As personagens lésbicas na literatura evoluíram nas últimas décadas, mas ainda sofrem com estereótipos típicos de relacionamentos heterossexuais
Há não muito tempo, histórias sobre lésbicas não tinham finais felizes. Era comum na literatura as personagens vivendo conflitos típicos de relações heterossexuais, além de serem constantemente associadas à prostituição e perversões sexuais. Nos últimos anos, as tramas evoluíram para algo mais próximo da realidade, apesar de muitos estereótipos ainda estarem presentes nas narrativas.
Essa evolução foi analisada em uma pesquisa de mestrado do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH USP, que avaliou como relacionamentos lésbicos são representados na literatura e como estereótipos de relações heterossexuais são utilizados para ilustrar relações entre mulheres.
O tema despertou a curiosidade da autora, Claudiana Gois dos Santos, quando ela passou a perceber alguns padrões recorrentes na literatura e no cinema: narrativas terminando “de modo infeliz, com mortes e/ou traições”, mulheres lutando contra uma relação heterossexual, ou assumindo papéis binários, como se uma personagem fosse o homem da relação. “Há um apagamento não só de autoras lésbicas, como de narrativas e personagens desta orientação sexual”, explica a pesquisadora.
Claudiana estudou especificamente três obras: o conto O Corpo, de Clarice Lispector (1970); o romance Eu Sou Uma Lésbica, de Cassandra Rios (1980); e a novela gráfica Azul é a Cor Mais Quente, da francesa Julie Maroh (2010).
A pesquisa foi desenvolvida a partir de duas frentes: um recorte cronológico de personagens e autoras lésbicas e um paralelo entre as culturas brasileira e francesa. A análise observou como as personagens divergiam ou confirmavam estereótipos comumente atribuídos a lésbicas.
O estudo considerou também “a biografia da autora e seu engajamento em causas que favorecessem estas representações, o contexto político que recebeu as obras e a análise do texto em si”, explica.
Como era ontem
A influência da sexualidade muitas vezes limitava a construção das personagens. Elas eram relegadas a papéis secundários ou estereotipadas como prostitutas que buscavam “saciar sua luxúria” com virgem inocentes, “reiterando o pensamento do século XIX que relacionava homossexualidade com perversão sexual”, explica.
A pesquisadora também lembra do rótulo de pornográfico que obras com protagonistas lésbicas eram automaticamente taxadas. “Como se necessariamente o sexo entre duas mulheres estivesse ali não como parte comum de um relacionamento, mas como chamariz voyeuristico”, diz.
Como é hoje
Por outro lado, o peso e a culpa em reconhecer-se lésbica, presente nas obras antigas, é quase ausente atualmente. “A autonomia, a liberdade sexual e outras bandeiras feministas empunhadas nas décadas de 1960, 1970 e 1980 ecoam na leveza das personagens contemporâneas”, explica.
A pesquisadora aponta, no entanto, a manutenção da representação binária dos papéis de gênero. “A performance masculinizada e a feminilizada ainda disputam domínio numa relação que, a meu ver, poderia ser de igualdade”.
A pesquisa evidenciou também mudanças na representação de personagens masculinos. “Se a princípio [os homens] eram as normas sociais a serem combatidas, nas obras mais contemporâneas se mostram como potenciais aliados mais compreensivos e sensíveis em relação às causas homossexuais”, avalia.
A importância do trabalho está em falar de personagens pouco exploradas em suas subjetividades e vivências, questionando os padrões heteronormativos vigentes. “Se somos plurais e diversos, é importante que isso apareça de forma relevante e igualitária nas representações artísticas”, diz.
Claudiana acredita que, seja qual for a orientação sexual ou afetiva, em relações construídas sob uma lógica de dominação, perde-se a noção de amizade, igualdade e admiração pelos personagens. “Resgatar essa lógica igualitária em uniões cujo desejo seja superior à dominação tem se mostrado, nas narrativas com protagonistas lésbicas, um caminho mais florido e mais fértil”.