Publicação de “O Morro dos Ventos Uivantes”

Considerada um clássico da literatura inglesa, na época de sua publicação, a obra sofreu uma certa resistência por tratar de temas como diferenças de classes sociais, romances impossíveis e ruptura de costumes

Por
Lívia Lemos
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Publicação de "O Morro dos Ventos Uivantes"
A obra carrega uma escrita arrojada e sofisticada. A autora, Emily Brontë, trouxe nos dramas narrados, uma densidade e profundidade diferentes do usual vitoriano. (Montagem: Lívia Lemos)

Publicado em dezembro de 1847, O Morro dos Ventos Uivantes é um romance escrito pela autora inglesa Emily Brontë. A história, que se passa no interior da Inglaterra, começa com a chegada de um menino órfão na fazenda Morro dos Ventos Uivantes. Após ser encontrado jogado pelas ruas de Liverpool pelo senhor Earnshaw, proprietário da fazenda, o garoto é adotado pelo casal Earnshaw e recebe o nome de Heathcliff.

Enquanto o irmão adotivo, Hindley, passa a odiá-lo desde o momento em que Heathcliff  chega na fazenda, a irmã adotiva Catherine, por sua vez, desenvolve uma certa empatia e carinho pelo irmão, fazendo com que os dois se tornem grandes amigos. Mais tarde, esse carinho se transforma em um amor, que é recíproco de ambas as partes. Mas, pelo fato de os dois serem irmãos e de origens e classes sociais diferentes, esse amor nunca é correspondido por Catherine.

Com a morte do patriarca, Hindley assume o comando da fazenda e rebaixa Heathcliff  a um criado, fazendo com o que a relação familiar se torne impossível na fazenda. Além disso, devido às pressões sociais, Catherine se casa com Linton, um proprietário de uma granja, porque percebe que não poderia se casar com o irmão adotivo. A partir daí, a obra é recheada de vingança, romances impossíveis, crueldade, tradição e ruptura, religiosidade e costume, entre outros temas.

Apesar de ter um enredo bastante simples, centrado em um triângulo amoroso, o livro se tornou um clássico, sobretudo, pela riqueza de detalhes e pelo excelente desenvolvimento de enredo e personagens. Entretanto, na época em que foi publicada, a obra sofreu uma certa resistência da sociedade conservadora, a qual não recebeu bem as críticas sociais feitas pela escritora, conforme destaca Vinicius Domingos, do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada: “Desde o momento de publicação percebeu-se que o romance possuía uma estrutura narrativa demasiadamente complexa, dramas psicológicos e familiares obscuros demais, e temas polêmicos (o cristianismo, por exemplo, é retratado no romance como cruel e austero). Isso tudo desagradou a crítica conservadora que ora repudiou a obra ora não a levou a sério.”

Confira a entrevista completa com o pesquisador:

Serviço de Comunicação Social: O que foi a obra O Morro dos Ventos Uivantes? Qual é a temática central abordada pela obra?

Vinicius Domingos: O Morro dos Ventos Uivantes foi um romance publicado em 1847 pela escritora inglesa Emily Brontë, na época usando um pseudônimo: “Ellis Bell". A obra aborda muitos temas. Alguns deles são: vingança, estrutura familiar e seus desajustes, campo e cidade, propriedade rural e suas leis, romances impossíveis, crueldade, tradição e ruptura, conflitos de classe social, dramas psicológicos, religiosidade e costumes, domesticidade, dinheiro e posses, gerações e heranças etc.

Serviço de Comunicação Social: Por que a obra tornou-se um clássico? Qual é a importância dela para a literatura inglesa e para a literatura mundial?

Vinicius Domingos: Difícil dizer porque a obra tornou-se um clássico pois trata-se de uma noção repleta de implicações ideológicas. Parte do prestígio acadêmico e cultural que a obra possui hoje surgiu muitos anos depois de sua publicação, quando reconheceu-se que se tratava de uma obra cuja escrita era arrojada e sofisticada e que os dramas narrados tinham densidade e profundidade diferentes do usual vitoriano. Acredito que parte da importância da obra, tanto para a literatura inglesa quanto mundial, esteja em seu potencial diferenciado de revelação social.

Por conta da elaboração formal não usual (e aqui me refiro tanto à escrita quanto à construção do enredo e personagens), pode-se interpretar, pela forma, questões históricas, sociais e culturais do maior interesse se levarmos em conta que a Inglaterra era, na época, a maior potência econômica no mundo e vivia um dos períodos mais importantes da História: a Revolução Industrial.

Serviço de Comunicação Social: Apesar de hoje ser um clássico, quando foi publicado, no século 19, a obra recebeu muitas críticas e resistência. Quais críticas foram essas e por que isso aconteceu?

Vinicius Domingos: Dois dos termos mais frequentes da crítica da época foram “estranho” e “original”. Diferentemente de hoje em que os valores culturais e costumes sociais são mais “liberais”, e o que entendemos por crítica literária de prestígio é feita por intelectuais e professores universitários em geral progressistas e de altíssima cultura para revistas acadêmicas e livros especializados, na época a crítica de literatura contemporânea era feita em jornais e periódicos de ampla circulação por jornalistas e intelectuais públicos em geral conservadores (quase todos homens), sem o conhecimento que mais tarde se desenvolveria a respeito da estrutura de uma obra literária.

Desde o momento de publicação percebeu-se que o romance possuía uma estrutura narrativa demasiadamente complexa, dramas psicológicos e familiares obscuros demais, e temas polêmicos (o cristianismo, por exemplo, é retratado no romance como cruel e austero). Isso tudo desagradou a crítica conservadora que ora repudiou a obra ora não a levou a sério.

Serviço de Comunicação Social: Para além de um romance, o que podemos aprender com a obra? Qual mensagem, reflexões e ensinamentos ela passa?

Vinicius Domingos: Não acredito que, mesmo quando parece procurar fazê-lo, uma obra literária passe mensagens ou sequer ensine coisas, pelo menos não de forma tradicional e discursiva. O papel do leitor crítico é apurar, através do conhecimento histórico e da análise cerrada, em que níveis e de que modos a obra se coloca no panorama literário de sua época e tem potencial de revelação a respeito do mundo que a engendrou. O Morro dos Ventos Uivantes, a meu ver, demonstra que a obra literária é capaz de capturar criticamente um certo espírito contraditório do seu tempo através de arranjos e escolhas formais particulares e específicas, que geram consequências estéticas ricas e interessantes.

No caso específico dessa obra, acredito que uma visão positiva, comum na literatura de então, da domesticidade “gentry", da ideologia romântica, do modo de vida aristocrático no campo, do casamento e da família nuclear burgueses etc., é desmantelada e problematizada quando se leva em conta algo que o romance coloca em cena e explora: o trabalho, os desafios e dificuldades do campo, as diferentes sociabilidades da vida rural e a própria linguagem do romance.

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Vinicius Domingos é graduado em Letras Modernas pela FFLCH-USP. Em 2017, defendeu seu mestrado Entre e vá para o diacho: O morro dos ventos uivantes enquanto obra dialética, no qual analisou a estrutura narrativa e estilística da obra.