Agricultura urbana ajuda a repensar lógica capitalista no espaço urbano

Pesquisa da FFLCH analisa o impacto da presença do Estado na agricultura urbana por meio do Projeto Hortas e Viveiros Urbanos da Prefeitura de São Paulo

Por
Eliana Bento
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Uma pesquisa da FFLCH acompanhou a implementação do projeto Hortas e Viveiros da Comunidade da prefeitura de São Paulo e analisou como a agricultura urbana pode transformar o cotidiano e ajudar a pensar uma outra sociedade. 

O pesquisador Henrique Freitas Alves avaliou que a agricultura urbana é um instrumento revolucionário do modo de vida moderno-capitalista, uma vez que as relações podem ser construídas pelo afeto, sentimento e coletividade como pilares das relações sociais e um outro modo de vida é produzido e reproduzido, que não é regido pela lógica de mercado competitiva e excludente capitalista. Confira abaixo a entrevista:


Serviço de Comunicação Social: Os setes projetos, você acompanhou na prática?

Henrique Freitas Alves: Todos os setes eu tive a oportunidade de visitar na prática, mas não com a mesma frequência e muito devido à pandemia de Covid-19, que atrasou muito a possibilidade de acompanhamento. Os projetos que mais visitei foram o Prato Verde Sustentável (6 vezes) e o Cresan (3 vezes), seguido por Ponto de Economia Solidária do Butantã (2) e o restante cada um com uma visita – que foram limitadas por questões de dificuldade para conciliar agendas com os projetos.

Serviço de Comunicação Social: O papel dos funcionários públicos da linha de frente, como é?

Henrique Freitas Alves: Quando falamos dos funcionários públicos da linha de frente estamos falando sobre aqueles profissionais que têm contato direto com os cidadãos, como as assistentes sociais, professores, policiais e etc. Na nossa análise, esses profissionais acabam tendo uma importância muito grande na definição dos rumos das políticas públicas, na medida em que são eles quem mais tem noção das condições de implementação das ações e das necessidades dos cidadãos. Essa importância pode ou não ser problemática, visto que são pessoas que não foram eleitas e tem um poder decisivo sobre uma política pública. No caso do programa que analisamos, o papel deles foi fundamental. Foram os servidores da linha de frente, da Cosan (Coordenadoria de Segurança Alimentar e Nutricional) que criaram o programa Hortas e Viveiros da Comunidade para atender uma demanda dos coletivos de agricultura urbana da cidade e mantiveram esse programa por anos sem ter uma estrutura adequada que os auxiliassem.

Serviço de Comunicação Social: E a questão do impacto da agricultura urbana de São Paulo?

Henrique Freitas Alves: A agricultura urbana de São Paulo é bastante diversificada. Nós temos diferentes grupos trabalhando, variando desde áreas mais espaçosas e produtivas (como a COOPERAPAS) hortas comunitárias em regiões mais elitizadas (Horta da Saúde, Horta das Corujas), até a agricultura urbana periférica, que foi a qual escolhemos analisar em nossa pesquisa. Mesmo dentro desta, ainda temos uma grande diversidade. Alguns projetos têm como intenção produzir alimentos para alimentar pessoas em situação de fome e subnutrição, outros estão mais voltados a criarem espaços de convívio coletivo e de contestação da urbanização, modo de vida e alimentação capitalistas tal como é posta. No geral, nosso trabalho se voltou a analisar a agricultura urbana a partir deste último viés, como contestação da urbanização capitalista a partir do resgate e reprodução da campesinidade dos sujeitos.

Serviço de Comunicação Social: Porque você escolheu esse assunto e quais eram suas expectativas?

Henrique Freitas Alves: Escolhi o tema muito por minha própria trajetória pessoal, de contato com a agricultura urbana vivendo no interior de São Paulo e podendo perceber os diferentes impactos desta na vida das pessoas. Contudo, no início minhas expectativas estavam mais voltadas a olhar para o potencial produtivo e de alternativa para a fome a partir da agricultura urbana, como alguns trabalhos vêm fazendo mais recentemente, tanto no Brasil quanto no exterior – e de fato alguns trabalhos apontam um potencial produtivo muito interessante, sobretudo na horticultura. Isso se modificou a partir, sobretudo, dos trabalhos de campo, nos quais pude perceber que nos projetos que selecionamos o grande potencial era outro, mais ‘subjetivo’. Nesses espaços, não que a produção não seja importante, ela é sempre centro e a razão para aquelas pessoas estarem ali reunidas. No entanto, o que pudemos constatar foi que as relações coletivas, a comunidade, a ajuda mútua, a afetividade, enfim, outros elementos que são cada vez menos presentes na frenética vida urbanizada, são os elementos talvez mais transformadores da vida dessas pessoas e que nos possibilita construir um “outro” mundo.

Serviço de Comunicação Social:  Qual metodologia você usou?

Henrique Freitas Alves: A metodologia foi dividida em duas partes, a revisão teórica e o trabalho de campo. Para este último, adotamos a História Oral na medida em que consideramos que as vozes dos sujeitos eram fundamentais para conseguirmos entender de fato o impacto da experiência na agricultura urbana na vida destes e, além disso, entender suas motivações e expectativas.

Serviço de Comunicação Social: Dos resultados quais os mais importantes e quais os inesperados?

Henrique Freitas Alves: O mais importante foi constatar que a agricultura urbana é um instrumento revolucionário do modo de vida moderno-capitalista, na medida em que outras relações socioespaciais são construídas a partir desta, pautadas pela oposição a individualização, ao desenraizamento e a racionalização das relações. Na agricultura urbana, o afeto, o sentimento e a coletividade são os pilares das relações sociais. Tratamos da agricultura urbana nesse caso como um instrumento, por não considerarmos ela como revolucionária por si mesma. Para que isso ocorra, não basta o cultivo, é preciso estar atento a forma como se dão as relações sociais na agricultura urbana, porque é ali que está o potencial revolucionário.

Já o mais inesperado foi a relação da agricultura urbana com a reprodução do campesinato e da campesinidade dos sujeitos. No início da pesquisa pensávamos não ser possível compararmos a agricultura urbana com a rural por se tratar de contextos tão distintos e, também, por acreditarmos que seriam sujeitos também muito distintos. Contudo, a partir dos trabalhos de campo nos deparamos com outro cenário: a agricultura urbana é composta e reproduzida por pessoas que migraram do campo para a cidade e procuram nesta uma forma de reproduzirem sua identidade camponesa, mesmo dentro da cidade. Essas pessoas frequentemente relataram que, antes de praticarem a agricultura urbana, estavam depressivas, com um sentimento de não-pertencimento e com saudade de quando moravam na roça, sobretudo por sentirem falta da forma como eram as relações lá. Diziam, e ainda dizem, que na cidade as pessoas são muito individualistas e muito gananciosas, enquanto no campo as pessoas se ajudavam mais, havia mais companheirismo. Claro que é preciso ponderar um certo saudosismo que por vezes acaba tanto engrandecendo o passado quanto diminuindo o presente, mas isso é muito sintomático quando essas mesmas pessoas hoje dizem que estão realizadas.

Um outro resultado relativamente inesperado e muito importante foi a percepção da produção de um outro ritmo de vida mesmo dentro da metrópole de São Paulo. Teve uma senhora que acompanhamos lá no Prato Verde Sustentável, a dona Vanda, que atua como voluntária no projeto e ela precisaria cumprir 3 horas mensais, mas ela faz muito mais que isso por vontade própria. Um dos dias que estivemos lá, ela estava ajudando pela manhã e tinha que buscar o neto na escola no horário do almoço. Ela quase perdeu a hora porque ficou tão imersa na atividade – no caso ela queria “tirar os matinhos” dos canteiros – que não viu o tempo passar. E isso foi visto em todos os projetos, as pessoas relataram que sentiam o tempo passar em um outro ritmo, muito mais calmo e prazeroso do que quando estavam fora dali. Na Cores e Sabores tinha um grupo de mulheres que viviam em uma ocupação da zona sul e iam lá para a horta porque algumas delas só conseguiam descansar e dormir quando estavam ali. Isso tudo é muito sintomático e representativo tanto dos problemas do modo de vida moderno-capitalista quanto dos potenciais da agricultura urbana transformá-lo.

Serviço de Comunicação Social: Quais as conclusões mais importantes para destacarmos na matéria?

Henrique Freitas Alves: Acredito que o comentário anterior sobre resultados mais importantes e inesperados sintetizam bem o que é mais importante de ser destacado. Uma coisa a ser acrescentada é sobre o papel dos profissionais da linha de frente como fundamentais no processo de formulação e implementação das políticas públicas – o que pode ser benéfico ou não, esse é o grande problema da individualização das responsabilidades. É preciso encontrarmos, nas políticas públicas, uma forma de valorizar a importância dos profissionais da linha de frente e dar autonomia para que possam exercer suas funções, mas sem que isso recaia em reprodução de comportamentos inaceitáveis e uma deturpação da política pública e do papel do Estado.

Serviço de Comunicação Social: Quais benefícios sua pesquisa traz para a sociedade?

Henrique Freitas Alves: Além de trazer luz para a agricultura urbana enquanto instrumento transformador das relações sociais moderno-capitalista, acredito que o grande benefício da pesquisa para a sociedade seja a análise da implementação do programa Hortas e Viveiros da Comunidade. Isto porque a partir da análise que é feita do programa e da sistematização dos relatos das experiências dos projetos atendidos, a pesquisa se coloca como uma fonte para pensarmos em políticas públicas de promoção da agricultura urbana pelos municípios. Nós fizemos uma análise bastante detalhada desse programa com o propósito de podermos embasar a construção de outros programas municipais. 

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Sobre a dissertação

Título: O cotidiano na agricultura urbana: uma análise da implementação do programa Hortas e Viveiros da Comunidade em São Paulo

Mestrado em Geografia Humana:  Henrique Freitas Alves

Defendida: 19.08.2022

Orientadora: Larissa Mies Bombardi