Homenagem à professora Beatriz Sarlo

A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas presta suas homenagens à intelectual argentina falecida ontem, 17 de dezembro

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Redação
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Beatriz Sarlo
Beatriz Sarlo na sessão de abertura da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) 2015. Fonte: Wikimedia Commons

Beatriz Sarlo (1942-2024)

A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo rende homenagem à professora, escritora e pesquisadora argentina Beatriz Sarlo, falecida ontem em Buenos Aires. Em uma grave conjuntura histórica, em que a própria existência da universidade argentina se encontra ameaçada pelo desfinanciamento e pelo obscurantismo, nossa Faculdade, um dos centros de produção de conhecimento e de crítica sobre a literatura na América Latina, convocou dois docentes do Departamento de Letras Modernas para resumir aspectos da trajetória desta grande intérprete e protagonista do campo intelectual na Argentina e no nosso continente, lembrando também sua atuação no Brasil e a circulação da sua obra neste país. 

Prof. Dr. Jorge Schwartz

Jorge Schwartz
Jorge Schwartz. Foto: Renan Braz/Serviço de Comunicação Social da FFLCH USP

Com o falecimento de Beatriz Sarlo (1942-2024), que se sucede ao de Ricardo Piglia (1941-2017), Sylvia Molloy (1938-2022) e Edgardo Cozarinsky (1939-2024), nos despedimos da última intelectual dessa geração, para mim uma amiga próxima e uma figura gigantesca.

Ela foi seminal nos estudos culturais e nas reflexões sobre as literaturas de vanguarda latino-americanas. Tinha a rara capacidade de sempre deslocar o consagrado e o lugar-comum.

Ler Borges depois dos textos de Sarlo é uma experiência ímpar. Em Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920 y 1930 (1988), ela cunhou a expressão “criollismo urbano de vanguardia”, resolvendo um binômio até então antagônico, o local versus o cosmopolita, resgatando pioneiros da geração em torno da revista Martín Fierro (1924-1927), como os poetas Oliverio Girondo e Raúl González Tuñón. 

Das traduções de sua obra publicadas no Brasil, quero destacar Jorge Luis Borges: um escritor na periferia (Iluminuras, 2008), assim como Paisagens imaginárias: intelectuais, arte e meios de comunicação (Edusp, 2016). Era leitora contumaz de Susan Sontag, Roland Barthes e Walter Benjamin, tendo sido publicado em português Sete ensaios sobre Walter Benjamin (Editora UFRJ, 2013).

Aguerrida como poucos, “no tenía papas en la lengua” – como se diz em espanhol –, sempre convicta de seus princípios. Ler seus ensaios de caráter político antikirchnerista no jornal Perfil, ou ver suas entrevistas na televisão eram aulas de pugilismo intelectual. Das inúmeras notas necrológicas publicadas até agora, cito a do próprio jornal: “A literatura era sua paixão, mas não concebia a arte sem vinculação política. Neste último campo, teve fortes embates, assim como por suas avaliações literárias, que lhe valeram grandes ofensas e ressentimentos. O preço de dizer o que pensava sem meias-palavras nunca a preocupou”.

Foi muito maltratada pelos alunos da Universidade de Buenos Aires, ao ponto de ter que renunciar à Cátedra. Gostaria de reproduzir algumas palavras de Daniel Link: “A cultura argentina, que ela conhecia melhor do que ninguém, deveria homenageá-la durante meses, anos, décadas”.

Teve passagens breves e sempre marcantes pelo Brasil, país que lhe outorgou a Ordem do Mérito Cultural em 2009 (durante o segundo mandato de Lula; o governo Bolsonaro suspendeu a entrega a partir de 2019). Em 1983 Antonio Candido organizou um colóquio hoje histórico em Campinas, com a presença dela, assim como de Ángel Rama, Roberto Schwarz e Ana Pizarro. Anos mais tarde, no Memorial da América Latina, ela esteve ao lado de Antonio Candido e Roberto Schwarz, quando tive a honra de participar. Em 2013 Beatriz Sarlo esteve em Diamantina no II Festival de História. Em 2015 foi convidada de honra da FLIP para falar sobre Mário de Andrade e as vanguardas latino-americanas. 

Durante os anos dos mandatos anteriores de Lula, Beatriz me dizia com ênfase que queria ser brasileira. Isso terminou, e ela teve infelizmente o desgosto de ver Milei ascender à presidência da nação. Teremos que sobreviver agora sem as análises sem dúvida penetrantes deste período, o que para mim significa sem o diálogo com essa figura insubstituível. 

Ana Cecília Arias Olmos
Ana Cecília Arias Olmos. Foto: Abralic

Profa. Dra. Ana Cecilia Olmos

Beatriz Sarlo foi professora de Literatura Argentina na Universidade de Buenos Aires e em diversas instituições europeias e norte-americanas. 

Suas pesquisas foram pioneiras na região ao indagar sobre a potência crítica da literatura na dinâmica das práticas culturais em contextos de modernidade e pós-modernidade. Títulos como El imperio de los sentimientos  (1985),  Una modernidad periférica: Buenos Aires 1920-1930 (1988); La imaginación técnica: sueños modernos de la cultura argentina  (1992); Escenas de la vida posmoderna  (1994); Borges, un escritor en las orillas  (1993); La máquina cultural  (1998); La pasión y la excepción  (2003), alguns deles traduzidos ao português, tornaram-se referências imprescindíveis no campo dos estudos culturais latino-americanos, não apenas pela densidade e lucidez de suas abordagens, mas sobretudo por se sustentarem numa ideia de literatura que não prescinde da dimensão política que todo discurso social comporta. Prova cabal disto foi o labor intelectual que Sarlo levou adiante na Argentina da ditadura e pós-ditadura mediante a organização das revistas Los libros (1969-1976) e Punto de Vista (1978-2008), que abriram espaços de expressão pluralizando o debate cultural da época. Em tempos de acelerada cultura digital, o nome de Beatriz Sarlo nos lembra da importância do trabalho coletivo e da feitura artesanal em que se sustenta uma intervenção intelectual que se quer democrática.