100 Anos do Manifesto Surrealista

Obra de André Breton marcou o início do Surrealismo

Por
Rafael Dourador
Data de Publicação

Manifesto Surrealista
Arte: Rafael Dourador

O primeiro Manifesto Surrealista, publicado em outubro de 1924, foi escrito por André Breton, poeta francês e líder do Movimento Surrealista entre as décadas de 1920 e 1960. Influenciado por outros escritores como Baudelaire, Mallarmé, Valéry e Freud, ele foi o responsável por guiar o Movimento que ganhou grande proporção no período entre guerras e trouxe à tona artistas como Salvador Dalí.

Para Ricardo Fabbrini, professor do departamento de Filosofia da FFLCH, o Surrealismo foi uma espécie de revolta contra o cenário devastador causado pela Primeira Guerra Mundial. Inspirado pelo Dadaísmo de 1916, ele criticava a racionalidade que reprimiria a imaginação: “A atitude realista [...] parece-me hostil a todo impulso de liberação intelectual e moral. Tenho-lhe horror, por ser feita de mediocridade, ódio e insípida presunção. É ela a geradora, hoje em dia, desses livros ridículos, dessas peças insultuosas.”, escreve André Breton no Manifesto.

Fabbrini aponta três ideias reguladoras do Movimento: a exuberância da imagem poética, o acaso objetivo e o amor louco. A primeira seria o resultado da mescla de realidades contrastantes, o acaso objetivo seria aquilo que foge da racionalidade e da expectativa provável e o amor louco, fruto do acaso, seria “a fusão absoluta entre dois seres, uma experiência extática de comunhão dos amantes com o cosmos”.

Como aponta o professor, a palavra “surrealismo” é uma contração do “supernaturalismo” empregado por Gérard de Nerval, em 1854. Breton propõe o “automatismo psíquico puro”, uma técnica produtiva da expressão destituída de racionalidade, isto é, o agente produzindo algo sem ter o controle racional ou moral da ação. Esta técnica também é conhecida como “escrita automática”. Com Breton, a dimensão onírica ganha papel central nas produções artísticas, afastando os autores do realismo e levando-os àquilo que ele chama de “o maravilhoso” — um ponto de espírito no qual termos como vida e morte, real e imaginário, passado e futuro já não seriam entendidos como contraditórios.

A partir de 1925, André Breton se aproximou das ideias marxistas e do Partido Comunista Francês (PCF). Em 1930, ele publicou o Segundo Manifesto Surrealista, já com um viés político mais posicionado. Contudo, Fabbrini explica que esta tentativa de aproximação com o marxismo acabou sendo mal vista pelo PCF e por outros autores da época. “Esse materialismo singular de Breton já foi caracterizado por Michael Löwy como marxismo gótico; isto é, como ‘um materialismo histórico sensível ao maravilhoso, ao momento obscuro da revolta, à iluminação que rasga, como um relâmpago, o céu da ação revolucionária’”, conta.

Breton faleceu em setembro de 1966, mas os traços do Surrealismo permaneceram influenciando as décadas seguintes. Além da Revolta de maio de 1968, na França, onde as máximas do Movimento são resgatadas (e, posteriormente convertidas em slogans publicitários), Fabbrini destaca os traços estéticos dadá-surreais nas derivas urbanas da Internacional Situacionista, de Guy Debord e Constant, entre 1958 e 1972.

Confira a entrevista com o professor Ricardo Fabbrini na íntegra:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi André Breton?
 
Ricardo Fabbrini: André Breton que viveu de 1896 a 1966 foi um dos principais poetas e intelectuais franceses do século 20, e líder do Movimento Surrealista, dos anos 1920 aos anos 1960. Embora tenha iniciado o curso de medicina, seu principal interesse, na juventude, foi pela poesia de Baudelaire, Mallarmé e, principalmente, Valéry. No Hospital de Nantes, para o qual foi convocado durante a primeira guerra, iniciou seus estudos dos textos de Freud, que viriam a ser decisivos em toda sua trajetória. Ressalte-se também, nesse período de formação, seu convívio, ainda durante a guerra, com o crítico, poeta e dramaturgo Apollinaire que, nos anos 1910, difundia com entusiasmo, o espírito novo nas artes, em particular, a pintura cubista e a vanguarda futurista. Finda a primeira guerra, Breton, com Soupault e Aragon, inseriram-se no meio literário parisiense, inicialmente como editores da revista Littérature que publicava Lautréamond (Isidore Ducasse), Rimbaud; Jarry; e os dadaístas do Cabaret Voltaire, entre os quais, Tzara e Ball, que já haviam escandalizado Zurique. São todos poetas que compartilhavam, aos olhos de Breton - que então buscava seu próprio meio de expressão - a imaginação fabulosa; a insolência em face das regras literárias; o humor insólito; e a investida radical contra a razão utilitária e a moral burguesa. Breton, em suma, foi um poeta inquieto, de grande erudição e magnetismo pessoal, que exercia fascínio sobre todos os que o rodeavam, o que não o impediu de romper, dramaticamente, com antigos companheiros do Movimento Surrealista, como Dali e Aragon.

Serviço de Comunicação Social: O que foi o Movimento Surrealista?

Ricardo Fabbrini: O Movimento Surrealista não foi uma escola literária ou um estilo artístico, mas um modo de vida, uma revolta radical contra a civilização capitalista ocidental que lançara seus jovens no morticínio da primeira guerra. O surrealismo foi uma tentativa de viver sob a forma da poesia pura; um modo de existência ao mesmo tempo ético e estético que visava transformar a vida em obra de arte. Foi um meio de conhecimento do mundo e, mais do que isso, uma tentativa de transformá-lo pela contraposição dos poderes da imaginação, da intuição, do sonho, da loucura, da infância, e do Oriente, à “racionalidade científica, materialista e positivista”, nos termos de Breton. Destaco três ideias reguladoras do Movimento Surrealista: a exuberância da imagem poética; o acaso objetivo, e o amor louco. A imagem poética é o resultado do procedimento da montagem, ou seja, da justaposição de realidades muito distantes entre si. Daí o encanto do grupo pela formulação do Conde de Lautréamont em Os Cantos de Maldoror, de 1868, a “Bíblia” dos surrealistas: “Belo...como resultado do encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecação”. O “acaso objetivo” permite perceber a “congruência de elementos semânticos” em acontecimentos que integram séries causais independentes uma das outras. Não se tratava, assim, de produzir o acaso, mas de dedicar uma atenção redobrada a tudo o que se encontra fora de uma expectativa provável. Seria preciso colocar-se em estado de receptividade integral para apreender, em outros termos, os momentos do imprevisível, ou seja, os fenômenos que não têm lugar em um mundo ordenado segundo a racionalidade voltada para fins. O acaso objetivo – que é vivido pelo poeta como algo que foi urdido por algum desígnio secreto da natureza – é que possibilita, em suma, a irrupção súbita do maravilhoso na vida. Na visão surrealista do “amor louco” – que é fruto do acaso objetivo - confluem erotismo e onirismo. O amor louco é a fusão absoluta entre dois seres; é uma experiência extática de comunhão dos amantes com o cosmos (num mágico retorno à Unidade perdida); é, em outros termos a revelação profana dos “mistérios do mundo”, que possui uma dimensão política, senão revolucionária, na medida em que ele se opõe em sua desmedida e incondicionalidade, à noção judaico-cristã de pecado, ou, de modo mais genérico, às instituições do Estado, da família e da igreja, como se vê nas obras Nadja, de 1928, e Amor louco, de 1937, de Breton. A potência do amor e da arte está, no imaginário surrealista, em sua inutilidade (em ser uma “finalidade sem fim”), numa recusa, portanto, à lógica da produtividade e da mercadoria na sociedade capitalista. O amor absoluto permite aceder à “supra-realidade”, o que não implica evasão, porque ela é vivida (como negatividade) na imanência do mundo histórico.

Serviço de Comunicação Social: Em qual contexto o Manifesto Surrealista foi escrito e qual foi a sua importância?

Ricardo Fabbrini: O primeiro Manifesto do Surrealismo, que consolidou as ideias do grupo de poetas que gravitavam em torno de Breton foi publicado em 1924. O Manifesto é uma rapsódia, uma miscelânea de gêneros, uma mescla de considerações científicas, interpretações filosóficas, crítica literária, e descrições dos processos de criação surrealista. No coração do Manifesto está a definição do termo “surrealismo” (uma contração da palavra “supernaturalismo” empregada por Gérard de Nerval na dedicatória de seu romance Les Filles du Feu, de 1854, a Apollinaire), apresentada como um verbete de dicionário, que se tornou célebre: “SURREALISMO; s. m. Automatismo psíquico puro, pelo qual se pretende exprimir, verbalmente ou por escrito, ou de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de qualquer vigilância exercida pela razão, para além de qualquer preocupação estética ou moral”. Pelo “automatismo psíquico” em uma “escrita automática” (sem qualquer controle racional ou moral) - análoga à técnica psicanalítica da associação-livre de ideias de Freud, mas destituída de qualquer função terapêutica – se visaria escavar o tesouro perdido das imagens soterradas pela “lógica tradicional”. A “supra-realidade”, é a “realidade absoluta” que viola os princípios da identidade ou da não-contradição: “Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessa de ser percebido contraditoriamente”. Esse ponto do espírito, que só seria alcançado por aquele que reagindo às demandas de nosso mundo empobrecido se colocasse em estado de total disponibilidade ao sonho, ao acaso, ao perigo, à convulsão das paixões é nomeado no Manifesto do Surrealismo, de 1924, como “o maravilhoso!”

Serviço de Comunicação Social: Quais foram os desdobramentos dessa publicação?

Ricardo Fabbrini: Foram inúmeras as polêmicas geradas por esse primeiro manifesto. Sua repercussão no imaginário estético-político do século 20 foi imensa. Destaco alguns de seus desdobramentos. A partir de 1925, Breton orientou o grupo surrealistas na direção de um engajamento político mais efetivo, ao se aproximar do Partido Comunista Francês que reagia, nesses anos 1920, à agressão colonialista francesa no Marrocos. Depois de ler Freud, que foi decisivo na elaboração do primeiro manifesto, Breton, visando aproximar o surrealismo da ação político-revolucionária, volta-se para Marx, Lênin e Trotsky. No segundo Manifesto do Surrealismo, de 1930, ele afirmará sua “adesão total, sem reservas” ao princípio do materialismo histórico: “o surrealismo se considera - dirá ele - indissoluvelmente ligado a abordagem do pensamento marxista e apenas a essa abordagem”. Sua tentativa de aproximar o surrealismo do marxismo foi vista, no entanto, com grande desconfiança tanto pelo PCF como por poetas do grupo surrealista. Esse materialismo singular de Breton já foi caracterizado por Michael Löwy como “marxismo gótico”; isto é, como “um materialismo histórico sensível ao maravilhoso, ao momento obscuro da revolta, à iluminação que rasga, como um relâmpago, o céu da ação revolucionária”. No Discurso ao Congresso dos escritores, em Paris, cinco anos mais tarde, explicando sua concepção de materialismo, Breton afirmará que o único antídoto eficaz contra o racionalismo positivista não é outro senão o materialismo dialético, enquanto teoria geral do conhecimento”; e ao final de seu discurso, numa ode à libertação do espírito, proclamará: “Transformar o mundo, disse Marx; mudar a vida, disse Rimbaud: estas duas palavras de ordem são para nós, uma só”. Em 1938, Breton visita Trotsky no México. Desse encontro resulta um texto subscrito por ambos, de repercussão mundial: “Por uma arte independente”, que, numa reação ao realismo socialista imposto pelo dirigismo cultural stalinista (ao qual Soupault e Aragon aderiram) defendia a plena liberdade de criação artística: “(...) a revolução deve, desde o início, estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhum constrangimento, nem o menor resquício de comando! Os marxistas podem andar aqui de mãos dadas com os anarquistas…”. De fato, nos anos 1940 e 1950, como evidencia seu livro Arcano 17, de 1947, Breton afasta-se do próprio trotskismo, aproximando-se de intelectuais de tendência anarquista. É em Arcano 17 que ele rememora a exaltação que sentiu ao encontrar casualmente, numa das primeiras vezes que o levaram ao cemitério, uma lápide com os dizeres “Nem Deus, nem Mestre”. As máximas dos surrealistas que atribuem ao amor e à arte uma função libertária, seriam retomadas na Revolta de maio de 1968, na França: “A imaginação no poder!”; “É proibido proibir!”. Não se pode ignorar, todavia, que essas palavras vivas se converteriam nas décadas seguintes, em slogans publicitários. Por fim, entre os desdobramentos do Manifesto Surrealista vale lembrar a ressonância das caminhadas estéticas dadá-surreais nos anos 1920, em Paris, nas derivas urbanas da Internacional Situacionista, de Guy Debord e Constant, de 1958 a 1972.   
 
Ricardo Fabbrini é professor livre-docente de Estética do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da mesma universidade (PGEHA). É autor dos livros O Espaço de Lygia Clark, Arte depois das vanguardas e Arte contemporânea em três tempos, além de artigos sobre arte moderna e contemporânea em diversos periódicos.