Massacre de Eldorado do Carajás

Em 17 de abril de 1996, o movimento sem-terra foi vítima de violência policial no Pará ao tentar negociar desapropriação de terras improdutivas

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

“O Massacre de Eldorado do Carajás, assim como vários outros, expõe a face violenta do Estado”, segundo Rogério Rego Miranda (Arte: Gabriela Ferrari Toquetti/Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

O dia 17 de abril é um marco na luta pela democratização das terras, sendo considerado o Dia Internacional da Luta Camponesa. Hoje, a data traz visibilidade à questão dos sem-terra, mas o 17 de abril nasceu de uma tragédia que dizimou a vida de muitos trabalhadores rurais – o massacre de Eldorado do Carajás.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) havia começado a atuar no Pará no fim da década de 1980. Em abril de 1996, o grupo decidiu ocupar o Complexo Macaxeira, que tinha uma área de mais de 40 mil hectares e era localizado na cidade de Eldorado do Carajás. O objetivo era negociar a desapropriação de terra improdutiva, mas o resultado foi desastroso.

Em protesto, os sem-terra organizaram uma caminhada em direção a Belém para fazer a negociação. No trajeto, montaram acampamentos e chegaram, em 16 de abril, à chamada Curva do S, que viria a ser palco do massacre. No dia seguinte, a jornada foi interrompida pela Polícia Militar, que cercou o grupo e disparou gás lacrimogêneo. Mesmo assim, os sem-terra permaneceram no local, e foi então que a chacina começou. Os batalhões da polícia passaram a atirar, assassinando 19 camponeses – de acordo com relatórios oficiais, embora haja especulações de que esse número tenha sido maior.

O incidente gerou grande comoção dentro e fora do Brasil, levantando discussões a respeito do assentamento das famílias sem-terra. Depois do massacre, o MST vem fortalecendo sua atuação no Pará e no resto do país. Foi construído, ainda, um monumento na Curva do S em memória dos falecidos na chacina, que denuncia a violência do Estado direcionada à reforma agrária.

“A polícia, enquanto um dos aparelhos do Estado, precisaria passar por um processo de reformulação nos seus valores com vistas a atuar no sentido de assegurar a cidadania para todos e todas sem seletividade racial, de gênero e de classe social”, afirma Rogério Rego Miranda, doutor em Geografia Humana pela FFLCH. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: O que foi o massacre de Eldorado do Carajás e por que ele ocorreu?

Rogério Rego Miranda: O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) inicia sua atuação no sudeste paraense no final da década de 1980 e o aprofunda na década seguinte, utilizando-se da experiência de luta sindical posseira existente na região, do auxílio da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e de partidos de esquerda.

Sua atuação inaugura uma metodologia de luta pela terra diferente da posseira mediante a ocupação de terras mais próximas das cidades e com todos os membros da família. A terra ocupada geralmente apresenta fortes indícios de irregularidades, especialmente pelo conhecido processo de grilagem (que consiste na falsificação de documentos) e nela se estrutura o acampamento, onde as famílias sem-terra costumam construir uma vila rural e edificar de imediato seus barracos (casas feitas com lona e/ou barro) e uma escola com vistas a possibilitar a permanência das famílias.

Nesse contexto, inicia-se o planejamento da ocupação do Complexo Macaxeira (que era composto pelas fazendas Macaxeira, Grota Verde, Ponta Grossa e Eldorado), que compreendia uma área de 42 mil hectares localizada no município de Eldorado do Carajás (sudeste do Pará).

De acordo com Fernandes (1999), muitas famílias que participaram da ocupação eram posseiras nas terras do Complexo Macaxeira, que já estavam sendo reivindicadas pelo MST desde a entrega dos lotes do Projeto de Assentamento Palmares (criado oficialmente no ano de 1996) pelo então presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Francisco Graziano Neto, no dia 5 de novembro de 1995 – ocasião em que, além dos beneficiados da reforma agrária, estavam presentes mais 1.500 famílias que reivindicavam a desapropriação da Macaxeira, de propriedade de Plínio Pinheiro, pressionando para que houvesse a vistoria da área em questão.

Nesse mesmo dia, cerca de 3.550 famílias ocuparam o Centro de Orientação e Formação Agropastoril e Artesanal de Curionópolis (COFAAC), onde ficaram por cinco meses aguardando o resultado da vistoria.

Após esse período, o acampamento foi alterado para a Fazenda Formosa, cujo proprietário era Olavo Ribeiro. No começo de abril de 1996, decidiu-se realizar uma caminhada em direção a Belém para negociar a desapropriação do Complexo Macaxeira.

Inicialmente acamparam no quilômetro 21 e depois no quilômetro 16 da PA-150, até chegarem à “Curva do S”, no dia 16 de abril. Nesse momento, foram visitados pelo promotor de justiça acompanhado de dois soldados, que solicitaram a desobstrução da estrada, pois, no dia posterior, às onze horas, seriam cedidos a eles cinquenta carros e 10 mil quilos de alimentos para que seguissem viagem até seu destino na capital paraense.

De acordo com os relatos dos assentados que estiveram presentes no ocorrido, a ideia era realizar uma averiguação acerca dos sem-terra, para observar se estavam armados, quantos eram etc., para que no dia seguinte se realizasse a desobstrução da área.

No dia 17 de abril, a rodovia foi novamente interditada pelos sem-terra às onze horas da manhã, pois o acordo não havia sido cumprido. Às duas horas da tarde, chegou o primeiro batalhão da Polícia Militar (PM), advindo de Parauapebas, que ficou aguardando o restante dos policiais que vinham de Marabá. Ao chegarem, cercaram os sem-terra nos dois sentidos da estrada e não se dispuseram a negociar, lançando imediatamente gás lacrimogêneo.

Entretanto, como os sem-terra se recusaram a sair do local, os batalhões passaram a dar tiros de fuzil, os quais ceifaram dezenove sem-terra, segundo números oficiais, muito embora alguns assentados aleguem que esse número seja superior devido à quantidade elevada de pessoas presentes entre homens, mulheres e crianças e devido à procura de pessoas por parentes desaparecidos no local após o evento. Foram levantadas inúmeras versões acerca das mortes.

Foi um episódio extremamente violento, como nos informa um dos assentados que esteve presente no massacre e sobreviveu:

“Rapaz, do massacre o que eu vi foi [...] muito companheiro caindo, tombando, muito sangue, muito miolo de cabeça de gente derramado na pista. [...] Eu ajudei a juntar uma camisa quase cheia de miolo” (informante, assentado do 17 de Abril, 54 anos, 22 jun. 2016).

Após o acontecido, o acampamento, que era formado por aproximadamente 1.500 famílias, foi reduzido para 690, em virtude da dispersão de uma parte dos sem-terra que desistiram e de outra parte que foi remanejada pelo Incra para o Assentamento Tuerê, em Novo Repartimento (PA), criado em 1987.

O massacre teve por objetivo a desmobilização completa do MST no estado do Pará, como uma espécie de exemplo para que o MST e outros movimentos de luta pela terra não viessem a ocupar outras áreas e questionar o poder político-econômico das oligarquias locais e de empresas agropecuárias e de mineração que estavam se instalando na região e estavam tendo seus territórios contestados pelos movimentos sociais.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram as repercussões desse acontecimento e como ele afetou o movimento sem-terra?

Rogério Rego Miranda: Ao contrário do que pretendiam as oligarquias locais e as empresas do agronegócio e da mineração recém-chegadas à região amazônica, em face das políticas de incentivos fiscais e creditícios concedidos pela União, ainda no governo militar (1964-1985), o massacre de Eldorado dos Carajás ganhou uma grande repercussão e comoção nacional e internacional, contribuindo para uma forte pressão da opinião pública em geral sobre os governos federal, estadual e local com vistas a assegurar o assentamento das famílias sem-terra.

Por esse motivo, em maio de 1996, doze membros da Coordenação Nacional do MST se reuniram com o presidente Fernando Henrique Cardoso e o então ministro do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann. Na ocasião, foi criado o Ministério Extraordinário de Política Fundiária, em virtude do massacre, para discutir pautas acerca da reforma agrária, da responsabilização do governador Almir Gabriel e do ministro da Justiça, além da prisão dos policiais envolvidos nos assassinatos na “Curva do S” e a desapropriação do Complexo Macaxeira (FERNANDES, 1999).

No ano de 1997, foi realizada uma nova vistoria na área pleiteada pelo MST, que dessa vez foi atestada improdutiva. Assim, o Complexo Macaxeira foi desapropriado para fins de reforma agrária e, dessa forma, foi criado, em 19 de junho de 1997, o projeto do Assentamento 17 de Abril, em alusão ao massacre ocorrido nesse dia, com capacidade de abrigar 690 famílias em uma área de 18.090 hectares.

Em homenagem aos que vieram a óbito no dia 17 de abril de 1996, foi criado um monumento na “Curva do S”, onde estão fincados no chão troncos de castanheiras, simbolizando a violência com a qual a reforma agrária é tratada no estado do Pará, mas, ao mesmo tempo, a possibilidade de que esse projeto de reforma agrária se realize ainda que seja por meio da luta, suor e sangue dos sem-terra.

Símbolos do massacre de Eldorado do Carajás (PA) e da resistência e luta dos sem-terra no sudeste paraense, na curva do “S” – Fotos: Rogério Rego Miranda, Eldorado do Carajás, 2016

Nesse contexto, o MST acabou intensificando sua atuação territorial no sudeste paraense e no país como um todo, desenvolvendo a ocupação de mais áreas, as quais foram transformadas em Projetos de Assentamento, conquistas que contribuíram para o fortalecimento e consolidação da atuação territorial do MST na região amazônica e no Brasil.

O Assentamento 17 de Abril acabou se tornando uma grande referência territorial ao MST, seja por sua visibilidade nacional e internacional decorrente do massacre – que acabou definindo o dia 17 de abril como o “Dia Internacional da Luta Camponesa” –, seja por sua importância em termos de continuidade da luta pela terra, devido à mobilização dos assentados no auxílio da construção de novos acampamentos e assentamentos, na organização de caminhadas, marchas etc., e na formação dos quadros de militância.

Serviço de Comunicação Social: Massacres como o do Eldorado do Carajás e o do Carandiru, por exemplo, revelam um grave problema de violência policial no Brasil. Em sua análise, como podemos lutar contra isso? Quais medidas o Estado poderia adotar?

Rogério Rego Miranda: O Massacre de Eldorado do Carajás, assim como vários outros, expõe a face violenta do Estado, que se utiliza do seu aparelho repressivo (Althusser, 2007) para coibir ações contrárias aos interesses dos agentes econômicos e políticos hegemônicos que acabam por igualmente hegemonizar o Estado e a utilizarem dos seus aparelhos privados de hegemonia (Gramsci, 2001) para exercerem seu poder, seja pelo consenso, seja pela dominação.

Assim, um dos horizontes possíveis, mas não o único, como propõe Gramsci (2001), é a necessidade de se disputar e se reapropriar dos aparelhos privados de hegemonia (instituições como escolas, igrejas, sindicatos, polícia etc.). Com isso, podemos questionar os consensos passivos por eles difundidos (com valores que são próprios da classe dominante, mas que se difundem como se fossem de toda a sociedade, tal qual a ideia de manutenção de propriedade privada, ainda que adquirida de maneira irregular) e introduzir consensos ativos (provenientes das experiências e acepções dos sujeitos subalternos, com participação efetiva de todos e todas na formulação desses valores, sem o privilegiamento de uma classe social em detrimento das demais).

Com efeito, a polícia, enquanto um desses aparelhos do Estado, precisaria passar por um processo de reformulação nos seus valores com vistas a atuar no sentido de assegurar a cidadania para todos e todas sem seletividade racial, de gênero e de classe social.

 

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de estado: Nota sobre os aparelhos ideológicos de estado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007.

FERNANDES, Bernardo Mançano. MST: formação e territorialização. São Paulo: Hucitec, 1999.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

MIRANDA, Rogério Rego. A reprodução camponesa a partir da luta pela terra no sudeste paraense: o caso do assentamento 17 de Abril Eldorado dos Carajás, Pará. Revista Campo-Território, Uberlândia, v. 14, n. 33 Ago., 2019. DOI: 10.14393/RCT143303. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/campoterritorio/article/view/47915. Acesso em: 16 mar. 2024.

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Rogério Rego Miranda é doutor em Geografia Humana pela FFLCH e pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PPGDSTU) do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA). Atualmente, é professor adjunto no curso de licenciatura e bacharelado em Geografia da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). Tem experiência na área de Geografia Agrária e Urbana, atuando principalmente nos seguintes temas: desenvolvimento regional; políticas públicas de desenvolvimento rural; agricultura camponesa; relação urbano e rural e movimentos socioterritoriais.