Nascimento de Eric Hobsbawm

Com ideais marxistas e iluministas, Hobsbawm foi um dos historiadores mais importantes do século passado

Por
Gabriela Ferrari Toquetti
Data de Publicação

“Definia-se como ‘um historiador pertencente a minorias atípicas, imigrante na Grã-Bretanha, inglês entre centro-europeus e judeu em toda parte – sentindo-se anômalo até entre os comunistas’, reconhecendo-se apenas na frase definidora que E.M. Forster utilizava para definir um poeta: ‘ele ficava num ângulo ligeiramente oblíquo em relação ao universo’”, de acordo com Elias Thomé Saliba (Arte: Gabriela Ferrari Toquetti/Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

Nascido em 9 de junho de 1917, Eric Hobsbawm foi um dos mais influentes historiadores do século 20. Em obras como Era dos Extremos, escreveu sobre os eventos e conflitos que atravessavam a época em que vivia – e as épocas anteriores a ele, também –, fundamentando-se no seu engajamento marxista. Foi principalmente um autor versátil, capaz de se debruçar sobre inúmeros temas da história da humanidade, sempre com pleno domínio dos fatos.

Além do comunismo, Hobsbawm defendia valores iluministas e lutava pela transformação social, definindo-se como “um antiespecialista em um mundo de especialistas, um intelectual cujas convicções políticas e obra acadêmica foram dedicadas aos não-intelectuais”. Faleceu em 2012 com quase cem anos, e os legados de seu olhar historiográfico ainda vivem.

“Nos seus últimos escritos e entrevistas, deixava bastante claro como estávamos enfrentando os problemas do século 21 com um pífio conjunto de mecanismos políticos, flagrantemente inadequados para resolvê-los. Sua defesa dos valores iluministas era intransigente: acreditava que eles constituíam os únicos alicerces que temos para construir sociedades justas, seja qual for o lugar da terra e para todos os seres humanos. ‘Quando as pessoas não têm mais eixos de futuros sociais acabam fazendo coisas indescritíveis’, escreveu no ensaio Barbárie: manual do usuário”, segundo Elias Thomé Saliba, professor titular do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Confira a entrevista completa:

Serviço de Comunicação Social: Você poderia comentar brevemente sobre quem foi Eric Hobsbawm, para os leitores que ainda não o conhecem?

Elias Thomé Saliba: “O perfil do bom historiador não pode se parecer nem com o carvalho e nem com o cedro, por mais majestosos que sejam, e sim com um pássaro migratório, igualmente à vontade no ártico e no trópico – e que sobrevoa ao menos a metade do mundo”. Ao escrever isto em 2002, Hobsbawm talvez estivesse descrevendo sua própria trajetória. Nascido em Alexandria em 1917, de família judaica – pai do East End londrino e mãe da Áustria dos Habsburgos –, passou a infância em Viena, tornou-se órfão aos 14 anos e foi morar em Berlim com uma tia, entrando para o Partido Comunista alemão (KPD) ainda no fim do curso ginasial. Após a ascensão de Hitler, mudou-se para Londres, onde concluiu os estudos secundários. Em 1936, na febre da Front Populaire em Paris, perambulou na carroceria de um caminhão do cinejornal do Partido Socialista; depois cruzou a fronteira para a Catalunha, logo no início da Guerra Civil Espanhola. No mesmo ano, conseguiu uma bolsa para estudar história no King’s College, em Cambridge: anos mais tarde seria professor na mesma instituição, onde, em 1997, dividiu seu gabinete com o professor Nicolau Sevcenko, da nossa FFLCH. Nos anos da Segunda Guerra, integrou a divisão do exército britânico que cavava trincheiras, atuando ainda como tradutor no setor de inteligência militar. Quando concluiu seus estudos, pagou o aluguel da casa escrevendo uma coluna semanal sobre jazz no New Statesman com o pseudônimo de Francis Newton (textos depois reunidos no livro História Social do Jazz). Em 1962, em sua segunda visita a Cuba, serviu até de tradutor para Che Guevara e o restante da delegação britânica. Quando se aposentou, após anos de docência, recebeu inúmeros títulos honoríficos, entre eles, o Companion of Honor da rainha da Inglaterra.

Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita e os ideais do autor? Quais são suas obras mais importantes e por quê?

Elias Thomé Saliba: Fui “um antiespecialista em um mundo de especialistas, um intelectual cujas convicções políticas e obra acadêmica foram dedicadas aos não-intelectuais”, escreveu em Tempos Interessantes – livro que, até hoje, é um paradigma de como deveriam ser escritas todas as autobiografias.  Apesar do seu precoce – e nunca explicitamente abandonado – engajamento comunista, sempre assumiu um olhar historiográfico desenraizado e pouco afetivo. Definia-se como “um historiador pertencente a minorias atípicas, imigrante na Grã-Bretanha, inglês entre centro-europeus e judeu em toda parte – sentindo-se anômalo até entre os comunistas”, reconhecendo-se apenas na frase definidora que E.M. Forster utilizava para definir um poeta: “ele ficava num ângulo ligeiramente oblíquo em relação ao universo”.

Isso também o tornou um pesquisador suscetível a uma versatilidade incomum. Das rebeldias primitivas ao banditismo social, das rebeliões de trabalhadores pobres ao significado do feriado do primeiro de maio, da máfia aos luddistas e às tradições inventadas, Hobsbawm escreveu sobre os mais diversos temas, revelando insuspeito domínio dos fatos e surpreendentes interpretações. Sua panorâmica história do “triunfo e transformação do capitalismo”, que começa com a dupla revolução – a Primeira Revolução Industrial inglesa e a Revolução Francesa – e termina com a queda dos regimes comunistas na década de 1990, tornou-o mundialmente famoso. Traduzido em centenas de países, estes quatro livros – abrangendo o período da era das revoluções até o breve século 20 – tornaram-se parte da bagagem obrigatória não apenas dos estudantes de humanidades, mas de um público bem mais amplo.

Serviço de Comunicação Social: Quais foram suas principais contribuições para o estudo da história? Em sua análise, como elas repercutem atualmente?

Elias Thomé Saliba: “Este livro se refere a uma época da história que perdeu o rumo e que, nos primeiros anos do novo milênio, com mais perplexidade do que lembro ter visto numa já longa vida, aguarda, desgovernada e desorientada, um futuro irreconhecível”. É assim que Eric J. Hobsbawm define o seu último livro de ensaios, concluído pouco antes de sua morte, em outubro de 2012. Nos seus últimos escritos e entrevistas, deixava bastante claro como estávamos enfrentando os problemas do século 21 com um pífio conjunto de mecanismos políticos, flagrantemente inadequados para resolvê-los. Sua defesa dos valores iluministas era intransigente: acreditava que eles constituíam os únicos alicerces que temos para construir sociedades justas, seja qual for o lugar da terra e para todos os seres humanos. “Quando as pessoas não têm mais eixos de futuros sociais acabam fazendo coisas indescritíveis”, escreveu no ensaio Barbárie: manual do usuário.

No mundo de hoje, o potencial preditivo e de aprendizado dos algoritmos de segunda geração, a desmaterialização e precarização do trabalho e o rápido processo de platamorfização de todos os setores da sociedade forjaram uma nova experiência de temporalidade social, calcada na presentificação, provocando tanto um cancelamento de um passado comum quanto a emersão de futuros inescrutáveis.

“A exaustão do futuro também nos priva do passado”, escreveu Hobsbawm em 2001. O diagnóstico guarda certa atualidade, não?

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Elias Thomé Saliba possui graduação, mestrado e doutorado em História e Livre Docência em Teoria da História pela USP. É professor titular do Departamento de História da USP desde 1990 e membro da Associação Internacional de Historiadores do Humor. É professor de Teoria da História na USP, onde atualmente desenvolve pesquisas na área de história cultural do humor. Publicou ainda artigos e capítulos de livros relacionados à área de Teoria e Epistemologia da História, Metodologia e História da Historiografia. Exerce inúmeras atividades de consultoria em órgãos diversos, instituições de pesquisa (FAPESP, CAPES, CNPq, Instituto Rio Branco do Ministério das Relações Exteriores, MEC e rede SciELO) e editoras e participa de inúmeros conselhos editoriais de publicações especializadas nacionais e internacionais. Atua também na área de divulgação científica, sendo colaborador em vários meios da imprensa escrita, com circulação nacional e internacional. Seus estudos, cursos e seminários mais recentes giram em torno da história cultural do humor no Brasil, envolvendo as diversas linguagens da representação cultural. É líder do grupo de pesquisa Trilhas e Circuitos do Riso no Espaço Público Brasileiro: Comediantes, Humoristas e Pensadores.