Um dos mais importantes livros de poesia brasileira é lançado em 1945, em meio aos grandes conflitos do século 20
Entre as diversas obras de poesia publicadas por Carlos Drummond de Andrade no modernismo, A rosa do povo chegou às livrarias em 1945. O professor, poeta e ensaísta Alcides Villaça, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, caracteriza o período da publicação como de “violência extrema, genocídio e holocausto”. Foi essa atmosfera e sentimento negativos que motivaram artistas como Drummond a buscarem por expressões que pudessem servir de símbolos representativos da condição humana perante o terror.
Desse modo, pode-se admitir que o poeta inquiriu nos seus versos objetos e expressões variáveis. Neste momento, dois objetos foram qualificados: “mundo e povo”. E também duas expressões afetivas foram enunciadas: sentimento e rosa. A última está elaborada na obra A rosa do povo.
Em suma, no livro, existe um sujeito poético que está em conflito entre duas instâncias da sua linguagem. Em um primeiro momento, ele precisa que sua voz expresse o símbolo poético para não tornar-se panfletária e meramente ideológica; precisa encontrar a si mesmo no mundo, a sua “verdade subjetiva”; precisa igualmente encontrar o lugar do outro na relação consigo. Em um segundo momento, o poeta aflige-se ao saber que a sua linguagem, se fosse centrada somente em si, estaria afastada do mundo e perderia a aderência e alcance político e social, que o faz buscar pela “objetivação final”.
Essa tensão permeia os poemas de A rosa do povo, onde entram, finalmente, o símbolo da flor, mas uma flor feia, assim como o elefante, que é canhestro. São símbolos “precários” que procuram a extensão da sua voz e linguagem no mundo. Os poemas buscam, de um lado, a participação política, do outro, a subjetividade e, em meio a isso, tão importante quanto, o uso da palavra poética neste processo como um todo.
Na íntegra, o texto abaixo, concedido pelo professor Alcides Villaça, explica com detalhes e exemplos a temática e importância da obra. Confira:
Alcides Celso Oliveira Villaça:
Vista em panorama, a poesia de Drummond, que se estende por mais de sessenta anos ao longo do século passado, expressa um interesse angustioso e uma inquisição permanente de objetos variáveis, em expressões também variadas. Ao tempo da II Guerra, esses objetos se qualificaram como mundo e povo, e a expressão dos movimentos afetivos para eles foram enunciados, em dois livros marcantes, como sentimento e como rosa: Sentimento do mundo (1940) e A rosa do povo (1945).
Vale lembrar que nesse período de violência extrema, genocídio e holocausto, a questão do engajamento e a atitude da resistência eram desafios cruciais para artistas e intelectuais do mundo inteiro: que ideias e que símbolos se armam para o combate? Em A rosa do povo, Drummond se lança à procura de si e do outro, da inserção no tempo social, no compromisso público e político de suas palavras, sem renunciar, no entanto, à consciência problemática de si mesmo como combatente válido e armador de símbolos poéticos carregados de expressão.
Em outras palavras: arma-se dentro do poeta o conflito entre a verdade subjetiva do seu desejo aflito, a ser orientado para a ação poética na ordem histórica, e a objetivação final dos símbolos que encontra para dar voz e amplitude possíveis a esses desejos. Na ordem desses símbolos precários, entra uma flor feia e um elefante canhestro, ambos persistentes em sua tarefa de busca decisiva. O poeta sabe que, sem o símbolo poético, o discurso se arrisca a ser uma enunciação conceitual e ideológica, quem sabe um panfleto pragmático; mas sabe também que, se afastado do mundo, o símbolo sequer tangencia a expressão política buscada em caráter de urgência, em meio à conflagração da guerra mundial.
Arma-se para o poeta um dilema que ele vivencia nos extremos, enquanto busca integrá-los: a participação política de poemas como Visão 1944, Com o russo em Berlim, Telegrama de Moscou e Carta a Stalingrado, não pode escamotear a subjetividade do “homem pequenino na América”, dos “olhos guardados nas pálpebras”, do áporo, do anoitecer e do medo, nem, muito menos, a instância decisiva da linguagem, das palavras em que afinal tudo se passa: esse livro de inclinação abertamente social começa por poemas que ponderam e avaliam o alcance mesmo da palavra poética: Consideração do poema e Procura da poesia.
Para reconhecer tais dilemas já no modo confessional de um diário que Drummond escreveu e em parte publicou (O observador no escritório, 1985), vale consultar estes registros de 12 de abril daquele ano de 1945 (ano em que publica A rosa do povo), a propósito do convite que recebeu para entrar no Partido Comunista Brasileiro (PCB):
“Meditação entre quatro paredes: Sou um animal político ou apenas gostaria de ser? Esses anos todos alimentando o que julgava ideias políticas socialistas e eis que se abre o ensejo para defendê-las. Estou preparado? Posso entrar na militância sem me engajar num partido? (...) Resta o problema da ação política em bases individualistas, como pretende a minha natureza. Há uma contradição insolúvel entre minhas ideias ou o que suponho minhas ideias, e talvez sejam apenas utopias consoladoras, e a minha inaptidão para o sacrifício do ser particular, crítico e sensível, em proveito de uma verdade geral, impessoal, às vezes dura, senão impiedosa.”
Alcides Celso Oliveira Villaça é poeta, crítico literário, ensaísta, especialista em literatura brasileira e professor na FFLCH - USP.