Golpe de Estado na Argentina (1976)

Com a prisão da então presidente da república da Argentina, Isabel Péron, iniciou-se um regime ditatorial no país que deixou impactos até a atualidade

Por
Pedro Seno
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De acordo com Aline Murillo, “com o apoio do Departamento de Estado dos Estados Unidos, [...] as Forças Armadas [da Argentina] [...] tomaram o poder dando início a uma ditadura, autodenominada ‘Processo de Reorganização Nacional’.” [Arte: Pedro Seno]

No dia 24 de março de 1976, teve início a Ditadura na Argentina, a partir de um golpe realizado pelas Forças Armadas do país e apoiado pelos Estados Unidos da América. As consequências, até 1983, foram a perseguição política a estudantes, sindicalistas, ativistas, além de torturas, “violações dos direitos humanos, censura, repressão política e econômica, deixando profundos impactos na sociedade argentina”, conforme explica a pesquisadora Aline Lopes Murillo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. 

O interesse do país norte-americano nos desdobramentos governamentais da América Latina tinha relação com a sua necessidade de frear o avanço de ideias comunistas no continente, em meio às tensões mundiais geradas pela Guerra Fria. O mesmo tipo de intervenção ocorreu em nações vizinhas, como Chile, Uruguai, Bolívia, Paraguai e Brasil. O perfil político do período ditatorial era sobretudo voltado à direita, com ideias neoliberais e de abertura a investimentos estrangeiros, diminuindo o papel do Estado na economia. 

A longo prazo, houve reestruturação econômica que beneficiou os setores empresariais e o mercado financeiro. Porém, “resultou em desigualdades sociais e aumento da pobreza. O desemprego cresceu, o PIB industrial entrou em colapso, a desigualdade e a dívida externa aumentaram e os salários sofreram a maior queda da história argentina”, segundo Aline Murillo, que complementa explicando que “o colapso [...] gerou [...] um impacto social tão grande que nunca foi possível recuperar aos valores anteriores à Ditadura.”

Para entender melhor o contexto histórico e detalhes sobre o surgimento do regime e suas características, confira a entrevista de Aline Murillo concedida à Comunicação da FFLCH:

Serviço de Comunicação Social: Em qual contexto geopolítico e histórico ocorreu o golpe de estado que deu início à Ditadura Argentina?

Aline Lopes Murillo: Em 24 de março 1976, quando ocorreu o Golpe de Estado que deu início à Ditadura na Argentina, o mundo vivia o contexto da Guerra Fria, um período histórico de tensão geopolítica entre duas grandes potências: os Estados Unidos e a União Soviética. Enquanto os Estados Unidos defendiam formas de governo liberais, a União Soviética e seus aliados apoiavam partidos e revoluções comunistas.

Diante do avanço de movimentos políticos ligados às ideologias soviéticas, sobretudo, defensores da justiça social na América Latina, os Estados Unidos passaram a financiar golpes militares em países latino-americanos como forma de impedir a expansão do comunismo na região. Uma dessas estratégias foi o apoio dado à Operação Condor, uma campanha de repressão política e de terrorismo de Estado estabelecida em novembro de 1975, organizada por chefes de inteligência do Chile, Uruguai, Bolívia, Paraguai, Argentina e Brasil.

A princípios da década de 1970, entre esses países, a Argentina era o único país que ainda mantinha um governo constitucional democrático sob a liderança de Isabel Perón. No entanto, enfrentava uma violência política crescente com a atuação de diversos grupos armados que, de um lado, defendiam a ocidentalidade cristã, políticas liberais e autoritárias; e, de outro, lutavam por ideologias de esquerda, marxistas e revolucionárias. Nesse contexto, Isabel Perón se aproximou do seu ministro de bem-estar social, José López Rega. Este, com o apoio da Propaganda Due e da CIA, organizava uma força parapolicial conhecida como Aliança Anticomunista Argentina (Triple A) que assassinou artistas, religiosos, intelectuais, políticos de esquerda, estudantes, historiadores e sindicalistas; além de utilizar como métodos de enfrentamento ameaças, execuções sumárias e desaparecimento forçado de pessoas. A figura de López Rega e a mudança política do governo de Isabel Perón para a direita fizeram com que as disputas políticas entre a esquerda e a direita peronista passassem de uma disputa interna para uma oposição aberta ao governo e à violência armada.

Em setembro de 1975, por razões de saúde, Isabel Perón se ausentou do governo e deixou como presidente interino o senador Ítalo Luder. Este, diante da escalada da violência entre grupos de esquerda e de direita, reforçou o poder dos militares e sancionou, a seu pedido, os três decretos que estendiam a todo o país a ordem de “aniquilar” as ações de guerrilha. Ele criou um Conselho Nacional de Defesa controlado pelas Forças Armadas e colocou as polícias nacionais e provinciais sob o comando delas. Uma das primeiras decisões do Exército, liderado por Jorge Rafael Videla, foi militarizar o país em zonas em que cada comandante tinha autonomia para ordenar ações repressivas, entre elas o estabelecimento de centros clandestinos de detenção e tortura.

A volta de Isabel Perón ocorreu em outubro de 1975. Mas, nesse momento, ela já não tinha apoio nacional ou internacional. Diante de crises políticas e econômicas pelas quais passava o país, da campanha dos principais jornais reivindicando que as Forças Armadas tomassem o poder e na tentativa de resguardar a legalidade constitucional, seu governo anunciou a antecipação das eleições previstas para março de 1977 para a segunda metade de 1976. Contudo, com o apoio do Departamento de Estado dos Estados Unidos, em 24 de março de 1976, as Forças Armadas (lideradas por Jorge Rafael Videla, Emilio Eduardo Massera, Orlando Ramón Agosti) prenderam Isabel Perón e tomaram o poder dando início a uma ditadura, autodenominada “Processo de Reorganização Nacional”, que duraria até dezembro de 1983.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram as principais características e os impactos desse regime na época e a sua repercussão até a atualidade?

Aline Lopes Murillo: A Ditadura realizou violações dos direitos humanos, censura, repressão política e econômica, deixando profundos impactos na sociedade argentina. O período foi marcado por uma intensa campanha de violência contra dissidentes políticos, ativistas de direitos humanos, sindicalistas, estudantes e qualquer pessoa considerada uma ameaça ao regime. Houve numerosos casos de desaparecimentos forçados, tortura e execuções sumárias realizadas por agentes do Estado.

Uma dessas políticas catastróficas para a eliminação da oposição política foi a apropriação dos filhos dos presos políticos. Estes foram dados para serem criados por militares, por aliados da Ditadura ou por casais que não estavam envolvidos com a repressão política. Seus nomes, sobrenomes, filiação, datas e locais de nascimento foram adulterados nas certidões de nascimento, prática que ficou conhecida como plan sistemático de apropiación de menores. Essas crianças apropriadas têm a oportunidade de conhecerem as suas por meio do trabalho da associação civil Abuelas de Plaza de Mayo. A apropriação é considerada um crime de lesa-humanidade contínuo que só deixa de agir com o conhecimento da verdade. Considero esse crime um dos legados mais impactantes na sociedade argentina. A cadeia de violações de direitos – sequestro, tortura, roubo dos filhos das vítimas, assassinato e desaparecimento dos pais das crianças – gera, até os dias atuais, uma sensação de horror, o terror mais extremo e aberrante do que foi a Ditadura.

Com o fim do regime, a Argentina passou por um processo de reconstrução da memória histórica e de busca por justiça para as vítimas do regime. Foram criadas organizações de direitos humanos que lutaram para trazer os responsáveis pelos crimes da ditadura à justiça, resultando em julgamentos de altos funcionários militares e civis envolvidos em violações dos direitos humanos. Entre as buscas por justiça está o encontro das crianças roubadas por suas famílias de origem. Hoje, adultas, elas elaboram e difundem histórias pessoais, familiares e do país, mobilizando uma pluralidade de ideias sobre a Ditadura. Além disso, e tão somente porque sofreram a apropiación de menores, situam em si e convidam (até requerem) a produção de memórias e ideias, constituindo-se, assim – tal como sustento na minha tese de doutorado – como “pessoas memoriais”.[1]

Além desse crime, o governo da Junta Militar procedeu com forte censura da imprensa na tentativa de controlar a disseminação de informações que fossem contrárias ao regime. Jornalistas, escritores e artistas que divergiam em relação ao comando das Forças Armadas foram perseguidos, mortos e desaparecidos.

O regime militar implementou políticas econômicas neoliberais que buscavam a liberalização do comércio, a atração de investimentos estrangeiros e a redução do papel do Estado na economia, isto é, eliminação do controle dos preços, do câmbio e das intervenções para regular a taxa de juros no mercado financeiro – propostas parecidas às dos atuais libertários e do atual presidente, Javier Milei. Essas políticas levaram a uma reestruturação econômica que beneficiou os setores empresariais e financeiros, mas também resultou em desigualdades sociais e aumento da pobreza. O desemprego cresceu, o PIB industrial entrou em colapso, a desigualdade e a dívida externa aumentaram e os salários sofreram a maior queda da história argentina. O colapso deste último gerou, como nunca antes em toda a história econômica argentina, um impacto social tão grande que nunca foi possível recuperar aos valores anteriores à Ditadura.

Serviço de Comunicação Social:  Como essa ditadura se relacionou com a ditadura brasileira de início em 1964?

Aline Lopes Murillo: A Ditadura Militar na Argentina e a Ditadura Militar no Brasil compartilharam algumas semelhanças em termos de estratégias de controle político e repressão, bem como em sua orientação ideológica anticomunista. No entanto, também houve diferenças significativas entre os dois regimes.

Os regimes militares na Argentina e no Brasil estabeleceram laços estreitos de cooperação e coordenação em questões de segurança nacional no âmbito da Operação Condor. Esta, coordenada entre os regimes militares de vários países da América Latina, incluindo Argentina e Brasil, inclui a troca de informações de inteligência, a realização de operações conjuntas contra grupos de oposição e a colaboração em políticas de repressão, tais como: prática de sequestros, tortura, assassinatos e desaparecimentos forçados de opositores políticos. Muitos opositores políticos fugiram do Brasil para a Argentina e vice-versa para escapar da repressão em seus próprios países. Ambos os regimes colaboraram na vigilância e perseguição de dissidentes políticos que se refugiaram no país vizinho.

Em relação à política econômica, os regimes divergiram. Se, na Argentina, os militares optaram por reformas liberais e incentivo à importação; no Brasil a Ditadura deu continuidade à política desenvolvimentista de Vargas e a tradição de controle do Estado.

Em suma, embora os regimes militares na Argentina e no Brasil tenham compartilhado algumas semelhanças e colaborado em certas áreas, também tiveram diferenças significativas em suas orientações políticas e estratégicas. No entanto, sua cooperação em questões de segurança e repressão política contribuiu para um período sombrio na história dos dois países e da América Latina como um todo.

[1] A tese, intitulada "Pessoas Memoriais: práticas de parentesco e política na Argentina" está disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-15082023-121244/pt-br.php


Aline Lopes Murillo é doutora em Antropologia Social pela FFLCH-USP, integra o grupo de pesquisa do CNPq Coletivo ASA-Artes, Saberes e Antropologia (FFLCH/USP) e a ROAD - Internacional Research Network and Observatory on Global Enforced Disappearance. Realiza pesquisa relacionada ao período ditatorial da Argentina, sua memória e impactos na sociedade até os dias atuais.