Tese de doutorado analisou ações do museu para evitar “encantamento” da população com esplendor do edifício e das obras
Você já se sentiu tão encantado pela grandiosidade (e certa aura) de algum lugar a ponto de sair do prédio sem saber exatamente o que conheceu? Essa sensação “mágica” foi objeto de estudo da pesquisa Entre a imagem e o discurso: magia e ciência no Museu do Ipiranga, de Julio Cesar Talhari, doutor em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Em agosto de 2013, o Museu Paulista, popularmente conhecido como Museu do Ipiranga, foi fechado ao público para a realização de reformas estruturais. Diagnósticos de 2005 já apontavam a necessidade de ampliar e modernizar o espaço. Com o agravamento das condições físicas do prédio, a solução foi manter os visitantes longe e transferir parte do acervo a outros edifícios até setembro de 2022, quando o Museu reabriu.
Com uma pesquisa etnográfica inspirada na visão da antropologia urbana — na qual museus são vistos como ambientes de interações entre o espaço e as pessoas — Julio Cesar acompanhou o trabalho das equipes curatoriais e educativas do Museu do Ipiranga por cerca de seis anos (2018 - 2024). Essas equipes se dedicaram a manter o contato com o público mesmo durante as reformas e proporcionaram um acolhimento mais adequado aos novos visitantes que nunca haviam ido ao Museu. Ele conta que, inicialmente, a ideia de seu doutorado era fazer uma análise de vários museus, mas que as condições favoráveis de acesso e a pandemia acabaram concentrando sua atenção no museu mais antigo da cidade de São Paulo.
Para isso, o pesquisador assistiu a eventos, acompanhou grupos de estudos da instituição e observou o comportamento dos visitantes após a reabertura. “O Museu do Ipiranga iniciou, em 2016, o Encontro Café com Museu porque eles sentiram falta de um diálogo, não recebiam público, não recebiam ninguém. Então, sentiram falta de dialogar pelo menos com quem estava na redondeza e explicar o que estava acontecendo com o Museu, em que estágio estava. Eu cheguei em 2018 e acompanhei de perto algumas dessas reuniões”, conta.
A pesquisa concluiu que, mesmo com os esforços das equipes para contextualizar a narrativa visual construída, as ações não são suficientes para evitar o que ele chamou de “encantamento do público” com a estrutura monumental do Museu. “A pessoa chega lá e fica embasbacada. Eu via muito esse caráter de encantamento, mesmo quando eram segmentos de públicos bastante críticos à narrativa dos bandeirantes, movimentos mais ligados a discussões feministas ou questões raciais”, relata.
Ele complementa que, apesar de haver painéis interativos ao lado de algumas exposições para desmistificar pensamentos do senso comum sobre o edifício ou a figura dos bandeirantes, o imaginário popular prejudica o trabalho. Um exemplo disso é a ideia de que o Museu foi um dia a casa de Dom Pedro I, imperador do Brasil entre 1822 a 1831, que faleceu em 1834 — mais de 50 anos antes da construção do Museu.
Julio destaca que falar com os profissionais do Museu, especialmente aqueles que fazem parte do setor de curadoria e educativo, foi essencial para a obtenção dos resultados. Para ele, a experiência desses grupos, que há anos fazem visitas guiadas, recebem professores e estudantes e conversam com a diretoria, deve ser levada em consideração. “No diálogo com essas educadoras, eu percebi uma certa frustração. Porque mesmo com essas inovações museográficas, os áudios, alguns vídeos curtos e tudo mais, as pessoas não saíam desse estágio de encantamento. Elas não acessavam a informação que estava lá ou então acessavam de uma maneira bastante fragmentada que não dava a ideia que o Museu queria passar”, explica.
Falta de Investimento
De acordo com Júlio, além de mostrar que as ações do Museu foram insuficientes para desencantar o público, a pesquisa também identifica e reflete sobre as limitações dos investimentos para a manutenção da infraestrutura básica e para modernização das abordagens. “Por ser um museu universitário ele tem suas complexidades de mostrar para a própria USP que ele é importante e que precisa receber dinheiro”, conta.
Em resposta às dificuldades financeiras enfrentadas e como alternativa para sustentar a nova realidade do Museu — que hoje tem o dobro do tamanho em relação a 2013 —, foi criada a Fundação de Apoio ao Museu Paulista (FAAMP). Trata-se de uma entidade privada, sem fins lucrativos, que busca dar suporte aos projetos do Museu.
Para Julio, a conclusão de que os investimentos e as iniciativas não são suficientes para cativar o público pode servir de ponto de partida para mais pesquisas não apenas no Museu Paulista, mas em outros edifícios com a mesma finalidade. “A questão não é dar aos visitantes do Museu o que eles querem, mas é entender quais são as percepções deles para tentar dialogar com os imaginários e até para tentar desconstruí-los”, afirma.
O pesquisador critica a ideia de uma recontextualização e ressignificação total dos monumentos. “Eu tento trazer na tese que há limites para essa ressignificação que hoje em dia se fala muito. Eu trabalho com o conceito de agência, que é a intencionalidade daquele que fabricou aquela obra. Enquanto esse imaginário tiver ressonância nas pessoas de hoje é muito difícil você combater com outra coisa”. Para ele, a adoção de estratégias alternativas para captar a atenção do público é essencial, bem como o engajamento público. “O Museu do Ipiranga, enquanto monumento, é parte de todos. Então não pode ser uma discussão somente dos historiadores. As pessoas têm que participar do debate”, complementa.
A tese de doutorado Entre a imagem e o discurso: magia e ciência no Museu do Ipiranga, de Julio Cesar Talhari, foi orientada por Heitor Frúgoli Júnior e defendida em setembro de 2024 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da FFLCH.
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