Resenha do livro "O Sabor do Arquivo" de Arlette Farge
Resenha de Luiza Tofoli dos Santos (USP) e Marcelo Módolo (USP) publicada na Revista USP n. 142
Arlette Farge é historiadora francesa, professora e pesquisadora, especializada nos estudos do comportamento popular, relações de gênero e mentalidades da França do século XVIII. É diretora de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), vinculado à École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Entre seus trabalhos se destacam Le désordre des familles (1982), resultado de um estudo conjunto com Michel Foucault, e Le goût de l'archive (1989), objeto desta resenha, em que Farge se debruça sobre os arquivos policiais do Século das Luzes para discorrer sobre temáticas da história social da época e sobre o trabalho do pesquisador nessa área. O livro faz parte da coleção La Librairie du XXe siècle – que em janeiro de 2001 passou a se chamar La Librairie du XXIe siècle – da editora francesa Éditions du Seuil. Idealizada e fundada em 1989 pelo arqueólogo e filólogo francês Maurice Olender, a coleção acolhe obras de escritores, poetas e investigadores das ciências humanas. Le goût de l'archive foi traduzido para o português por Fátima Murad e publicado no Brasil em 2009 pela Edusp com o título O Sabor do Arquivo. A sinopse da obra, presente no catálogo online da coleção e na contracapa da edição da Edusp, se inicia com a frase “l’archive naît du désordre”, ou “o arquivo nasce da desordem”. Uma vez concluída a leitura, compreende-se que a desordem caracteriza não somente as circunstâncias em que delitos eram cometidos, flagrados e registrados no século XVIII, mas também a imensidão própria do arquivo e sua capacidade de produzir inúmeros sentidos, desde que seja devidamente questionado, o que pode ser um grande desafio.
O leitor desavisado se surpreende instantaneamente: o primeiro parágrafo de O Sabor do Arquivo é caracterizado por um tom intimista que não é esperado de uma obra cujo objeto de discussão são arquivos judiciários franceses do século XVIII. Trata-se de relato sensorial, vívido e preciso, atento a minúcias do manejo de documentos que somente a longa experiência conseguiria de tal maneira captar e descrever. Dessa forma, já se estabelece, desde a primeira página, que a obra não apresentará um tratamento unicamente técnico e científico de seu objeto, porque Farge vê como indispensável a abordagem da emoção inerente ao processo de investigação do arquivo, o momento “quando aquele que o lê sente a beleza, o assombro e um certo abalo emocional” (2022, p. 36) diante de seu inundante “adicional de vida” (id.). Segundo a autora, “a emoção é um instrumento a mais para polir a pedra, a do passado, a do silêncio” (2022, p. 37).
Uma vez descrita a singularidade do manejo dos arquivos e delimitado o objeto de estudo da obra, Farge se propõe, ainda nas primeiras páginas, a consolidar a perspectiva sociológica que adota em seu trabalho de pesquisa, e que caracteriza toda a obra. Por meio do exame “de queixas, processos, interrogatórios, informações e sentenças” (2022, p. 10), observa-se, de um lado, uma polícia que procurava controlar, vigiar e reprimir, e, de outro, uma população pobre que não dispunha dos meios para escrever sua própria história.
A partir daí, surge a seguinte angústia: se o registro das mais ínfimas ocorrências da cidade de Paris ficava nas mãos de uma polícia inimiga de um povo que dependia da lábia para evitar punições, como confiar nos arquivos? O leitor carrega este questionamento da página 15 até a 31, na qual tem início o subcapítulo “O Povo em Palavras”. Nele, Farge afirma que, de fato, o pesquisador pode optar por trabalhar com as informações seguras e palpáveis dos arquivos – como tipos específicos de delitos –, para logo em seguida levantar a seguinte problemática: como ficam as informações que não são verificáveis, como a veracidade dos depoimentos e integridade do que foi registrado? De acordo com a autora, esses aspectos evidenciam discursos e comportamentos individuais e coletivos. Os fatos, o verdadeiro, o palpável não são o foco sob essa perspectiva. Mesmo que o discurso contenha falsidades, este fator ainda é um dado importante que não deve ser descartado: o discurso do interrogado foi construído com um propósito – o de se defender diante de um poder com o qual ele entra em choque –, e avaliar sua veracidade não é mais importante que refletir sobre as estruturas de poder que motivaram a sua formulação e condicionaram a maneira como foi registrado pela polícia. Aqui, Farge dialoga diretamente com Foucault: os arquivos, traçando “trajetos frágeis, relatados em poucas palavras” (2022, p. 34), são uma fonte inegável de compreensão das relações de poder que se articulavam entre os próprios civis, entre a polícia e a monarquia, e, principalmente, entre todas estas forças. Independentemente de sua verificabilidade, “talvez o arquivo não diga a verdade, mas ele diz da verdade” (2022, p. 35).
Assim, as temáticas gerais de O Sabor do Arquivo, que perpassam toda a obra, vão se definindo. Farge se preocupa em discorrer sobre i) o que se pode retirar dos arquivos (mentiras, verdades, discursos, relações poder), ii) a opressão policial e monárquica, iii) a forma como os arquivos devem ser vistos pelo pesquisador (instrumento de construção e ordenação de uma realidade passada a partir de questionamentos sistemáticos, e não mera revelação de uma verdade única e dada), e iv) a relação entre os arquivos e a escrita da história, uma vez que, sendo instrumento, os arquivos contribuem para a complexificação e quebra de modelos e estereótipos históricos amplamente consolidados – segundo Farge, “a primeira ilusão a combater é a da narrativa definitiva da verdade” (2022, p. 93). Essas temáticas garantem a coesão da obra: à medida que a leitura avança, considerações feitas inicialmente vão ganhando complexidade e profundidade. Assim, torna-se comum revisitar passagens e pausar a leitura para refletir sobre e amarrar o que foi dito até então.
Um dos maiores exemplos desse dinamismo que caracteriza O Sabor do Arquivo é a correspondência entre o subcapítulo “O Povo em Palavras” (p. 31) e o subcapítulo “Pensar Certas Formas de Expressão Popular” (p. 98), dois dos mais notáveis da obra. No primeiro, já mencionado anteriormente, Farge introduz algumas noções fundamentais, que o segundo se encarrega de desenvolver. Assim, por exemplo, enquanto “O Povo em Palavras” se contenta em apontar a fugacidade do registro policial, que súbita e violentamente recorta sujeitos comuns de suas vidas cotidianas e “cristaliza-os em algumas queixas ou denegações lamentáveis” (p. 32), “Pensar Certas Formas de Expressão Popular” volta a atenção do leitor para o que estes súbitos recortes do cotidiano podem revelar sobre uma cultura, “um saber social e formas reconhecíveis de expressão popular” (p. 108) comumente negligenciadas pela história. Enquanto aquele indica que os delitos e as punições podem desempenhar um papel revelador a respeito das normas, do poder político e da sociedade da época, este discute, com maior profundidade, a maneira como se articulava a relação entre monarquia e povo a partir do que revelam os próprios arquivos — uma relação em que aquela não hesitava em vigiar, reprimir e silenciar quando este demonstrava qualquer nuance de um comportamento diferente de docilidade e satisfação. Ainda, enquanto o primeiro fala da relação entre o veraz e o falso nas narrativas que se articulavam “entre um poder que obriga a [relatar], um desejo de convencer e o uso de palavras que se pode tentar descobrir se foram emprestadas ou não de modelos culturais locais” (2022, p. 34), lançando luz sobre o fato de que a veracidade do que está registrado não prevalece sobre a identificação dos discursos e relações de poder que os arquivos podem revelar, o segundo, de forma complementar, se propõe a estabelecer a noção de que ao arquivista é incumbida a tarefa de, mais do que identificar e descrever condutas e discursos, desvendar os “sistemas de racionalidade” que os motivaram, buscando possíveis sentidos a partir dos diferentes e complexos aspectos do período que os arquivos trazem à luz.
No mais, vale ressaltar que o dinamismo da leitura de O Sabor do Arquivo não se restringe às várias conexões entre partes distintas da obra, mas se expande para sua relevante intertextualidade, que vai além do diálogo com as ideias de Foucault a respeito das estruturas de poder. Como exemplo, quando Farge afirma que as respostas dadas por interrogados à polícia “compreendem formas específicas de saber que nada tem a ver com as da cultura dominante” (2022, pp. 83-84), que “as práticas cotidianas são o produto de [...] culturas feitas de denegação, de submissão, de sonhos e de recusas, de escolhas racionais e refletidas e, mais ainda, de desejo de legitimidade” (2022, p. 98), e que “as elites não são decididamente as únicas a determinar uma cultura [...]” (2022, p. 99), é possível identificar uma significativa correspondência com as considerações feitas por Raymond Williams em seu célebre ensaio “A Cultura é de Todos” (1958, trad. Maria Elisa Cevasco), ainda que o contexto abordado pelo autor, a Inglaterra operária da primeira metade do século XX, seja significativamente diferente do contexto da França do século XVIII. Williams declara que cultura significa “todo um modo de vida” (p. 2), e também afirma que por mais que haja, de fato, uma cultura erudita inglesa, da qual a classe trabalhadora é inegavelmente privada, “[...] dizer que os trabalhadores estão excluídos da cultura inglesa é bobagem: eles têm suas próprias instituições em expansão e, em todo caso, muito da cultura estritamente burguesa eles não iam mesmo querer” (p. 4). De forma similar, a população trabalhadora da França do século XVIII, ainda que não dispusesse dos mesmos meios da elite, tinha, naturalmente, sua própria cultura e modo de viver, que, segundo Farge, não podem de forma alguma ser negligenciados pelo pesquisador.
Em meio às temáticas gerais, outras vão sendo abordadas de forma mais pontual e específica, como i) os detalhes mais particulares do cotidiano do arquivista, que aparecem principalmente nos capítulos “Na Porta de Entrada”, “Ela Acaba de Chegar” e “A Sala de Inventários é Sepulcral”, em que a obra assume um tom ficcional com a chegada inesperada de um narrador onisciente, que acompanha a experiência de diferentes sujeitos em salas de inventários e de leitura de arquivos; ii) as armadilhas e tentações nas quais o pesquisador pode cair, como a perigosa identificação, que anestesia o documento, na medida em que se trata de um “modo insensível, mas real, que tem o historiador de ser atraído apenas por aquilo que pode reforçar suas hipóteses de trabalho decididas previamente” (pp.71-72), o que o leva a ignorar as diferenças, exceções e contradições tão próprias da desordem do arquivo, e a criação de ficções com os dados coletados, que afasta o sujeito da história; e iii) as relações de gênero juntamente com a figura feminina nos arquivos.
Esta última temática merece atenção especial. No subcapítulo denominado “Presença Dela”, Farge se dedica a discorrer sobre as informações do universo feminino que podem ser levantadas a partir da leitura dos arquivos, como as ocupações mais comuns desempenhadas pelas mulheres da época, seus percursos de vida, as ocorrências das quais geralmente faziam parte, e, principalmente, o paradoxal do século XVIII, “em que a mulher é levada a assumir responsabilidades econômicas, e mesmo políticas, apesar de ser privada de poderes reais” (2022, p. 45). Em relação a estas responsabilidades, Farge faz uma série de apontamentos sobre as mulheres: são agressivas, decididas, manipuladoras, muitas vezes cruéis, rápidas em propagar notícias e preparadas para defender seus bens, crianças e maridos a qualquer custo. Com o emprego de uma linguagem incisiva, em que afirmações são feitas sistematicamente, Farge, procurando desafiar o estereótipo da mulher frágil e dissociada da história, acaba criando um outro estereótipo feminino bastante consolidado, o que entra em contradição com a propriedade do arquivo, bastante destacada ao longo da obra, de evidenciar a heterogeneidade das camadas sociais, rompendo com imagens prontas. A autora parece se dar conta do estereótipo criado, pois dedica os últimos parágrafos do subcapítulo a recordar que nada é definitivo, e que os arquivos, antes de mais nada, complexificam o que achamos ser simples. Ainda assim, fica evidente a criação de uma imagem bastante específica da mulher.
Por fim, é importante que sejam feitas considerações sobre a escrita da obra de forma geral. A inacreditável quantidade de pontos e vírgulas pode ser, por vezes, incômoda para o leitor brasileiro – por mais que o original esteja repleto deles, a tradução poderia facilmente ter contornado alguns, evitando colar-se tanto na sintaxe francesa da autora. Ademais, a linguagem em determinados momentos não flui naturalmente no português, apresentando uma ordenação pouco usual dos termos da oração ou, então, uma pontuação que faz pouco sentido na língua. Temos como exemplo a interrogação “O que quer dizer exatamente: dispor de inúmeras fontes, e como conseguir tirar do esquecimento existências que jamais foram lembradas, nem mesmo em vida [...]?” (2022, p. 21), cuja pontuação poderia ter sido posta da seguinte forma: “O que quer dizer exatamente ‘dispor de inúmeras fontes’, e como conseguir tirar do esquecimento existências que jamais foram lembradas, nem mesmo em vida [...]?”. Outras perguntas deixam de apresentar ponto de interrogação, como em “O desacordo e o confronto estão no centro das fontes policiais: por que não tirar vantagem disso para fazer do desarranjo e das rupturas uma gramática que permita ler como existências se forjaram, se negaram ou se desfizeram uma após a outra.” (FARGE, 2022, p. 48). Um outro exemplo seria o trecho “Quando das vistorias de oficiais de justiça e comissários encarregados de fazer apreensões em oficinas contraventoras, elas estão lá [...]” (FARGE, 2022, p. 41), em que a ordem dos termos deixa a leitura intrincada.
No mais, o texto carece de uma revisão textual, o que se justifica pelos seguintes exemplos: em “O arquivo judiciário, necessariamente, introduz no interior do campo em sobressalto paixões e de desordens” (FARGE, 2022, p. 46), a preposição de antes de “desordens” não parece ter sentido; em “[...] mas por essa vinda do sentido, som após som, como se fosse uma partitura musical, como se o som oferece às palavras seu sentido” (FARGE, 2022, p. 63), o verbo “oferece” deveria estar conjugado no pretérito imperfeito do subjuntivo (oferecesse), pois da maneira como está, ocorre a ruptura do paralelismo com o verbo “fosse”; em “Quando o prisioneiro da Bastilha [...] escreve à sua mulher em um pedaço de sua camisa rasgada [...], impõe ao escritor da história não o faça aparece como um herói de romance” (FARGE, 2022, p. 76), mal se pode compreender qual deveria ser a mensagem. Uma hipótese para a existência de tantas questões de escrita é a de que a tradução possa ter enfrentado problemas na tentativa de, fazendo uso dos termos cunhados pelo tradutor americano Lawrence Venuti ao basear-se no filósofo alemão Friedrich Schleiermacher (1995, pp. 19-20), estrangeirizar o texto em vez de domesticá-lo, isto é, de aproximar o leitor do original em vez de trazer o original até ele, o que é, em todo caso, uma escolha válida – de fato, as questões referentes à pontuação são sanadas quando se faz o cotejo dos trechos turbulentos. Ainda assim, é papel da tradução garantir que os sentidos do original sejam devidamente recriados na língua-alvo, o que não foi completamente alcançado em O Sabor do Arquivo.
De todo modo, os casos mencionados não são suficientes para minguar a experiência proporcionada por Arlette Farge. A maneira como fala sobre o “modo apaixonado de construir uma narrativa, de estabelecer uma relação com o documento e com as pessoas que ela revela” (2022, p. 56) inunda o leitor da mesma forma como “o adicional de vida” e a imensidão dos arquivos inunda o pesquisador. Farge faz uma mescla agradável entre uma escrita informativa e apaixonada que proporciona leituras e aproveitamentos diversos. Assim, as sensações que restam após o término de O Sabor do Arquivo são múltiplas: se deseja visitar os arquivos da cidade, seguir o labor arquivístico e filológico e até mesmo escrever alguma ficção sobre a magia de descobrir a existência de sujeitos esquecidos pela história.
Referências
ÉDITIONS DU SEUIL. Collection littéraire: la librairie du xxie siècle. La Librairie du XXIe siècle. Disponível em: <seuil.com/collection/la-librairie-du-xxie-siecle-530>. Acesso em: 1 nov. 2022.
FARGE, Arlette. O Sabor do Arquivo. Tradução de Fátima Murad. 1ª ed., 2ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2022.
FOUCAULT, Michel. Le désordre des familles. Lettres de cachet des Archives de la Bastille. Paris: Gallimard/Julliard, 1982.
VENUTI, Lawrence. The Translator’s Invisibility. New York: Routledge, 1995.
WILLIAMS, Raymond. A cultura é de todos (Culture is Ordinary), 1958. Trad.: Maria Elisa Cevasco. Disponível em: <theav.weebly.com/uploads/8/4/7/3/8473020/1958_aculturaedetodos_raymondwilliams.pdf>. Acesso em: 20/10/2022.