Publicação de “Dialética do Esclarecimento”

Obra escrita por Horkheimer e Adorno é influente no seu âmbito de estudos e abrange áreas diversas das ciências humanas, como história, geografia e letras

Por
Pedro Seno
Data de Publicação

Segundo o prof. Eduardo Brandão, “o esclarecimento é uma dinâmica que se dá num entrelaçamento entre mito e razão, e tem como um dos seus resultados principais a dominação da natureza, tanto a externa quanto a interna (nos seres humanos)” (Arte: Pedro Seno/Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

Publicado em 1947, mas em circulação desde 1944, Dialética do Esclarecimento propõe uma análise do processo civilizatório dentro da linha de pesquisa da Teoria Crítica, que avalia filosoficamente a sociedade e a cultura. Seus autores, Max Horkheimer e Theodor Adorno, faziam parte da Escola de Frankfurt e, nesse momento, residiam nos Estados Unidos devido à Alemanha de Hitler e à Segunda Guerra Mundial, contexto no qual se inseriu a reflexão presente na obra.

O professor Eduardo Brandão, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, caracteriza a obra por seu diagnóstico duro, complexo, sombrio e paradigmático na sua proposta investigativa. A saber, a noção de esclarecimento aparece como índice para entender a formação da civilização. A dialética, por sua vez, é a do entrelaçamento entre mito e razão, presentes nas situações históricas progressivas, como: “narrativas míticas”; “concepções científicas ou filosóficas”; “estratégias da indústria do entretenimento”; ou “posições políticas, entre outras possibilidades”.

Esse é o processo civilizatório, e o resultado principal é a dominação da natureza, seja humana ou física. Ao longo do tempo, a dominação torna-se controle e administração da vida em sociedade, o que compromete a individualidade e a liberdade. A partir da sua reflexão, a Dialética abre um leque de possibilidades de investigação filosófica e de estudos de variadas áreas, como história, geografia e letras, além de possuir importante influência e ser considerada “absolutamente central no debate intelectual do século 20”, nas palavras de Eduardo Brandão. Confira a entrevista completa com o professor:

Serviço de Comunicação Social: De que trata a obra Dialética do Esclarecimento e onde ela se situa no contexto filosófico?

Eduardo Brandão: A obra Dialética do Esclarecimento foi escrita por Horkheimer e Adorno e publicada em 1947, embora já circulasse desde 1944 em forma mimeografada entre os colegas do Instituto para a Pesquisa Social. Por conta do nacional-socialismo na Alemanha e da Segunda Guerra Mundial, os autores estiveram nesse período nos Estados Unidos, fatos que, obviamente, impactaram o teor do escrito. Ele é composto de um capítulo intitulado “O conceito de esclarecimento”; dois excursos intitulados “I- Ulisses ou mito e esclarecimento” e “II- Juliette ou esclarecimento e moral”; outros dois capítulos intitulados “A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas” e “Elementos do anti-semitismo: limites do esclarecimento”; e um conjunto de anotações intitulado “Notas e esboços”. 

Em linhas gerais, o livro pode ser entendido como uma análise do processo civilizatório, que tem na noção de esclarecimento seu índice principal. Nessa condição, a obra começa buscando descrever o que seria essa espécie de lógica constitutiva da civilização: o esclarecimento é uma dinâmica que se dá num entrelaçamento entre mito e razão, e tem como um dos seus resultados principais a dominação da natureza, tanto a externa quanto a interna (nos seres humanos). Isso faz com que, em linhas gerais, o processo civilizatório se dê nesses termos, o que resulta numa visão do movimento histórico na qual ele é uma sucessão e um somatório de situações (que podem ser narrativas míticas – por exemplo, no Excurso I; concepções científicas ou filosóficas – como encontramos no Excurso II; estratégias da indústria do entretenimento – por exemplo, na indústria cultural; ou posições políticas, entre outras possibilidades) que justamente consolidam e expõem as características gerais do processo civilizatório da humanidade, que é estruturado a partir de uma lógica de dominação (não só da natureza e de nós mesmos, mas também dos seres humanos vivendo coletivamente). Nesse sentido, a ideia de que esse processo é dialético vai justamente mostrar o entrelaçamento e uma espécie de refinamento na sucessão de suas etapas. Assim, o controle, a dominação vão se transformando e se sofisticando com o correr da história, e os seres humanos se veem cada vez mais enredados nessa situação: a partir disso, o livro detecta um movimento que cada vez mais transforma o mundo em algo administrado, preso em uma racionalidade eminentemente técnica, onde a liberdade e a autonomia dos indivíduos – e consequentemente da sociedade – está cada vez mais comprometida. 

Esse diagnóstico um tanto sombrio insere-se, como já notamos acima, no contexto da Segunda Guerra Mundial. A obra, que é um dos mais importantes textos filosóficos do século 20, reverbera uma série de questões que ocupavam o pensamento filosófico de então: por exemplo, a questão da técnica ou a incorporação de elementos da psicanálise na análise filosófica. Mas a gama de influências e interlocuções que se observam no livro é enorme: discussões com o marxismo ou com a obra de Max Weber, análises de Kant e Nietzsche, interpretações do significado da obra de Sade ou da matematização galilaica da natureza – estes exemplos são suficientes para uma indicação do arco de interlocutores que o livro mobiliza em seu percurso. Mas o debate que nele se trava não se limita apenas a referências filosóficas, e elementos antropológicos e sociológicos, por exemplo, também balizam as colocações do livro. Por essa amplitude do horizonte de suas reflexões, e também pelo teor de suas análises e conclusões, a Dialética do Esclarecimento é um livro absolutamente central no debate intelectual do século 20. 

Serviço de Comunicação Social: Qual é a importância da obra para a filosofia, de modo geral, e  que impactos na comunidade intelectual ela gerou?

Eduardo Brandão: A Dialética do Esclarecimento é uma das obras – talvez a mais – importantes da chamada Teoria Crítica, uma linha de pesquisa que é das mais expressivas dos séculos 20 e 21 e, que além de Horkheimer e Adorno, concatena nomes como Marcuse e Habermas, por exemplo. Nesse sentido, o texto teve e tem uma influência marcante na investigação filosófica feita a partir de sua publicação, e desde então tornou-se uma referência sempre presente para quem busca dialogar com a filosofia produzida recentemente. O seu diagnóstico duro e complexo, mesmo que passível de críticas, é paradigmático e é uma posição que tem que ser enfrentada em inúmeras análises filosóficas atuais. E dada sua amplitude e o amplo horizonte de seus referenciais, a Dialética do Esclarecimento tem esse estatuto não só para a filosofia, mas para as ciências humanas em geral. Para além da concordância (ou do desacordo) com suas teses, o que o livro impõe para quem com ele dialoga é o enfrentamento dos problemas que ele levanta para a contemporaneidade – mesmo tendo sido publicado há mais de 70 anos. 

Serviço de Comunicação Social: Como esta obra é (ou pode ser) inserida no contexto acadêmico de pesquisas realizadas na FFLCH?

Eduardo Brandão: No contexto acadêmico das pesquisas realizadas na FFLCH, a Dialética do Esclarecimento é uma obra que pode encontrar um lugar de destaque em vários campos das investigações que aqui se realizam. Além do já mencionado interesse que tem para as áreas de filosofia e ciências sociais, o texto também abre horizontes para a investigação nas áreas de história, geografia e letras, seja pela análise de questões específicas que delineia (por exemplo, sobre Ulisses ou Sade), seja pelo teor de sua abordagem de temas históricos, geográficos e literários. Por se inserir no campo da teoria crítica, uma espécie de escola que norteia vários estudos que se fazem em nossa faculdade, a Dialética do Esclarecimento é um texto que está sempre no horizonte do que fazemos aqui.


Eduardo Brandão é doutor em Filosofia pela FFLCH-USP e professor da mesma instituição. Atua principalmente nos seguintes temas: Schopenhauer, idealismo alemão e história da filosofia contemporânea. Atualmente, realiza pesquisa que busca explorar a importância do conceito no interior da metafísica alemã a partir de Kant, com especial ênfase nas obras de Schopenhauer e Nietzsche.