Ausência de políticas antirracistas em Cuba abriu espaço para o desenvolvimento de um ‘racismo social’

Pesquisa da FFLCH revela que, apesar da discriminação racial em Cuba ter sido proibida pelo governo socialista, a sociedade cubana ainda convive com formas alternativas de racismo
Por
Gabriela César
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Foto: JF Martin/Unsplash

Em 1959, com a vitória da Revolução Cubana, a ilha de Cuba se tornou um país socialista que passou a defender, entre outros princípios, a igualdade social. Dois anos depois, em um discurso de 1961, o então presidente Fidel Castro declarou o fim da discriminação racial no território cubano. No entanto, uma pesquisa de doutorado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP mostrou que o resultado não foi o esperado: ainda hoje, o país convive com um racismo de caráter social, agravado pela ausência de políticas públicas efetivamente antirracistas.

O antropólogo Lourival Aguiar Teixeira Custódio, autor da tese, explica que o racismo de Cuba ocorre a partir das relações sociais da população, de uma forma menos estrutural que no Brasil, por exemplo. O pesquisador destaca que marcadores de desigualdade social, como a falta de acesso à educação ou o desemprego, não existem no território cubano pelas políticas socialistas de igualdade social. Apesar disso, a falta de combate ao racismo pelo governo de Fidel fez com as pessoas brancas criassem uma grande resistência às pessoas negras acessarem outros espaços, o que gerou um imaginário social racista.

“O racismo é uma criação de desigualdades, só que são desigualdades que decidem sobre a vida ou a morte das populações negras. Por isso, elas têm que ser olhadas com muita seriedade.”
 Lourival Aguiar

Aguiar explica que, embora Cuba seja retratada em propagandas turísticas como um país formado majoritariamente por população negra, um censo realizado em 2012 demonstrou um resultado diferente: cerca de 64% dos cubanos se autodeclaram brancos. O pesquisador afirma que essa autodeclaração também faz parte do racismo existente em Cuba, já que a população com fenótipos negros prefere se identificar como brancos pela ausência de um debate racial concreto.

 

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População por cor de pele em Cuba, no ano de 2012 [Gráfico: Gabriela César / Serviço de Comunicação Social da FFLCH]

“A cultura cubana carrega aspectos negros de uma maneira muito forte. Todas as pessoas, mesmo as brancas, performarão uma ‘cubanía’. É mais do que você ser negro, é você ser permeado por uma cultura que é negra, então você estará nos espaços ocupados por esse imaginário negro. Você se sente em um país negro, mesmo que no número oficial a maioria seja composta por brancos”, afirma o antropólogo.

Para investigar de que forma o racismo social acontece em Cuba, Aguiar ficou cerca de um ano e meio morando no país, somando suas quatro visitas à ilha. Em sua pesquisa, decidiu investigar o bairro de Pogolotti que, segundo ele, era reconhecido por ser extremamente violento e perigoso curiosamente, composto por uma população majoritariamente negra.

Aversão ao bairro negro

Pogolotti, localizado na capital Havana, foi o primeiro bairro planejado para trabalhadores de Cuba, criado há cerca de 115 anos. Os trabalhadores que estavam mais afastados do centro da cidade eram, em sua grande maioria, negros e, por isso, o bairro foi predominantemente habitado por essa população.

Para ele, o racismo social vivido por Pogolotti se manifesta na aversão do restante da cidade de Havana ao bairro  uma reação que é consequência direta do racismo, marcada sobretudo pelo medo diante de um grupo de pessoas negras reunidas e organizadas. Pogolotti comemora seu aniversário todos os anos com uma festa que dura cerca de cinco dias e o antropólogo destaca que o senso de solidariedade e lealdade entre os moradores é muito forte.

“As pessoas negras que não eram bem-vindas em outros lugares pensaram: ‘Então vamos criar o nosso próprio espaço, em que somos bem-vindos e onde possamos sentir orgulho de quem somos’”, destaca. Foi assim que esse espírito foi alimentando o bairro de Pogolotti, que se tornou uma espécie de resistência contra o racismo de pessoas externas. Além disso, muitos moradores da região participaram dos processos da Revolução Cubana, o que contribuiu para fortalecer um sentimento “nacionalista” deles com o bairro.

Sendo um pesquisador negro em um bairro também negro fez com que a experiência de Aguiar fosse mais parecida com a realidade de um cubano de Pogolloti. Ele conta que, em muitos momentos, era confundido com um morador local e, por isso, vivenciou tantas situações de racismo quanto momentos de acolhimento. “Foi muito aconchegante porque as pessoas não criavam barreiras para falar comigo, apesar de eu ser um estrangeiro. Elas confiavam em mim por eu ser uma pessoa negra”, destaca o antropólogo.

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Lourival é o primeiro aluno de doutorado do Departamento de Antropologia da FFLCH a ser aprovado por políticas de ações afirmativas e a se formar [Foto: Rafael Dourador / Serviço de Comunicação Social da FFLCH]

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Lourival Aguiar Teixeira Custodio recebeu menção honrosa no Prêmio Tese Destaque USP 2025 pela pesquisa Habaneros negros: relações raciais, estigmatização e afro-cubanía em um bairro de Havana, orientado por João Felipe Ferreira Gonçalves.