O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Participa, sediado na USP, quer contribuir na construção de respostas a problemas como o déficit de participação nos territórios e a radicalização política
Ao longo da última década, emergiram no Brasil novos atores sociais, novas formas de ação coletiva e novos conflitos, que vêm mudando a cara da sociedade civil e de suas relações com o Estado. Com o objetivo de produzir diagnósticos mais precisos sobre o novo cenário da participação e do ativismo, um novo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) sediado na USP reúne 15 núcleos de pesquisa das cinco regiões brasileiras para desenvolver projetos conjuntos de pesquisa, formação e extensão. Financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o INCT Participa quer ajudar a dar respostas políticas aos dilemas colocados pela crise da democracia, o crescimento da vulnerabilidade social, as tecnologias digitais de comunicação e a ascensão da extrema-direita.
Coordenador da iniciativa, o professor Adrian Gurza Lavalle, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, afirma que o INCT Participa tem o compromisso de colocar o conhecimento produzido a serviço dos gestores públicos e da comunidade. O novo INCT já firmou uma parceria com a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) para oferecer cursos para gestores públicos e, em breve, lançará um Observatório da Participação.
“Nós temos o compromisso de ajudar a formar gestores e de colocar o conhecimento que a gente está produzindo a serviço de atores sociais. Não é nem um pouco fácil, porque as formas mais tradicionais de fazer isso são convidar esses atores para discutir aquelas coisas que você está produzindo. Mas já temos caminho andado para saber que, quando você faz isso, as pesquisas não produzem consequência sobre esse ator. Se você não produz questões que sejam relevantes para eles na formação, na produção de cursos, na produção de conhecimento, obviamente que esses atores não vão se interessar em utilizar esse conhecimento”, diz o professor da USP.
Segundo Gurza Lavalle, a estrutura do INCT, que conta com um sistema de governança colegiada e um comitê assessor internacional, permitirá estreitar a colaboração entre os núcleos de pesquisa que o compõem, de maneira que eles possam desenvolver iniciativas mais ambiciosas em conjunto. Uma dessas iniciativas é justamente o Observatório da Participação, que até o final do ano disponibilizará para acesso público no site do INCT Participa mais de 30 bases de dados temáticas. O material inclui bases de dados que alimentaram artigos científicos já publicados e versões padronizadas dos dados das pesquisas Munic, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sobre os conselhos gestores de políticas públicas em funcionamento nos municípios brasileiros.
Entre os núcleos de pesquisa que formam o INCT Participa estão o Núcleo de Democracia e Ação Coletiva (NDAC) do Cebrap, o Núcleo de pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (Nepac) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Grupo de Pesquisa
Associativismo, Contestação e Engajamento (GPACE) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS). As regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte do País estão representadas por núcleos como o Grupo de Pesquisa Repensando as Relações entre Sociedade e Estado (Resocie) da Universidade de Brasília (UnB), o Núcleo de Estudos em Relações Estado-Sociedade e Políticas Públicas (Nespp) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Complexidade Amazônica da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
Enfrentando o déficit de participação
O INCT Participa nasceu de uma rede de de pesquisadores que há anos já vinha colaborando informalmente entre si em projetos pontuais e na organização do Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas (PDPP), evento acadêmico que em 2025 terá sua quinta edição. Todos eles fazem parte do campo da participação, que congrega estudiosos que se dedicam aos temas dos movimentos sociais, da sociedade civil, dos ativismos e da participação institucionalizada. O campo se desenvolveu a partir dos anos 1990, acompanhando a evolução da relação entre movimentos sociais, atores da sociedade civil e atores do Estado. Com as transformações recentes no cenário político brasileiro, um dos principais desafios que a equipe do INCT Participa se propõe a encarar é atualizar os diagnósticos em seus três eixos de pesquisa: participação, associativismo e confronto político.
No eixo da pesquisa sobre participação, o desafio é produzir um diagnóstico atualizado sobre as chamadas instituições participativas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro e, agora, no terceiro mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva. Instituições participativas são espaços institucionais “híbridos”, onde o Estado convida a sociedade civil a participar dos debates e decisões sobre políticas públicas. Os exemplos mais conhecidos são os orçamentos participativos, os conselhos gestores e as conferências temáticas de políticas públicas.
Na virada do século 21, o orçamento participativo de Porto Alegre foi uma das experiências de participação institucionalizada mais estudadas pelas ciências sociais em todo o mundo. Passadas duas décadas, os pesquisadores do campo da participação conhecem bem as vantagens e as limitações das instituições participativas brasileiras. Para o coordenador do INCT Participa, hoje há importantes perguntas de natureza programática para se fazer: vamos insistir nesse conjunto de instituições e deixar tudo igual? Ou precisamos procurar formas de aumentar a efetividade dessas instituições e torná-las mais diversas?
“O Brasil, sendo um país extraordinariamente famoso pelo seu modelo participativo, tem déficit de participação importante no território. Nós não temos participação territorial, a rigor, onde importa [para] a vida das pessoas. Nós não temos participação de usuários de políticas públicas de forma significativa. Nossa legislação sobre a democracia direta no Brasil é muito acanhada, se comparar com as legislações que existem em outros países da região. E não precisamos escolher Venezuela ou Nicarágua, [podemos] comparar com a Colômbia, comparar com a Argentina”, diz Gurza Lavalle.
Para entender a radicalização política
Nos eixos de pesquisa sobre associativismo e confronto político, os pesquisadores também estão empenhados em produzir novos retratos da política brasileira. No caso do associativismo, por exemplo, o coordenador do INCT afirma que os novos diagnósticos terão de considerar a importância da filantropia nacional, que era praticamente inexistente 20 anos atrás. Será importante entender como as associações filantrópicas figuram na ecologia do associativismo brasileiro e como se posicionam politicamente.
No terceiro eixo, os pesquisadores trabalham com o conceito de confronto político. O termo foi proposto pelos cientistas sociais estadunidenses Charles Tilly, Sidney Tarrow e Doug McAdam para abarcar todo tipo de ação coletiva que opõe grupos com interesses conflitantes e implicam o Estado como mediador ou alvo do conflito. Os grupos que participam do confronto político usam repertórios mais ou menos variados de ações para expressar suas reivindicações. O exemplo mais clássico é o dos movimentos sociais que fazem protestos de rua. Os repertórios podem ser mais violentos ou mais pacíficos. A ideia é analisar como os conflitos acontecem e se desenvolvem.
As pesquisas mais recentes sobre a dinâmica do confronto político no Brasil já indicam que hoje há uma maior diversidade de atores mobilizados, que recorrem a repertórios de ação diferentes daqueles registrados pelos pesquisadores no nascimento do campo da participação, quando a sociedade civil que se conhecia era aquela emergida do processo de democratização e muito vinculada ao processo de institucionalização das políticas sociais. “Os repertórios têm mudado consideravelmente e eles [os novos atores] têm progressivamente lançado mão de repertórios especialmente violentos”, afirma Gurza Lavalle. Para ele, classificar os atores sociais de extrema-direita como novidade ou como anômalos ao sistema político não tem ajudado a lidar com o processo de radicalização que já levou a episódios como o 8 de janeiro e o recente atentado frustrado executado em Brasília por um ex-candidato a vereador.
“A radicalização está presente, nós não temos sido capazes de produzir conhecimento à altura e algumas das coisas que têm sido feitas têm ajudado muito pouco. Um exemplo que hoje se tornou óbvio é descrever esse panorama como um panorama em que o confronto político está se estruturando de forma polarizada”, diz o professor da USP. “Não há um processo de polarização. A polarização é uma leitura de uma parte da classe política, de uma parte dos atores, uma parte que quer procurar um terceiro lugar no meio de duas forças. Então, produz uma leitura da polarização. Só que ao fazer isso, a gente não está entendendo nada. Há um processo de radicalização, e o processo de radicalização significa (que) há toda uma dinâmica societária, individual, que conecta com o nível macro, meso, micro e que leva pessoas a fazer o que fez o Vanderley. Precisamos entender isso e não adianta dizer que essas pessoas fazem coisas tresloucadas. Precisa se estudar a dinâmica do confronto”, completa Adrian Gurza Lavalle.
Veja no mapa todos os núcleos de pesquisa que compõem o novo INCT Participa:
Texto por Silvana Salles e arte por Joyce Tenório*/Jornal da USP
Texto original: https://jornal.usp.br/diversidade/novo-inct-reune-nucleos-de-pesquisa-p…