Nascimento de Mark Twain

Autor de obras como "As Aventuras de Tom Sawyer" e "As Aventuras de Huckleberry Finn", Twain retratou as transformações dos Estados Unidos em seus escritos

Por
Alice Elias
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Nascimento de Mark Twain
Segundo a professora Maria Sílvia Betti, "o fato é que Twain extrapola e transcende o cânone, pois trabalhou sempre a partir da matéria social e histórica em bruto, apreendendo-a diretamente de vivências à sua volta, e incorporando paradoxos e contradições que dão relevo e complexidade sociológica e estilística a sua literatura. (Arte: Alice Elias)

Em 30 de novembro de 1835, nasceu Mark Twain, um dos mais célebres escritores americanos. Autor de obras como As Aventuras de Tom Sawyer, As Aventuras de Huckleberry Finn e Um Ianque na Corte do Rei Artur, foi também jornalista, conferencista, empreendedor comercial, contista, cronista e crítico das mudanças observadas nos Estados Unidos entre o final da Guerra de Secessão e o início do século 20. Além disso, o autor teve atuação constante e contundente dentro da Liga Anti-Imperialista, utilizando-se de sua fama literária para fazer denúncias em seus artigos jornalísticos, crônicas e narrativas.

Em seus contos e romances, Twain retratou muitas das situações vivenciadas por seu país, como a guerra civil, a escravidão, a urbanização, as lutas abolicionistas, a luta pelo voto feminino ou mesmo a ascensão dos Estados Unidos como potência internacional. O registro das transformações históricas, econômicas e culturais do país, somado ao emprego de diversos recursos, estilos e tipos ficcionais, foram fatores que classificaram Twain como “um autor do cânone literário estadunidense, com obras que transcendem o tempo e se perenizam no imaginário de geração após geração”, segundo Maria Sílvia Betti professora no Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi Mark Twain?

Maria Sílvia Betti: Mark Twain é o pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, um dos escritores mais célebres e reconhecidos tanto nos Estados Unidos, onde nasceu, como internacionalmente. Twain escreveu obras que, como se costuma dizer, resistiram ao tempo, como As Aventuras de Tom Sawyer, As Aventuras de Huckleberry Finn, O Príncipe e o Plebeu e Um Ianque na Corte do Rei Artur, para citar apenas algumas.

Ele nasceu no estado do Missouri, em 1835, e se caracterizou por seus múltiplos talentos, pois foi também jornalista, conferencista, empreendedor comercial, contista e, acima de tudo, cronista e crítico das mudanças sociais e econômicas observadas nos Estados Unidos entre o final da Guerra de Secessão, em 1865, e o início do século 20.

Sua carreira se iniciou em um jornal local de Hannibal, no Estado do Missouri, para o qual ele escrevia pequenas histórias humorísticas com o pseudônimo de W. Spaminondas Adrastas Blab. O pseudônimo definitivo veio a ser adotado por ele algum tempo depois com base na expressão “by the mark, twain”, aprendida no ofício de piloto de barcos a vapor ao longo do Mississipi. A expressão indicava que a profundidade atingida da água era de duas braças, e permitia que o barco seguisse seu curso sem encalhar em bancos de areia.

Twain tinha um espírito inquieto e aventureiro que o levou sempre a procurar novas experiências mesmo que elas envolvessem situações incertas e de risco. É impressionante o número de diferentes atividades em que ele se engajou no período da Guerra de Secessão, quando o tráfego fluvial pelo Mississippi foi interrompido: voluntário numa tropa de confederados, prospector de jazidas de prata e de ouro, especulador em questões de terras, repórter jornalístico, cronista e correspondente em jornais nacionais diversos. Foi na publicação de crônicas jornalísticas que, nesse período, ele utilizou pela primeira vez o pseudônimo Mark Twain com que se tornou famoso.

O trabalho jornalístico de free lancer, que ele exercia com grande entusiasmo, lhe permitiu atuar como correspondente em diversas partes dos Estados Unidos e do mundo. A associação entre a atividade jornalística e sua exuberante veia cronística abriu-lhe as portas, também, para apresentações como conferencista, dado seu grande carisma na arte de relatar oralmente as experiências vivenciadas em contato com culturas diversas in loco. Seu sucesso nas conferências que fazia era tão grande que ele passou a fazer turnês por diferentes cidades do Estados Unidos, atividade que muito contribuiu também para sua fama literária.

Em 1870, Twain apaixonou-se pela filha de um rico industrial de Nova Iorque e com ela se casou. O casamento em nada alterou sua natureza aventureira e seu gosto por empreendimentos de risco. Alguns de seus trabalhos, a essa altura, já eram conhecidos por todo o país. Em viagens ao exterior, ele passou a ter a oportunidade não só de divulgar suas próprias obras como de conhecer celebridades do mundo literário da época, como o poeta britânico Robert Browning, o escritor russo Turgueniev e o excêntrico reverendo escritor Lewis Carrol (pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson), autor de Alice no País das Maravilhas.

As viagens constantes a diferentes contextos culturais e políticos foram cruciais para que Twain passasse a tomar conhecimento in loco dos crimes produzidos pelas políticas imperialistas tanto dos impérios coloniais europeus como dos Estados Unidos, cuja hegemonia ia se agigantando cada vez mais.

Entre 1901 e sua morte, em 1910, Twain teve atuação constante e contundente dentro da Liga Anti-Imperialista, embora sua atividade anti-imperialista não se restringisse a ela, e passou a usar de sua celebridade literária para fazer denúncias em sua vasta produção de artigos jornalísticos, crônicas, discursos e narrativas alegóricas e satíricas. Seus escritos anti imperialistas, em seu conjunto, registram sem meios tons a história do pensamento e das ações imperialistas estadunidenses e européias numa linha do tempo que cobre desde o México, passa pelo Havaí, Cuba, Porto Rico, Guam e Filipinas, África do Sul, Norte da China, Congo e Austrália.

Os principais volumes com relatos de viagens de Mark Twain, com menções sobre o contexto imperialista, encontram-se em Roughing It (O Caminho Mais Difícil, 1861-1866), Innocents Abroad (A Viagem dos Inocentes, 1867), A Tramp Abroad (1878), e Following the Equator (1895-1896).

Essa vigorosa e efervescente produção, que expunha e examinava as estratégias ideológicas utilizadas para tentar legitimar as ações do imperialismo, foi, durante longos anos, objeto de deliberada omissão editorial conscientemente proposta por seu biógrafo oficial, Albert Bigelow Paine e acatada pela editora Harper & Brothers, que detinha os direitos de publicação. A dimensão política do trabalho de Twain dentro do movimento anti-imperialista foi suprimida em decorrência da exclusão do imperialismo como tema de reflexão e estudo, seja na formação do cidadão comum, seja no campo da pesquisa, sob a alegação de que era preciso resguardar a reputação e o mérito literário de Twain.

Apesar da extraordinária riqueza e diversidade de suas obras, a inclinação ficcional de Twain por uma literatura identificada como “de ação” o levou a ser enxergado como um autor de trabalhos infanto juvenis, com narrativas repletas de acontecimentos inesperados e de reviravoltas do destino dos protagonistas. Trata-se de uma visão que, sem dúvida alguma, não dá conta da indiscutível riqueza narrativa, variedade e abrangência temática e formal de todo o seu trabalho.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Twain?

Maria Sílvia Betti: O trabalho ficcional de Mark Twain vai muito além dos limites em que a tradição crítica e acadêmica o fixou e imortalizou. Seus contos e romances não se limitam ao registro cronístico e saboroso do regional: eles apresentam uma enorme variedade de enredos e recursos de estilo, e registram as transformações vividas pelo país desde a ocupação do Oeste, a guerra civil, a urbanização nos diferentes contextos regionais, a escravidão, as campanhas ligadas às lutas abolicionistas, a luta pelo voto feminino e a ascensão dos Estados Unidos à situação de poténcia internacional no plano econômico e no político.

A escrita de Twain tem um grande vigor narrativo: é impressionante a forma inventiva com que ele trata um número enorme de temas, seja utilizando um estilo realista impregnado da chamada “cor local”, seja enveredando pelo âmbito fantasioso em que ele libera sua imaginação e cria alegorias históricas e políticas.

Twain nunca deixou de lado a sua bem-humorada ironia: nem mesmo em sua produção ensaística e jornalística, em que ele recorria ao corrosivo sarcasmo sempre que necessário e em que utilizava o recurso do paradoxo para criar páginas de grande contundência, quase sempre dotadas de caráter paródico.

Entre suas obras mais amplamente conhecidas destacam-se alguns títulos a essa altura considerados “clássicos” da literatura norte-americana: As Aventuras de Tom Sawyer (de 1876) relata as peripécias de Tom, um garoto da região próxima às margens do Mississipi, durante um verão da década de 1840. O Príncipe e o Plebeu (1881) fantasia episódios reais da história da Inglaterra ocorridos em 1547, quando morre o rei Henrique VIII e seu filho, Eduardo VI, assume o trono. As Aventuras de Huckleberry Finn (1884) é o relato das aventuras de Huck (o mesmo que participara do enredo de As Aventuras de Tom Sawyer) e Jim, um escravo fugido, em seu percurso Mississipi abaixo em uma pequena jangada. Um Ianque na Corte do Rei Artur (de 1889) é uma fantasia política que apresenta as aventuras de Hank Morgan, cidadão estadunidense que, golpeado durante uma luta em Hartfield, nos Estados Unidos do século XIX, cai inconsciente e acorda na Inglaterra do ano 538, em plena corte do lendário rei Artur.

No Brasil, é na tradução de Monteiro Lobato que pela primeira vez, em 1934, um livro de Mark Twain foi apresentado ao público leitor brasileiro. O livro foi As Aventuras de Huck. Monteiro Lobato tinha sido adido comercial em Nova York entre 1927 e 1931, e lá teve grande contato com a literatura estadunidense. Lobato era talentoso na arte da tradução-adaptação literária e encontrou em Twain pontos de afinidade com suas próprias convicções de escritor. Posteriormente, ele viria a traduzir e adaptar também As Aventuras de Tom Sawyer.

Lobato não foi o único escritor a traduzir trabalhos de Twain: também Fernando Sabino, Carlos Heitor Cony e José Geraldo Vieira fizeram traduções e recriações que podem ser encontradas em edições atuais.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para a Literatura?

Maria Sílvia Betti: Twain registrou, em suas obras ficcionais e cronísticas, os principais vetores constitutivos das transformações históricas, econômicas e culturais pelas quais os Estados Unidos passaram ao longo do século 19. Ele o fez com vigor narrativo, e com recursos, estilos e tipos ficcionais extremamente diversificados e representativos. Isso o levou a ser classificado como um autor do cânone literário estadunidense, com obras que transcendem o tempo e se perenizam no imaginário de geração após geração.

Essa apreciação sem dúvida lhe faz justiça, pois é fruto de sua exuberante verve ficcional, mas, por outro lado, corre o risco de circunscrevê-lo a um âmbito estreito demais de recepção e leitura. O fato é que Twain extrapola e transcende o cânone, pois trabalhou sempre a partir da matéria social e histórica em bruto, apreendendo-a diretamente de vivências à sua volta e incorporando paradoxos e contradições que dão relevo, complexidade sociológica e estilística a sua literatura.

Serviço de Comunicação Social: Em sua análise, como as obras de Twain repercutem atualmente?

Maria Sílvia Betti: Por todos os motivos mencionados acima, Twain é e sempre foi merecedor da atenção tanto de editores como de pesquisadores, mesmo atualmente, em tempos de desmonte da cultura, de desmonte da educação pública e de disseminação de formas digitais e virtuais de leituras e “conteúdos”. Como diz Antonio Candido em O Direito à Literatura, “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante", os trabalhos de Mark Twain continuam a nos dizer respeito, continuam a nos entreter e a nos fazer pensar e refletir sem perder de vista os enfrentamentos e lutas da história dentro de tantos contextos.

O que é preciso lembrar ainda, como destaque dentro do contexto de repercussão da obra de Mark Twain em tempos mais recentes, é o extraordinário trabalho de pesquisa de Jim Zwick [1956-2008], pesquisador e docente da Syracuse University a quem devemos o resgate e a divulgação dos escritos anti-imperialistas de Mark Twain, a criação do Mark Twain Forum e a compilação editorial intitulada Mark Twain's Weapons of Satire: Anti-Imperialist Writings on the Philippine-American War, Editor (Syracuse: Syracuse Univ. Press, 1992; Philippine edition, Manila: Popular Book Store, 1994) entre tantos outros.

Maria Silvia Betti é mestre e doutora em Literatura Brasileira pela FFLCH e realizou pós-doutorado com bolsa FAPESP na New York University. É professora Livre Docente e atua no Programa de Pós Graduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês, ligado ao Departamento de Letras Modernas da FFLCH, e no Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas da ECA-USP.

É organizadora do Grupo de Pesquisa Estudos Histórico-críticos e Dialéticos de Teatro Estadunidense e Brasileiro (CNPq). Tem experiência nas áreas de Letras e de Artes Cênicas com ênfase em Estudos de Teatro (foco em Dramaturgia), atuando principalmente nos seguintes temas: teatro estadunidense moderno e contemporâneo, teatro brasileiro moderno e contemporâneo, dramaturgia comparada (Estados Unidos-Brasil).