Os desafios da imigração haitiana e a luta pela permanência

Pesquisa da USP discute estratégias de integração, trabalho e condições de permanência de imigrantes haitianos na Grande São Paulo

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Redação*
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Governo brasileiro concede visto humanitário para haitianos
Conselho Nacional de Imigração (CNIg) dá suporte à entrada de estrangeiros com visto humanitário. Foto: Marcello Casal Jr.

A imigração haitiana é resultado do processo de globalização; consequência de episódios de instabilidade político-econômica no país, como a ocupação estadunidense no início do século 20 e a ditadura de François Duvalier no final dos anos 1950. Tudo isso em conjunto com uma questão mais recente, que foi o desastre natural que atingiu o país em 2010, com um terremoto de magnitude 7.3 na escala Richter.

É dessa forma que Cristiane de Fátima Barbosa abre o primeiro capítulo de Na terra de Bon Bagay: integração e estratégias de permanência de haitianos na Grande São Paulo, sua dissertação de mestrado em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades. O estudo foi orientado pela historiadora Claudia Moraes de Souza e apresentado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

Defendida em setembro de 2022, a pesquisa de Cristiane é continuação de seu trabalho de conclusão de curso apresentado em sua especialização em Conflitos Internacionais e Globalização, completada em 2019 na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Nos cinco anos de duração de sua pesquisa, Cristiane fez observações de campo e realizou um total de 25 entrevistas com os imigrantes. Assim, ela buscou analisar as políticas públicas de acolhimento e permanência destinadas aos grupos de imigrantes haitianos, que chegaram à região metropolitana de São Paulo após o terremoto de 2010. A pesquisadora investigou as formas de sobrevivência encontradas pelos imigrantes e mapeou alguns problemas e questões por eles vivenciadas.

Cristiane de Fátima Barbosa
Cristiane de Fátima Barbosa. Foto: Arquivo pessoal

“Para além da busca por melhores condições de trabalho, teve o aspecto cultural, uma questão de associativismo, de como esses imigrantes se organizam em comunidades, e também a questão da preservação da língua. Estes foram alguns aspectos que chamaram muito a minha atenção”, pontua a historiadora, formada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.

Fluxo migratório

A relação migratória entre o Haiti e o Brasil é um fenômeno complexo que reflete tanto questões históricas quanto desafios contemporâneos. O Haiti, localizado no Caribe, é marcado por uma história de instabilidade política, desastres naturais e condições socioeconômicas difíceis. Esses fatores impulsionam a migração, e o Brasil é um dos principais destinos escolhidos.

Esse fluxo migratório sofreu um grande aumento com o terremoto de 2010, que atingiu Porto Príncipe, capital do país, e deixou cerca de 230 mil mortos e mais de 1 milhão de desabrigados. Desde então, muitos haitianos vêm ao Brasil em busca de melhores condições de vida e oportunidades econômicas, enfrentando desafios como xenofobia e racismo, além da barreira do idioma e da adaptação a uma nova cultura. 

Cristiane comenta também sobre a interpretação do autor haitiano Handerson Joseph, doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), quanto a essa cultura migratória do país. Ela destaca que Joseph divide a mobilidade internacional do Haiti em quatro grandes fluxos migratórios durante a história: a ocupação estadunidense do território haitiano no início do século 20; a influência sociocultural norte-americana no Haiti nos anos 1940; a ditadura de François Duvalier, também conhecido como Papa Doc (1957 – 1971); e o desastre natural com o terremoto que atingiu o país em 2010, o maior ápice dessa imigração para o Brasil.

Em razão dessas dificuldades enfrentadas pelo povo haitiano, que vinha ao País em busca de refúgio e como ponto de recomeço, o Brasil implementou medidas para lidar com esse fluxo migratório, como a Resolução Normativa nº 97 de 2012, do Conselho Nacional de Imigração – CNIg, que estabeleceu a concessão do visto humanitário. O visto humanitário é uma autorização concedida por um país a estrangeiros que necessitem de proteção e assistência.

Cristiane descreve o visto humanitário como “um instrumento muito respeitável de proteção aos direitos dos haitianos, e que proporciona não apenas a condição de permanência a esses imigrantes, mas também auxilia na chegada ao País por facilitar etapas burocráticas para entrar no Brasil”.

O patriotismo do povo haitiano

A população haitiana, apesar dos problemas enfrentados durante sua história, e de formar um dos maiores fluxos migratórios da América do Sul, possui um sentimento de patriotismo muito enraizado em sua cultura. Algo que, segundo Cristiane, está ligado ao orgulho que os haitianos carregam por terem sido o primeiro país a conquistar sua independência da condição de colônia europeia, e o fato de sua independência ter sido adquirida a partir de uma manifestação conduzida por negros ex-escravizados é motivo de ainda mais orgulho para a população do Haiti.

Mercearia com lista de produtos escrita em crioulo haitiano
Mercearia com lista de produtos escrita em crioulo haitiano. Foto: Cristiane Barbosa

Cristiane aponta ainda que esse patriotismo que os haitianos carregam é algo facilmente observado nas habitações dos imigrantes. “Eu observei, nas comunidades que visitei, que todo lugar tem uma bandeira do Haiti, seja dentro das casas ou em um espaço público deles”, diz ela. Além de levar a bandeira de seu país para onde forem, a cultura haitiana também é preservada de todas as formas que esses imigrantes encontram. 

“Eu percebi entre eles a preferência de sempre falar em crioulo haitiano, até no mercado as coisas estavam escritas em crioulo haitiano. Além disso, nos momentos de lazer, eles leem seus próprios autores, escutam suas próprias músicas, e da culinária nem se fala, sempre servindo pratos típicos de seu país”, comenta a pesquisadora.

A historiadora salienta que, assim como o patriotismo, esse costume migratório é algo cultural para o haitiano, e não é de forma alguma uma tentativa de fugir de seu país e de suas origens. Pois em sua pesquisa ela observa que até mesmo as pessoas que não foram afetadas por esses eventos e que possuíam boas condições de vida no Haiti, ainda assim optam por buscar oportunidades em outros países. 

Destino: a Grande São Paulo

Mesmo espalhados pelo Brasil, com algumas concentrações no Sul, Centro-Oeste e Norte, o grande centro da ocupação haitiana no País é na Grande São Paulo, principalmente nas regiões mais periféricas da metrópole, como Perus e Osasco. E a razão desse foco é a busca por oportunidades de trabalho, que é o principal motivo da escolha por emigrar. Tanto que a capital paulista agrupa imigrantes de diversos países e também migrantes internos do próprio Brasil, que deixam seus Estados em busca de trabalho na cidade de São Paulo. 

“Existem muitos imigrantes em São Paulo, de diversas nacionalidades, e também os próprios brasileiros que chegam de outras cidades e Estados. E o motivo dessa concentração sempre será o mesmo, que são as oportunidades de trabalho. E não é diferente para os haitianos”, aponta Cristiane.

Conforme relatório de 2020 do Observatório das Migrações Nacionais (OBMigra), 181.385 imigrantes, de todas as nacionalidades, trabalham com registro formal no Brasil. Esse dado representa um avanço, se comparado com os números de 2011, em que foram registrados 62.423 imigrantes trabalhadores formais. 

Porém, os dados de 2020 permitem também a reflexão sobre outra realidade vivenciada pelos imigrantes, que é a informalidade. Pois, mesmo sem os devidos registros, esse número de cerca de 180 mil trabalhadores formais permite a especulação quanto ao número de informais, visto que, no Brasil, neste mesmo relatório foram contabilizados mais de 1 milhão de imigrantes, sendo cerca de 660 mil em condições de longo termo (permanência superior a um ano). 

“Muitas pessoas tentam voltar ou seguir para outros destinos, por não conseguirem condições para a permanência em São Paulo, e essa situação faz com que muitos, na falta do emprego formal, se voltem para a informalidade. Trabalhando em obras, como ambulantes, etc.”, comenta a historiadora.

Rotas dos haitianos ao Brasil

Mapa mostra as rotas dos haitianos ao Brasil
Mapa indicando rotas do fluxo migratório de haitianos para o Estado de São Paulo. Arte: Moisés Dorado/Jornal da USP, sobre mapa Bazonka/Wikipedia/CC BY-SA 3.0

*Texto de Guilherme Ribeiro, da editoria de Diversidades do Jornal da USP