Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu por mais de 20 anos sob uma ditadura militar. O que podemos aprender com o período do regime e que relações podemos fazer com o atual clima político que vivemos no Brasil?
Em 31 de março de 1964, a derrubada do presidente João Goulart marcava o início dos governos militares no Brasil, que duraria até 1985. O Hoje na História conta um pouco das motivações do golpe militar e das semelhanças com o momento atual da política brasileira.
Desde sua posse, em 1961, João Goulart vinha adotando uma agenda popular com reformas sociais e econômicas profundas, como nacionalização de empresas e setores estratégicos, reforma agrária, distribuição de renda, entre outras medidas.
“As propostas de reforma integravam programas capitalistas, reforçavam a pequena propriedade, potencialmente reforçariam uma nova distribuição de renda que redundaria em novo perfil para o mercado interno”, explica o professor Marcos Antonio da Silva, do Departamento de História da FFLCH USP e pesquisador de Brasil República e ditadura militar.
Os rumos adotados pelo governo Goulart mobilizaram as elites civil e militar contra o presidente, que era acusado de representar uma suposta ameaça comunista ao Brasil.
Contudo, há causas mais profundas para essa mobilização: “O elitismo e o antirreformismo civil e militar não viam com bons olhos os movimentos de massa, a agenda reformista e as lideranças carismáticas de esquerda - que gravitavam em torno do governo Goulart, mesmo que não apoiassem o presidente em tudo”, aponta o professor Marcos Francisco Napolitano, também do Departamento de História da FFLCH USP e especialista no período do Brasil Republicano, com ênfase no regime militar.
A organização dos militares e setores conservadores culminaram com a deposição de Goulart em 31 de março de 1964. O governo militar teve início com eleições indiretas, colocando o general Humberto Castelo Branco como presidente do Brasil.
Apesar do auge da repressão ter acontecido a partir de 1969, após a implementação do Ato Institucional nº 5, Napolitano esclarece que a repressão foi iniciada muito antes. “O caráter ditatorial e autoritário do regime já estava posto desde os primeiros dias do pós-golpe, se afirmando plenamente com o AI-2”.
De acordo com o docente, o AI-2* dissipou as ilusões dos liberais apoiadores do golpe, que acreditavam em um “governo tampão” de Castelo Branco. “O regime avisava, já no preâmbulo do Ato, que tinha vindo para ficar”.
(*Em outubro de 1965, o AI-2 instituiu eleições indiretas para presidente, dissolveu partidos políticos, suspendeu direitos políticos de opositores do regime e outras medidas.)
Para o professor Marcos Silva, o general Castelo Branco tinha liderança e recebeu apoio suficiente para cometer imensas violências contra opositores “fazendo de conta que aquilo não era uma ditadura”.
O professor explica que “hoje existe a impressão de que Costa e Silva e o AI-5* nasceram do nada: mas houve AI-1, AI-2, AI-3, AI-4 antes, sob o primeiro ditador, e Castelo Branco teve Costa e Silva como ministro da Guerra”.
(*Editado em dezembro de 1968, o AI-5 deu ao presidente da República o poder de cassar mandatos, suspender direitos políticos de qualquer pessoa, intervir em estados e municípios, suspender Habeas Corpus para crimes políticos, decretar recesso do Congresso e assumir suas funções legislativas, censurar jornais, livros, músicas e outras obras artísticas e intelectuais. Foi o auge da repressão e violência do regime militar.)
Cenário político 1964 x 2018
O atual clima político que vivemos no Brasil levanta diversas comparações entre os anos anteriores à ditadura de 1964 e o atual. Para o professor Napolitano, nos anos 1960 havia a Guerra Fria e, diferentemente daquela época, o atual protagonismo político dos militares está enfraquecido.
“De resto, há algumas semelhanças: uma elite que se diz liberal, mas estimula o golpismo, sob crítica ao ‘populismo’ e à ‘irresponsabilidade fiscal’ da esquerda. Outro aspecto, é a mesma desconfiança e criminalização dos movimentos sociais”, completa.
O professor Marcos Silva acredita que as comparações revelam continuidades do regime em diversos aspectos, como na manutenção de parte da legislação e em práticas políticas no pós-ditadura. “Uma ditadura não se apaga com uma eleição nem mesmo com uma Constituição, embora eleições e constituições sejam muito importantes”, diz.
Silva também aponta semelhanças: “Penso que, num plano genérico, o que se assemelha muito é o clima conspiratório, a violência física contra opositores (mataram João Pedro Teixeira, liderança das Ligas Camponesas, antes do golpe; mataram Marielle Franco, liderança popular no Rio de Janeiro, muito recentemente), o grande poder econômico de golpistas e suas alianças internacionais de peso”.
Foi uma ditadura?
Além das semelhanças com o clima político pré-64, atualmente alguns setores da sociedade (principalmente fora das universidades e meios intelectuais) começam a reinterpretar a ditadura de 1964. Não é raro observar pedidos de volta dos militares, principalmente em manifestações políticas mais recentes, assim como a utilização de termos como “Revolução de 1964” para abrandar a história do regime.
Napolitano afirma que não há dúvidas, na historiografia acadêmica, que se tratou de uma ditadura: “Na sociedade, há correntes de opinião autoritárias que se identificam com o regime e seus métodos (censura, tortura, restrições aos direitos civis), têm desprezo pela democracia e acreditam em soluções de força para os conflitos sociais e políticos”, explica.
O docente aponta que a crise política atual também é utilizada para reforçar essa reinterpretação do que foi o regime. “O medo social contra a criminalidade, que é um problema real e sério, tem sido alimentado e instrumentalizado pelos setores conservadores, autoritários e elitistas (vide a intervenção no Rio de Janeiro). Tudo isso converge e alimenta uma memória ‘nostálgica’ e positiva do regime militar”, avalia.
O professor Marcos Silva compartilha dessa opinião: “A ditadura sempre fez de conta que era outra coisa. Ela foi implantada e mantida não apenas pelos militares, mas também por civis do judiciário, legislativo, imprensa, setores da universidade... Falar da ditadura como se ela fosse outra coisa é reiterar a ideologia daquele caos”.
Ele acredita que “endossar a ideologia que legitima a ditadura é manter a porta aberta para novas ditaduras, é aceitar a violência física contra opositores, como está ocorrendo em março de 2018 - assassinato de Marielle, tiros disparados contra a caravana de Lula no sul do Brasil”.
* Texto originalmente publicado em mar/ 2018
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Confira abaixo as entrevistas completas com os professores:
Entrevista professor Marcos Francisco Napolitano
Entrevista com professor Marcos Antonio da Silva