo de colapso da política e da ética. Trabalhou em instituições judaicas e numa editora até ganhar notoriedade com o livro Origens do Totalitarismo, publicado em 1951. Deu aulas em várias universidades norte-americanas, escreveu resenhas, artigos e livros, todos estes traduzidos para o português. Foi e é alvo de críticas por sua postura independente e por assumir o contraditório. Apesar da violência de que foi testemunha, manteve a esperança na política e nas capacidades dos seres humanos.

Serviço de Comunicação Social: Quais as principais características do seu trabalho filosófico?
Adriana Carvalho Novaes: Arendt fez uma obra um tanto quanto inclassificável. Para os mais puristas, uma obra que não se encaixa. Na verdade, ela mesma afirmou que "não se encaixava". Podemos dizer que Arendt faz uma abordagem genealógica de temas com o intuito de recuperar referências que permanecem decisivas. Ela repetia que, mesmo diante da derrota da tradição, que não conseguiu impedir as catástrofes do século 20, não se deveria jogar tudo fora, mas, inspirada pelo amigo Walter Benjamin, passar a história a contrapelo, como na frase que citou algumas vezes: "A causa vitoriosa agradava aos deuses, mas a derrotada, a Catão", retomar o que havia sido derrotado, vencido, o que havia ficado de lado. Essa retomada ou reconsideração era imprescindível para o que sempre manteve em seu horizonte, a recuperação do sentido da política, ultrapassando a tensão clássica entre política e filosofia, o que a fazia, inclusive, contestar sua denominação de "filósofa". A filosofia é, na perspectiva de Platão, a contraposição à insuficiência da política, demonstrada na condenação à morte do maior dos sábios e mestre de Platão, Sócrates. Para Arendt, como contrapartida ao totalitarismo, a política precisava ser reconsiderada, reafirmada. Uma nova filosofia moral e uma nova filosofia política eram exigidas. Ela trilhou esse caminho de formulação: suas interpretações da era moderna, seus textos sobre a questão judaica, seu entusiasmo com as revoluções e suas duras críticas à política norte-americana reiteravam esse propósito. Suas elaborações acerca do mal e da banalidade do mal, que a levaram ao exame das atividades do espírito no final de sua vida, retomam as faculdades humanas - o pensamento, a vontade e o juízo - e sua dinâmica, como afirmação de nossa potência para resistir e criar.

Serviço de Comunicação Social: Qual o impacto e relevância de Arendt, desde a sua época até os tempos atuais?
Adriana Carvalho Novaes: A obra de Hannah Arendt é muito estudada. Pesquisadores do mundo todo trabalham com suas concepções e provocações. Penso que a característica particular de seus escritos, para além do conteúdo atualíssimo, ou seja, o exame de um processo de crise política e moral que herdamos e com o qual ainda temos de lidar nessas primeiras décadas do século 21, é não ser facilmente identificada com um lado ou outro do espectro político. Mesmo que tentem, não é simples classificá-la. A contestação que fez das ideologias, colocou-a num lugar não absolutamente neutro, claro, mas contraditório, complexo, sofisticado, o que nos ajuda a ampliar as abordagens e qualificar o enfrentamento dos desafios do nosso próprio tempo.


Adriana Carvalho Novaes é mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e doutora em Filosofia pela FFLCH-USP.