Publicação de "A Genealogia da Moral"

No famoso ensaio, o autor Friedrich Nietzsche opõe-se a diversas noções relacionadas à consciência e moralidade presentes na cultura ocidental judaico-cristã

Por
Pedro Seno
Data de Publicação

“Neste momento o ser humano teria má-consciência animal, mas não a má-consciência moral que somente aparece quando o ser humano cria um Deus todo protetor que paga pelos pecados humanos”, afirma Gabriela Ferraz Costa. [Arte: Pedro Seno]

O livro A Genealogia da Moral foi escrito pelo filósofo Friedrich Nietzsche e publicado no ano de 1887. Sua importância e influência são consolidadas após a morte do autor, já que em vida fora pouco conhecido. Nesta obra, Nietzsche discute os valores morais das “sociedades ocidentais onde predominou a tradição judaico cristã”, conforme afirma a pesquisadora em filosofia Gabriela Ferraz Costa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Nietzsche utilizou a palavra "genealogia" para descrever a formação e a origem da moralidade ao longo do tempo, desde a época greco-romana. Este ensaio é constituído de três dissertações que discutem o tema. A primeira delas aborda a oposição entre os valores do judaico-cristianismo e do paganismo, sendo o primeiro aquele que foi oprimido no período em que vigorou o Império Romano. 

Em seguida, o autor lida com a ideia de consciência moral, em que os costumes do castigo e da punição geram a chamada “má-consciência moral” e, além disso, demonstra sua posição de que a consciência humana foi desenvolvida desde os primórdios da espécie, ganhando em temporalidade, interioridade e moralidade conforme se passaram os séculos. 

Por último, a terceira dissertação explora o chamado “ideal ascético”, o qual “seria justamente a consciência culpada com o qual o ser humano condena a si mesmo e procura ser outro do que de fato é”, segundo Gabriela, além de ser uma conclusão “multifacetada” em relação aos sentidos que o filósofo atribui ao termo.

De um modo geral, Nietzsche fez um trabalho de crítica e mudança de perspectiva às noções do mundo “civilizacional e cultural que teria permeado a cultura ocidental desde o período de Platão”.

Em entrevista concedida ao Serviço de Comunicação Social, a pesquisadora elabora uma explicação mais completa acerca da obra e como ela é recebida nos contextos acadêmicos e didáticos no Brasil e na FFLCH. Não deixe de conferir:

Serviço de Comunicação Social: De que fala o livro A Genealogia da Moral?

Gabriela Ferraz Costa: A Genealogia da Moral, como o nome sugere, fala da gênese dos valores morais, principalmente nas sociedades ocidentais onde predominou a tradição judaico-cristã. O termo genealogia foi o método que Nietzsche utilizou para analisar a origem dos valores morais ao longo do tempo. Assim, no primeiro capítulo ele lida com a questão do ressentimento e com a forma de valoração do sacerdote ascético que se opõe aos valores presentes em uma casta de guerreiros. Nesta primeira dissertação também é abordada a oposição entre a tradição judaico-cristã e a pagã, já que os primeiros seriam oprimidos na sociedade greco-romana, de modo que sua forma de valorar seria permeada pelo sentimento de vingança e de ressentimento. De fato, a criação dos valores judaicos seria pautada em um não que seria dito aos valores presentes na sociedade romana, tentando mostrar estes como sendo maus. Os romanos, por outro lado, por assemelharem-se à casta guerreira e fortalecida pela guerra, não se baseariam no mau determinado pelo ressentimento, mas sim no ruim que carrega no seu cerne um ideal aristocrático no qual se procura o constante melhoramento do ser humano. Uma das conclusões desta primeira dissertação é justamente mostrar como a moral aristocrática feneceu diante da tradição supostamente democrática da tradição judaico-cristã, no qual se defende a igualdade de todos diante de Deus.

A segunda dissertação, por sua vez, lida com a questão da formação da consciência moral, mostrando a sua gênese no castigo e nas punições até chegar na má-consciência moral. O argumento de Nietzsche pauta-se na ideia de que a consciência humana se desenvolveu ao longo do tempo passando por diferentes etapas, sendo que inicialmente a subjetividade humana seria rasa como a do animal, de modo que o ser humano não possuiria nem mesmo uma consciência temporal apurada. Neste sentido, Nietzsche questiona como o ser humano se desenvolve e atinge o alto grau de interioridade e de moralidade presente na nossa sociedade e ao mesmo tempo visa explicitar o nível de sofrimento que isso implica para o ser humano civilizado. Em um primeiro momento a punição aparece como sendo fundamental para produzir a concepção de consciência temporal, já que o castigo teria a função de interiorizar um determinado tabu ou não social. Em um segundo momento ocorreria o estabelecimento da vida sedentária que seria um grande trauma para o animal homem que estava habituado com a vida livre e errante. Seria neste momento que se desenvolveria a interioridade, porque a agressividade que anteriormente podia escoar livremente para a realidade externa passa a ficar estagnada e interditada de se manifestar engendrando uma ampliação da vida interior do sujeito. Neste momento o ser humano teria má-consciência animal, mas não a má-consciência moral que somente aparece quando o ser humano cria um Deus todo protetor que paga pelos pecados humanos. Será este Deus, utilizado para simbolizar o amor infinito, que irá servir de instrumento para o ser humano odiar os seus impulsos e ímpetos mais naturais criando a consciência culpada. Será somente neste último momento que os instintos humanos irão aparecer como uma afronta à divindade.

Por fim, na terceira dissertação, Nietzsche irá discutir o ideal ascético, mostrando os diferentes sentidos que o mesmo teve ao longo do tempo e para os mais diferentes grupos sociais. O ideal ascético seria justamente a consciência culpada com o qual o ser humano condena a si mesmo e procura ser outro do que de fato é. A terceira dissertação é multifacetada e procura mostrar os múltiplos sentidos que o termo ideal ascético possui, mas coloca um dado fundamental que seria justamente a vontade de nada presente na estrutura psíquica do ser humano e que de fato constituiu os mais diversos momentos da história da civilização ocidental, tal com o platonismo, o cristianismo, o kantismo e por fim o ateísmo, por se vincula com a ideia de um reino transcendental da verdade que se opõe ao mundo dos sentidos. Neste sentido, em A Genealogia da Moral, o filósofo visa se opor a todo um desenvolvimento civilizacional e cultural que teria permeado a cultura ocidental desde o período de Platão com a criação da ideia de reino transcendental onde impera o mundo das ideias.

Serviço de Comunicação Social: Que impacto o ensaio gerou após sua publicação e até os dias atuais? E sua importância geral?

Gabriela Ferraz Costa: Nietzsche quase não teve sucesso em vida, ele foi muito pouco conhecido durante a sua existência, mas a sua obra teve um grande impacto na filosofia após a sua morte, impactando os mais diferentes autores e tradições. Ele influenciou Heidegger, Foucault, Jung dentre outros, devido principalmente ao seu estudo sobre a moralidade questionando os valores morais tradicionais que se apresentam como transcendentais, universais e eternos, mostrando como de fato teriam sido constructos sociais dados dentro de um contexto histórico. Acredito que esta capacidade de colocar tudo sobre outra perspectiva seria uma das maiores contribuições de Nietzsche para a história da filosofia, sendo, entretanto, também um autor perigoso devido a sua capacidade de abalar e de questionar as estruturas da sociedade. Ao mesmo tempo acho que é um autor que teve uma coragem muito grande ao enfrentar o grande mal-estar que rege a vida do homem civilizado, buscando mostrar as origens fisiológicas, sociais e históricas deste mal-estar, de modo que fosse possível para alguns superá-la. Neste contexto cabe ressaltar que a superação do mal-estar para com a existência não seria algo possível para todos na perspectiva do filósofo, mas sim somente para alguns que tivessem uma boa constituição fisiológica e psíquica. Neste sentido, nos termos do professor Clademir Araldi, o filósofo estaria tentando construir uma religião do sim no qual se reestabeleceria uma relação de amor para com a vida, o que seria uma grande tarefa, dado os últimos dois milênios de insatisfação com as dores presentes na existência terrena.

Serviço de Comunicação Social: Como essa obra de Nietzsche é estudada e recebida no contexto acadêmico da FFLCH?

Gabriela Ferraz Costa: A Genealogia da Moral já seria um texto canônico no contexto acadêmico da FFLCH, do Brasil e do mundo, já existem múltiplos pesquisadores e alunos se dedicando ao texto a partir das mais diferentes abordagens. Isso inclusive dificulta bastante para elaborar um trabalho sobre o autor, porque o mesmo já foi bastante estudado na França, na Alemanha, nos Estados Unidos e no Brasil, então existe uma bibliografia secundária bem extensa tratando das mais diferentes obras do filósofo e as tentativas de abarcar todas dificulta muito a elaboração do trabalho. Ao mesmo tempo torna-se difícil encontrar um assunto original para tratar a respeito do autor porque ele é bastante estudado, mas ao mesmo tempo é um dos autores que o público leigo menos conhece. Quando entrei no curso de filosofia, a maior parte dos alunos queria estudar Nietzsche, mas para minha surpresa quando estes mesmos alunos passaram a frequentar as aulas sobre o autor, houve bastante polêmica na sala de aula e em certos momentos os pontos de vista do autor não eram bem recebidos pelo corpo estudantil, o mesmo ocorreu com Maquiavel e Heidegger. Acredito que isso se deve principalmente à leitura que Marcuse faz de Nietzsche que acaba por muitas vezes mascarando o caráter hierárquico do filósofo que quando explicitado para o público geral pode provocar um certo choque, principalmente em uma sociedade democrática como se diz a nossa. Isso me preocupa um pouco porque percebo às vezes a dificuldade dos alunos, eu incluída nisso, de perceber como os valores podem mudar de acordo com a sociedade e com o contexto que estamos inseridos, de modo que perdemos a capacidade de perceber que a democracia e a igualdade não foi um valor para a maior parte da história da humanidade. Durante as aulas de Nietzsche, estes eram pontos bem delicados que geraram bastante debate entre os alunos, principalmente a visão do autor de A Genealogia da Moral a respeito da mulher. Inclusive me lembro de duas colegas que estavam super entusiasmadas em estudar o autor perderem o interesse no meio do semestre por conta destes pontos de vista. Percebo que eu, mesmo quando comecei a estudá-lo, tinha uma visão equivocada do que consistia a sua obra, de modo que pode-se dizer que é um autor que suscita muita curiosidade, mas que é muito pouco conhecido, estando principalmente restrito aos meios acadêmicos, apesar de aparecer o tempo todo em posts nas redes sociais. Mas, mesmo assim, Nietzsche na academia pode ser considerado um texto canônico devido ao tempo e quantidade de estudos dedicados ao mesmo nos mais diferentes contextos, países e perspectivas. No geral os autores que o estudam o fazem com bastante rigor, como é o caso do professor Dr. Oswaldo Giacoia, a professora Dra. Scarlett Marton, o professor Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura dentre outros de grande competência. Entretanto, ensinar Nietzsche em sala de aula é bem difícil, assim como o é ensinar Maquiavel e Heidegger, devido ao seu caráter polêmico.


Gabriela Ferraz Costa, além de graduada e mestre na área de Economia pela Unicamp e pela UFSCar, respectivamente, possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e hoje está finalizando o mestrado em Filosofia na mesma instituição sob orientação do Prof. Dr. Eduardo Brandão, com a dissertação de título “Sofrimento em Nietzsche”.