Publicação de "Moby Dick"

Considerada um clássico da literatura estadunidense, a obra é uma fonte inesgotável de aprendizagem da linguagem e do estilo

Por
Lívia Lemos
Data de Publicação

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No momento da escrita de Moby Dick, Melville se preocupou não apenas em contar uma história, mas em trazer reflexões, simbologias e imagens da natureza e experiência humanas [Montagem: Renan Braz]

 

Publicado em 1851, Moby Dick é um romance norte-americano escrito por Herman Melville (1819-1891). Em mais de 600 páginas, a história gira em torno de um grupo de marinheiros que embarcam num navio com o principal objetivo de caçar baleias. Na época, o óleo extraído do animal era usado como combustível para gerar iluminação. Ao longo das viagens, entretanto, o destino de todos os marinheiros muda quando Ahab, capitão da tripulação, decide mudar a rota da navegação para procurar por Moby Dick, uma baleia cachalote que havia arrancado uma perna do capitão no passado.

Para além de uma história de aventura sobre marinheiros em alto mar, o romance é considerado um clássico da literatura estadunidense, sobretudo pela estética da escrita que o autor recorreu. Em sua obra, Melville propôs “construir um enredo que pudesse tratar de assuntos variados, ao mesmo tempo em que fizesse do próprio texto uma obra de arte”, conforme destaca Daniel Puglia, professor do Departamento de Letras Modernas da USP. Confira a entrevista completa com o pesquisador:

Serviço de Comunicação Social: O que foi a obra Moby Dick? Qual é a temática central abordada pela obra?

Daniel Puglia: O romance Moby Dick foi publicado em 1851 nos Estados Unidos e também na Inglaterra, onde recebeu o título The Whale. Seu autor, Herman Melville (1819-1891), é considerado umas das figuras centrais da literatura estadunidense e esse livro é visto como sua obra-prima. Mas o prestígio da obra e do seu autor não se traduz necessariamente num conhecimento mais aprofundado sobre essa narrativa extremamente complexa e multifacetada. Podemos dizer que Moby Dick é um daqueles clássicos que merecem ser primeiramente descobertos para serem de fato redescobertos.

Definir uma temática central não é uma tarefa fácil, uma vez que Melville estabeleceu uma meta ambiciosa: construir um enredo que pudesse tratar de assuntos variados, ao mesmo tempo em que fizesse do próprio texto uma obra de arte. Em linhas gerais, o narrador Ishmael, ao embarcar num navio baleeiro, vai guiar nossa leitura. Acompanhamos as rotinas envolvidas em viagens e navegações, com destaque para a caça às baleias, de cuja gordura era extraído o óleo utilizado como combustível para iluminação de lâmpadas em casas e ruas. A partir de determinado momento da narrativa surge com especial interesse a figura do capitão Ahab. Aquilo que parecia ser uma expedição tradicional adquire outros tons. Os leitores são envolvidos numa saga com dimensões diversas, em que sobressai a obsessão de Ahab: encontrar e matar Moby Dick, uma baleia branca gigantesca que, numa expedição anterior, arrancara uma de suas pernas. Essa busca obcecada determinará a ruína do capitão e de todos os tripulantes.

Muitos críticos defendem a ideia de que os aspectos psicológicos envolvidos na monomania do capitão ou os aspectos míticos utilizados ao longo da história deveriam ser vistos como os temas preponderantes. Sem dúvida tais assuntos são fundamentais. Mas outros conteúdos também são indispensáveis e a interpretação da obra merece um olhar que privilegie a interconexão de várias temáticas. A rotina de trabalho dentro de uma embarcação, as relações de todo um conjunto de pessoas de diferentes nacionalidades e etnias, o embate dos seres humanos e a maneira predatória como lidam com a natureza, a representação metafórica de uma viagem numa embarcação que também pode ser vista como um resumo e microcosmo da história estadunidense: todos esses são tópicos que, entrelaçados, e sem abandonar esferas psicológicas ou míticas, também compõem alguns dos temas centrais da obras.

Serviço de Comunicação Social: Por que o romance se tornou tão importante para a literatura norte-americana?

Daniel Puglia: A razão da importância de uma obra para uma literatura nacional nem sempre é algo fácil de ser estabelecido. No caso de Moby Dick isso é ainda mais verdadeiro. A literatura estadunidense por vezes padece de certo complexo de inferioridade em relação à literatura produzida por sua antiga metrópole, a Inglaterra. Não é incomum que frequentemente seja ressuscitado o debate sobre qual seria a grande obra literária ou o grande romance estadunidense – e sempre tendo como parâmetros de comparação as literaturas estrangeiras vistas como mais tradicionais. Isso é pouco frutífero, a não ser para aqueles que queiram ver a literatura e a cultura como instrumentos para disputas de supremacia mercadológica.

Melville provavelmente não partilhava dessas tolices. Entretanto, na elaboração e na execução de Moby Dick, ele teve a preocupação de criar algo que, em sua visão, já era necessário que fosse produzido na literatura estadunidense. Algo que pudesse elevar o nível de realização estética em solo americano. Em carta ao amigo e também escritor Nathaniel Hawthorne, Melville disse que tinha por anseio construir não uma história de aventuras convencional e sim “os Evangelhos neste século”. Além disso, sua intenção era alçar a narrativa de viagens ao patamar da alegoria espiritual e política nos moldes de Gulliver´s Travels (1726), de Jonathan Swift.

No momento da escrita de Moby Dick, Melville buscou referências em Shakespeare, Milton, Emerson e muitos outros escritores. Nesse sentido, o relato sobre Ahab e a baleia branca se tornou também um compêndio do que de melhor a literatura tinha a oferecer em termos de símbolos, imagens e reflexões a respeito da experiência humana. 

Muito tempo após a morte de Melville, já no século 20, e principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando a literatura estadunidense passou a ser estudada nos departamentos de literatura em língua inglesa, Moby Dick foi reconhecido como um clássico. Sabemos que tal categorização obedece a critérios muitas vezes questionáveis. No entanto, a obra tem méritos inegáveis e não por acaso foi escolhida como um dos pilares da literatura estadunidense.

Serviço de Comunicação Social: Apesar da sua importância para a literatura, a obra foi ignorada pelo público no ano do seu lançamento, sendo reconhecida somente no século 20. Por que isso aconteceu?

Daniel Puglia: Realmente o reconhecimento mais amplo aconteceu apenas no século 20. Mas já na época de sua publicação recebeu críticas favoráveis. Chegou também a empolgar leitores nos Estados Unidos e na Inglaterra, alguns dos quais se sentiram motivados até mesmo a embarcar em navios baleeiros. De todo modo, o impacto foi bem menor do que o próprio Melville esperava. Nas décadas seguintes, a obra foi relegada a um relativo ostracismo. Porém, no final do século 19, Moby Dick angariou admiradores na Inglaterra, tornando-se objeto de culto entre grupos de escritores e pintores, membros de associações de trabalhadores, socialistas, ativistas sociais e pessoas que viviam nas fronteiras e postos avançados do império britânico. Por volta da comemoração do centenário de nascimento de Melville, em 1919, o livro foi celebrado, despertando um renovado interesse na Inglaterra. Círculos literários estadunidenses foram influenciados por essa tendência. E finalmente isso se consolidou após a Segunda Guerra Mundial.

As causas do sucesso ou do fracasso das obras literárias normalmente acontecem devido a inúmeros fatores. Sem querer esgotar o assunto, é importante lembrar que a leitura de Moby Dick é uma tarefa árdua. Pode ser recompensadora, mas exige tempo e dedicação. Não é uma obra convencional. Muitos leitores podem se sentir amedrontados diante de uma prosa por vezes elíptica, cuja elaboração única atinge resultados belíssimos, mas desiguais. O ritmo das descrições revela um notável virtuosismo da linguagem, embora isso acabe prejudicando a compreensão geral de algumas passagens.

Antes de publicar Moby Dick, Melville havia publicado alguns romances sobre viagens nas ilhas dos mares do sul. Ficou relativamente conhecido e caiu nas graças de um público leitor ávido por acompanhar relatos que traziam modos de vida vistos como exóticos, tudo isso no invólucro de uma atmosfera de tensão e suspense, com enredos ágeis e diretos. Para esse público, Moby Dick foi uma decepção. Talvez isso explique, ao menos em parte, algumas das razões pelas quais o romance não tenha sido acolhido de modo mais efusivo.

Serviço de Comunicação Social: A partir das reflexões que o livro traz, o que podemos aprender com a obra?

Daniel Puglia: Temos inúmeras possibilidades de aprendizado em Moby Dick. Para aquelas pessoas que gostam, sobretudo, de observar o trabalho da linguagem e do estilo, o romance é um manancial inesgotável de fruição. Correndo o risco de perder outras camadas de significado, podemos nos contentar apenas com o deleite dos elementos poéticos, afinal Moby Dick é também uma homenagem ao poder criador da arte da palavra.

Para aquelas pessoas que estão interessadas nos elementos psicológicos que as narrativas trazem, a obsessão de Ahab em caçar a baleia branca pode ser uma metáfora sobre componentes constitutivos da personalidade humana. Mas talvez isso deva ser entendido como algo que acontece em determinadas condições socioeconômicas e em contextos históricos específicos. Assim, os fatores envolvidos na trama de Ahab e da tripulação ganham relevância ao serem observados em sua dinâmica psicossocial e não apenas como uma formulação abstrata da natureza humana.

As múltiplas referências religiosas e mitológicas presentes na obra também podem interessar aos leitores. Tais referências serão ainda mais enriquecidas na medida em que forem compreendidas como uma tentativa de diagnóstico a respeito de condições concretas e objetivas. O narrador e os personagens devem mapear as situações da trama e, nesse processo, o fundo religioso e mitológico serve como uma bússola, um guia aparentemente metafísico para discernir situações práticas.

Outro elemento de aprendizado relevante presente em Moby Dick são as descrições detalhadas, especificamente sobre as atividades da indústria de extração do óleo de baleia e também acerca do universo das viagens e das navegações marítimas. Essas descrições devem ser vistas como possíveis lugares em que aparecem todos os temas entrelaçados na narrativa. Do mais particular ao universal, do concreto ao abstrato, essas cenas e passagens transformam a narrativa num poderoso documento a um só tempo estético e político.

E, finalmente, vale lembrar que a embarcação, o navio baleeiro em Moby Dick, tem o sugestivo nome Pequod, que vem a ser primeira tribo indígena exterminada pelos colonizadores e invasores brancos. Isso é algo que tem reverberações profundas para várias camadas de sentido presentes na trama. Como dissemos anteriormente, estamos na presença de um microcosmo. Ao observar o Pequod e sua tripulação, os leitores podem acompanhar uma alegoria: a constituição de um país. Um território que é um amálgama de vários agrupamentos humanos, fruto de inúmeros processos migratórios, mas também calcado sobretudo no extermínio das populações originárias e, depois disso, na contínua exploração de populações escravizadas.

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Daniel Puglia é graduado em Administração de Empresas (FEA-USP) e em Letras (FFLCH-USP), com mestrado em Psicologia Social (IP-USP) e doutorado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês (FFLCH-USP). Tem por tema de pesquisa a crítica cultural materialista: relações  entre literatura, cultura, história e filosofia.