Nascimento de José Craveirinha

Poeta de Moçambique no período colonial e pós-colonial, é autor de diversas obras canônicas na literatura do país e possui grande importância crítica

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Pedro Seno
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Segundo Carlos Eduardo Filho, “para muitos críticos literários moçambicanos, ele [José Craveirinha] é considerado o poeta-mor, fazendo parte do cânone literário de Moçambique”. (Arte: Pedro Seno/ Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

José Craveirinha, nascido em 28 de maio de 1922 em Maputo, Moçambique, viveu sob o jugo do colonialismo português, enfrentou discriminação racial e desafios sociais como “mulato” (à época, termo usado em Moçambique) no país. Além de sua atuação como poeta, foi jornalista, futebolista e ativista cultural. Em entrevista, o pesquisador Carlos Eduardo Filho, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, explica que o autor “foi o primeiro moçambicano alardeado com o Prêmio Camões em 1991”.

Craveirinha envolveu-se em movimentos literários e na luta anticolonial, passou pela censura da polícia política de Portugal (PIDE), e foi preso por integrar a Frente de Libertação Moçambicana (FRELIMO). Sua obra poética foi marcada por uma linguagem distinta e inovadora, refletindo as realidades sociais, políticas e culturais do país, especialmente durante o período colonial e pós-independência. Também foi pioneiro ao incorporar elementos da oralidade, neologismos e a poesia grotesca em seus escritos, desafiando as convenções da época e ampliando os horizontes da expressão literária em Moçambique.

O poeta faz parte do cânone da literatura moçambicana e é considerado “grande articulador dos movimentos literários”, além de “um dos poetas de maior amplitude dos Países Africanos de Literatura Oficial Portuguesa”, de acordo com Carlos Eduardo. Apesar da importância, o autor carece de biografia crítica e possui muitas obras ainda sem publicação, o que torna o caminho para sua pesquisa aberto e vasto. Confira a entrevista completa de Carlos Eduardo Filho:

Serviço de Comunicação Social: Quem foi José Craveirinha, onde e quando viveu?

Carlos Eduardo Pinto Vergueiro Filho: O moçambicano José Craveirinha (1922-2003) da Mafalala, bairro do subúrbio de Maputo, foi filho de pai português que trabalhava na polícia colonial e mãe ronga, com quem pouco conviveu. “Sontinho”, como era carinhosamente chamado pela parte da mãe, e José, pela parte do pai, tornou-se poeta, jornalista, futebolista, ativista cultural, militante anticolonial e grande articulador dos movimentos literários moçambicanos. Viveu boa parte do período colonial português e o complexo conflito racial em Moçambique por ser considerado mulato (terminologia de uso em Moçambique) nas diferentes categorias surgidas. Com isso, seu status social no meio dos brancos era de um assimilado que tinha possibilidades de contato, mas não alçaria jamais as mesmas cadeiras de um cidadão branco. Do outro, apesar de impulsionar diferentes Associações e participar ativamente de jornais voltados aos colonizados, Craveirinha sofria com apelidos como “caporro” ou ser chamado de “filho de uma quinhenta”. Vivendo nesse universo repartido, sob a censura da PIDE e a opressão colonial do Salazarismo (1930-1975?), fez parte de uma geração plural que transformou o cenário literário moçambicano, tais como Noémia de Sousa, Rui Nogar, Fonseca do Amaral e outros que aqui não será possível enumerar, além de ter sido preso por integrar as células da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO).


“Eu era um futebolista execrado
fui um jornalista maldito
poeta amaldiçoado
um suburbano odiado
(...)”
(CRAVEIRINHA, J. O Plebiscito. p. 39.)



Após a independência, Craveirinha foi levado ao Panteão de Heróis pela FRELIMO. Os anos de República Popular de Moçambique fizeram ele se distanciar da política partidária, tornando-se autônomo. No poema pós-independência citado, ele cria de forma irônica esse sujeito poético de como teria sido visto ao longo da sua vida. Foi o primeiro moçambicano alardeado com o Prêmio Camões em 1991.  Para muitos críticos literários moçambicanos, ele é considerado o poeta-mor, fazendo parte do cânone literário de Moçambique. Para os leitores brasileiros, muitas vezes não é conhecido, pois seus textos encontram-se espalhados em coletâneas, antologias e revistas. Para este estudioso de Craveirinha, considero um dos poetas de maior amplitude dos Países Africanos de Literatura Oficial Portuguesa, dado que sua obra atravessou períodos históricos distintos e suas marcas poéticas sofreram variação ao longo do tempo.

Serviço de Comunicação Social: Quais características principais da sua obra, qual foi sua importância para a literatura?

Carlos Eduardo Pinto Vergueiro Filho: A obra poética de Craveirinha possui diferentes facetas. Chigubo, lançado em 1964 (Alterado para Xigubo na 2ª edição), foi seu primeiro livro e circulou de forma clandestina pelo Moçambique colonial devido à censura da PIDE. Nele, Craveirinha construiu vozes poéticas que gritam das fronteiras dos rios Rovuma ao Incomáti. Em Lourenço Marques (atual Maputo), gritam do Chamanculo e de Munhuana (bairros suburbanos), gritam dos porões embarcando ou afundando como cargas no porto, gritam das minas de carvão do Jone (Fronteira com África do Sul), gritam por mulheres na rua Araújo (local de prostituição), gritam por cocuanas (avós), mufanas (rapazes), meninos e meninas que tem fome e frio, contra o xibalo (trabalho compulsório), as shipakanas (palmatórias de tortura) e a violência colonial das balas do homem mau. Como a raiva da cheia do rio Incomáti, as vozes transformam-se em carvão e queimam tudo com o fogo da combustão. Essas vozes, oras com rimas pobres propositais, podem se tornar sujeitos coletivos ou serem nomeadas como Jambul, Fanisse, Margarida, Detinha... outras são gado, carga, carvão e animais, metonímias de como o colonialismo enxergava esses sujeitos colonizados. Vozes negras, de mulatos, de mulheres, de sujeitos que se encontram no fator colonial e gritam pedindo Mamanô. Portanto, Xigubo é uma obra implacável que marca a década de 60 por trazer uma linguagem subversiva ao incluir línguas locais, ritmos distintos da língua portuguesa e novidades na poética com elementos narrativos e jornalísticos, características que Craveirinha aprofunda nas obras posteriores.  Além disso, os poemas se inserem no contexto da colonização (alguns, inclusive, só aparecem na 2ª edição), de resistência anticolonial e no sonho de um país que ainda não existia. 

Karingana ua Karingana (1974) foi sua segunda obra publicada (Antes havia escrito Cela 1, mas essa só foi publicada após a independência, justamente por ter sido escrita no período em que ficou preso de 1964 a 1969). Considero a obra mais bem pensada por Craveirinha, dado que diversos poemas já haviam sido publicados na imprensa, mas foram modificados no livro por conter um projeto literário. Na minha dissertação, aponto que a divisão em quatro partes da obra foi planejada para marcar diferentes tempos (históricos ou sazonais). A parte I (Fabulário) caracteriza um período que vai de 1945 a 1950 (Pós segunda-guerra até a política do lusotropicalismo) em que Craveirinha inventa poemas-fábulas cheios de aforismo. A parte II (Karingana) é fortemente marcada pelo ano de 1958, um período turbulento que abre uma nova perspectiva para os moçambicanos. A parte III (Três odes ao Inverno) demarca um período frio do ano, um tempo do recolher-se para a primavera que virá. A parte IV (Tingolé) tem um nome de uma fruta que nasce em diferentes localidades do litoral de Moçambique e é aberta por um poema que tematiza a importância do cuidado com a terra (“Sementeira”) e termina com “SIA-VUMA” que é um poema nacionalista, pois demarca uma série de planos para a nova nação que estava nascendo. Portanto, ler Karingana ua Karingana não é tão palatável quanto Xigubo por conter uma série de poemas que carregam elementos endógenos da história e culturas moçambicanas. Todavia, adentrar a complexidade das imagens poéticas selecionadas por Craveirinha é um mergulho linguístico e literário, pois muito do que há nesses poemas reverbera até hoje na literatura moçambicana. O amor fraternal por “Maria Sende”, a subversão da “lume” em “Mangondo”, a raiva na presença/ausência em poemas como “Ninguém”, a história/jornada de tantos Madevos, o ritmo de Tingane e vários outros  poemas que são vozes que contam histórias.

Por fim, sem esgotar as importantes obras como Maria (1998), Hamina e outros Contos (1997) e sua obra póstuma, destaco Babalaze das Hienas (1997) que denota um novo projeto literário surgido a partir de experimentos anteriores em poemas esparsamente publicados como “Saborosas Tanjarinas d’Inhambane” (1982-84) ou “A minha complacência” (1981). Nesse novo projeto, Craveirinha explora as vozes poéticas ampliando as possibilidades de uso, utiliza com maior desenvoltura as pontuações para marcar seu tom irônico, aprofunda o uso da língua com neologismos, palavras da oralidade cotidiana em contraste com a erudita, reinventa composições clássicas. Os poemas têm novas tópicas e imagens poéticas que dialogam com as questões políticas emergidas após a independência, conflitos internos e as guerras de agressão e civil que marcaram a década de 80, bem como os efeitos do programa Frelimista na construção da República Popular de Moçambique. O Craveirinha herói foi considerado “reacionário” e “traidor” por alguns intelectuais e literatos do período, justamente por sua poesia não ser bajuladora nem militante. Logo, Craveirinha, primeiro presidente da Associação de Escritores de Moçambique (AEMO), coloca-se mais próximo à nova geração de escritores moçambicanos (geração Charrua e romancistas da década de 80 e 90) que adotam uma linguagem distinta da institucionalizada na poesia de combate. Os corpos dilacerados pela guerra geram uma poética grotesca, as mortes são rememoradas em versos, os corpos migrantes que fogem dos conflitos ganham canções e cancioneiros, o corpo coletivo suicida dos moçambicanos é devorado por hienas (representação metafórica de vários sujeitos que comandam os festejos) que estão de babalaze (ressaca). O ato do registro de um trauma coletivo que o centro do poder quer esquecer é verdadeiramente revolucionário, pois traz vozes que ecoam de um passado recente. E como um Maiakóvski da Mafalala que preteriu cargos, pois nunca “desertou da poesia” (Poema “Vladimir Mayakovski”), Craveirinha, o Camões moçambicano para Mia Couto, deve sempre estar no alto da prateleira literária moçambicana, brasileira e de toda a literatura em língua portuguesa.

Serviço de Comunicação Social: Como Craveirinha é inserido no contexto acadêmico das pesquisas feitas na FFLCH? (Baseando-se na sua experiência e conhecimento)

Carlos Eduardo Pinto Vergueiro Filho: Craveirinha tem uma grande importância nas Literaturas Africanas de Língua Portuguesa do DLCV/USP, muito pelos esforços dos professores Benjamin Abdala Júnior e Maria Aparecida Santilli, que trouxeram seus textos para o debate acadêmico com outros professores da área, além de articularem publicações como o dossiê especial da Revista Via Atlântica (número 5 de 2002). Atualmente, integra o curso de Literaturas Africanas II oferecido de forma optativa na graduação. No ano de 2022, marco do centenário do nascimento de Craveirinha, pude participar junto com a professora Dra. Rejane Vecchia (USP), o professor Dr. Ubiratã Souza (USP) e o professor Dr. José Welton Júnior (UNEB) da promoção de um curso de extensão que contou com mais de uma centena de alunos de diversos locais do Brasil. Acredito que há uma extensa obra crítica publicada no Brasil em livros e revistas, contudo, ainda é um grande obstáculo o acesso ao texto de José Craveirinha, como já comentado. No caso das obras pós-independência, considero que é um campo em investigação, pois mesmo em Moçambique é preciso pesquisar para encontrar livros como Babalaze das Hienas, Maria, Moçambique e outros poemas dispersos, Tâmaras Azedas de Beirute, Vila Borghesi e outros poemas de viagem, O Plebiscito, dado que sua obra completa não foi ainda inteiramente publicada para que nós estudiosos tenhamos um parâmetro da dimensão de toda a poesia craveirínhica. Além disso, não temos ainda uma biografia crítica de Craveirinha que pretenda esmiuçar as relações estabelecidas nos diferentes meios pelos quais transitou. Portanto, considero que caminhamos muito graças principalmente aos esforços de pesquisadores como Ana Mafalda Leite, Gilberto Matusse, Raul Calane da Silva e outros tantos, mas com o acesso aos seus textos poderemos ainda ver muitos outros caminhos e fronteiras a serem percorridos.


Carlos Eduardo Pinto Vergueiro Filho é graduado em história pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela FFLCH-USP. Atualmente é Coordenador Pedagógico na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME/SP).