Obra escrita por Horkheimer e Adorno é influente no seu âmbito de estudos e abrange áreas diversas das ciências humanas, como história, geografia e letras
Publicado em 1947, mas em circulação desde 1944, Dialética do Esclarecimento propõe uma análise do processo civilizatório dentro da linha de pesquisa da Teoria Crítica, que avalia filosoficamente a sociedade e a cultura. Seus autores, Max Horkheimer e Theodor Adorno, faziam parte da Escola de Frankfurt e, nesse momento, residiam nos Estados Unidos devido à Alemanha de Hitler e à Segunda Guerra Mundial, contexto no qual se inseriu a reflexão presente na obra.
O professor Eduardo Brandão, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, caracteriza a obra por seu diagnóstico duro, complexo, sombrio e paradigmático na sua proposta investigativa. A saber, a noção de esclarecimento aparece como índice para entender a formação da civilização. A dialética, por sua vez, é a do entrelaçamento entre mito e razão, presentes nas situações históricas progressivas, como: “narrativas míticas”; “concepções científicas ou filosóficas”; “estratégias da indústria do entretenimento”; ou “posições políticas, entre outras possibilidades”.
Esse é o processo civilizatório, e o resultado principal é a dominação da natureza, seja humana ou física. Ao longo do tempo, a dominação torna-se controle e administração da vida em sociedade, o que compromete a individualidade e a liberdade. A partir da sua reflexão, a Dialética abre um leque de possibilidades de investigação filosófica e de estudos de variadas áreas, como história, geografia e letras, além de possuir importante influência e ser considerada “absolutamente central no debate intelectual do século 20”, nas palavras de Eduardo Brandão. Confira a entrevista completa com o professor:
Serviço de Comunicação Social: De que trata a obra Dialética do Esclarecimento e onde ela se situa no contexto filosófico?
Eduardo Brandão: A obra Dialética do Esclarecimento foi escrita por Horkheimer e Adorno e publicada em 1947, embora já circulasse desde 1944 em forma mimeografada entre os colegas do Instituto para a Pesquisa Social. Por conta do nacional-socialismo na Alemanha e da Segunda Guerra Mundial, os autores estiveram nesse período nos Estados Unidos, fatos que, obviamente, impactaram o teor do escrito. Ele é composto de um capítulo intitulado “O conceito de esclarecimento”; dois excursos intitulados “I- Ulisses ou mito e esclarecimento” e “II- Juliette ou esclarecimento e moral”; outros dois capítulos intitulados “A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas” e “Elementos do anti-semitismo: limites do esclarecimento”; e um conjunto de anotações intitulado “Notas e esboços”.
Em linhas gerais, o livro pode ser entendido como uma análise do processo civilizatório, que tem na noção de esclarecimento seu índice principal. Nessa condição, a obra começa buscando descrever o que seria essa espécie de lógica constitutiva da civilização: o esclarecimento é uma dinâmica que se dá num entrelaçamento entre mito e razão, e tem como um dos seus resultados principais a dominação da natureza, tanto a externa quanto a interna (nos seres humanos). Isso faz com que, em linhas gerais, o processo civilizatório se dê nesses termos, o que resulta numa visão do movimento histórico na qual ele é uma sucessão e um somatório de situações (que podem ser narrativas míticas – por exemplo, no Excurso I; concepções científicas ou filosóficas – como encontramos no Excurso II; estratégias da indústria do entretenimento – por exemplo, na indústria cultural; ou posições políticas, entre outras possibilidades) que justamente consolidam e expõem as características gerais do processo civilizatório da humanidade, que é estruturado a partir de uma lógica de dominação (não só da natureza e de nós mesmos, mas também dos seres humanos vivendo coletivamente). Nesse sentido, a ideia de que esse processo é dialético vai justamente mostrar o entrelaçamento e uma espécie de refinamento na sucessão de suas etapas. Assim, o controle, a dominação vão se transformando e se sofisticando com o correr da história, e os seres humanos se veem cada vez mais enredados nessa situação: a partir disso, o livro detecta um movimento que cada vez mais transforma o mundo em algo administrado, preso em uma racionalidade eminentemente técnica, onde a liberdade e a autonomia dos indivíduos – e consequentemente da sociedade – está cada vez mais comprometida.
Esse diagnóstico um tanto sombrio insere-se, como já notamos acima, no contexto da Segunda Guerra Mundial. A obra, que é um dos mais importantes textos filosóficos do século 20, reverbera uma série de questões que ocupavam o pensamento filosófico de então: por exemplo, a questão da técnica ou a incorporação de elementos da psicanálise na análise filosófica. Mas a gama de influências e interlocuções que se observam no livro é enorme: discussões com o marxismo ou com a obra de Max Weber, análises de Kant e Nietzsche, interpretações do significado da obra de Sade ou da matematização galilaica da natureza – estes exemplos são suficientes para uma indicação do arco de interlocutores que o livro mobiliza em seu percurso. Mas o debate que nele se trava não se limita apenas a referências filosóficas, e elementos antropológicos e sociológicos, por exemplo, também balizam as colocações do livro. Por essa amplitude do horizonte de suas reflexões, e também pelo teor de suas análises e conclusões, a Dialética do Esclarecimento é um livro absolutamente central no debate intelectual do século 20.
Serviço de Comunicação Social: Qual é a importância da obra para a filosofia, de modo geral, e que impactos na comunidade intelectual ela gerou?
Eduardo Brandão: A Dialética do Esclarecimento é uma das obras – talvez a mais – importantes da chamada Teoria Crítica, uma linha de pesquisa que é das mais expressivas dos séculos 20 e 21 e, que além de Horkheimer e Adorno, concatena nomes como Marcuse e Habermas, por exemplo. Nesse sentido, o texto teve e tem uma influência marcante na investigação filosófica feita a partir de sua publicação, e desde então tornou-se uma referência sempre presente para quem busca dialogar com a filosofia produzida recentemente. O seu diagnóstico duro e complexo, mesmo que passível de críticas, é paradigmático e é uma posição que tem que ser enfrentada em inúmeras análises filosóficas atuais. E dada sua amplitude e o amplo horizonte de seus referenciais, a Dialética do Esclarecimento tem esse estatuto não só para a filosofia, mas para as ciências humanas em geral. Para além da concordância (ou do desacordo) com suas teses, o que o livro impõe para quem com ele dialoga é o enfrentamento dos problemas que ele levanta para a contemporaneidade – mesmo tendo sido publicado há mais de 70 anos.
Serviço de Comunicação Social: Como esta obra é (ou pode ser) inserida no contexto acadêmico de pesquisas realizadas na FFLCH?
Eduardo Brandão: No contexto acadêmico das pesquisas realizadas na FFLCH, a Dialética do Esclarecimento é uma obra que pode encontrar um lugar de destaque em vários campos das investigações que aqui se realizam. Além do já mencionado interesse que tem para as áreas de filosofia e ciências sociais, o texto também abre horizontes para a investigação nas áreas de história, geografia e letras, seja pela análise de questões específicas que delineia (por exemplo, sobre Ulisses ou Sade), seja pelo teor de sua abordagem de temas históricos, geográficos e literários. Por se inserir no campo da teoria crítica, uma espécie de escola que norteia vários estudos que se fazem em nossa faculdade, a Dialética do Esclarecimento é um texto que está sempre no horizonte do que fazemos aqui.
Eduardo Brandão é doutor em Filosofia pela FFLCH-USP e professor da mesma instituição. Atua principalmente nos seguintes temas: Schopenhauer, idealismo alemão e história da filosofia contemporânea. Atualmente, realiza pesquisa que busca explorar a importância do conceito no interior da metafísica alemã a partir de Kant, com especial ênfase nas obras de Schopenhauer e Nietzsche.