Nascimento de Jürgen Habermas

Membro da Escola de Frankfurt, o filósofo e sociólogo alemão tem contribuído para a estabelecer conexões entre diversos âmbitos da sociedade contemporânea

Por
Paulo Andrade e Astral Souto
Data de Publicação

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Arte por: Astral Souto (Serviço de Comunicação Social a FFLCH)

Nascido em 18 de junho de 1929, Jürgen Habermas estudou diferentes esferas do saber, buscando conexões entre elas para estabelecer uma visão mais abrangente da sociedade e cultura contemporâneas.

Essas conexões ajudam a explicar momentos chave da história alemã, europeia e mundial, como totalitarismo, democratização da União Europeia, etc
Entre suas obras mais importantes estão "Mudança estrutural da esfera pública", lançada nos anos 1960, no qual aponta contradições na discussão pública, política e cultural quando estas são conduzidas por meios de comunicação de massa; nos anos 1980, "Teoria da ação comunicativa" aborda as patologias sociais causadas pela colonização da sociedade por meio de relações comunicativas. 

Ele também propõe, nos anos 1990, um conceito de democracia a partir da deliberação de discussões nas esferas públicas, como parlamento, imprensa etc.

Para o pesquisador Luiz Sérgio Repa, do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas (FFLCH), o pensamento de Habermas defende uma retomada dos ideais iluministas e humanistas. "A relevância atual de seu pensamento pode ser medida também a partir do contexto em que vivemos, no qual emergem com força o obscurantismo e o negacionismo – como testemunhamos na funesta recusa da vacina, com as consequências fatais documentadas –, mas também um relativismo difuso em que tudo se torna 'narrativa'".

Confira a entrevista com o professor Luiz Sérgio Repa para o Serviço de Comunicação Social da FFLCH:

Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Poderia comentar um pouco sobre quem é Jürgen Habermas para as pessoas que ainda não o conhecem?

Luiz Sérgio Repa: Jürgen Habermas, nascido em 1929, é um dos maiores filósofos e teóricos da sociedade da nossa época. Ele representa um tipo de pensador que se tornou raro a partir da segunda metade do século passado, pois tem contribuído para refletir sobre
problemas contemporâneos em diversos âmbitos: na ética, na ciência, na arte, na política, no direito. Enquanto a maior parte dos grandes pensadores do século XX se enraízam em uma ou outra dessas esferas de saber, Habermas busca estabelecer conexões, passagens, entre elas, de modo a chegar uma visão mais abrangente da sociedade e da cultura contemporânea, sem, no entanto, perder as especificidades dessas esferas. Ao mesmo tempo, ele tem exercido desde o início um papel de máxima relevância como intelectual, intervindo em momentos chave da história da Alemanha, da Europa e mesmo do mundo, a respeito de assuntos como a tentativa de relativizar a experiência do totalitarismo, a democratização da União Europeia e da ONU, a manipulação genética etc.
Ele se tornou uma referência mundial nos anos 1960 ao escrever o livro Mudança estrutural da esfera pública, em que aponta para as contradições da discussão
pública, política e cultural, que surgem na medida em que ela é conduzida por meios de comunicação de massa. O ideal de um público que critica a cultura e o poder é
minado então pelo consumo de produtos culturais, e a esfera pública se torna um palco de encenação e demonstração de poder.
No começo dos anos 1980, ele publica sua obra mais conhecida, a Teoria da ação comunicativa, na qual sustenta que as sociedades contemporâneas são marcadas por
uma série de patologias sociais causadas pela intervenção, “colonização”, dos sistemas econômico e político-administrativo no que ele chama de mundo da vida, a
sociedade do ponto de vista da interação simbólica, em que os indivíduos se socializam por meio de relações comunicativas.
E nos anos 1990 ele vai propor, com base nessa teoria da ação comunicativa, um conceito de democracia arquitetado sobre a ideia de deliberação. Para Habermas, a
legitimidade e a capacidade da democracia em criar formas de vida emancipadas têm a ver sobretudo com a qualidade deliberativa das discussões na esfera pública,
no parlamento, na imprensa, no mundo da vida de maneira geral.
A relevância atual de seu pensamento pode ser medida também a partir do contexto em que vivemos, no qual emergem com força o obscurantismo e o negacionismo –
como testemunhamos na funesta recusa da vacina, com as consequências fatais documentadas –, mas também um relativismo difuso em que tudo se torna
“narrativa”. Habermas defende em sua obra a retomada dos ideais do iluminismo e do humanismo, de sorte que os ganhos da modernidade – a arte moderna, as ciências
naturais e humanas autônomas e o universalismo ético-jurídico – possam conduzir a uma configuração de fato racional – não apenas técnica – do mundo da vida. Para
tanto, ele insiste, é preciso ao menos levantar barreiras contra as duas maiores tendências do capitalismo, a monetarização e a burocratização da vida.


Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Fale brevemente sobre a análise de Habermas sobre a democracia nas sociedades capitalistas modernas

Luiz Sérgio Repa: As sociedades capitalistas modernas são analisadas por Habermas a partir da ideia de “colonização sistêmica do mundo da vida”, quer dizer, ele considera que o capitalismo, contando aí as ações administrativas do Estado, suscita a monetarização e burocratização daqueles âmbitos da vida que necessitam da linguagem e da cultura para se reproduzir. O resultado disso é uma série de patologias, como a anomia social, a perda de sentido dos fenômenos culturais, a alienação psíquica etc., já que a lógica simbólica da reprodução social é substituída pela lógica instrumental,sistêmica e, em última instância reificante, do dinheiro e do poder.
A democracia tem um papel chave nesse diagnóstico, porque ela desenvolve uma tensão indissolúvel com o capitalismo por inteiro. Se este se estrutura por meio de uma linguagem especial e abstrata como o dinheiro, a democracia se baseia na linguagem natural dos mundos da vida, nos valores éticos e políticos, nos procedimentos de deliberação da esfera pública. Daí que a ordem capitalista precise sempre, de algum modo, despolitizar a democracia, a fim de proteger-se contra ela. Essa despolitização sistemática é abordada por Habermas em diversos momentos de sua obra, dependendo da situação histórica. Dos anos 1960 a 1980, ele acusava uma tendência de privatismo civil, de reduzir a cidadania aos parâmetros do consumidor privado. Atualmente, a situação seria mais grave para Habermas, pois as redes sociais, baseadas em plataformas e dinamizadas de acordo com algoritmos, criam um problema estrutural para a esfera pública, uma nova mudança da esfera pública.
Ela se fragmenta em bolhas, em esferas nem privadas nem públicas, encapsuladas, espaços de autoapresentação narcisista, reafirmando sistematicamente os mesmos
valores, sem discussão, sem divergências. Com isso, a democracia se enfraquece na sua capacidade de apreender e deliberar sobre os conflitos e sobre os verdadeiros 
problemas da sociedade capitalista moderna, como a monetarização das relações de vida, a exclusão social, o racismo, o sexismo, a recrudescimento de movimentos
anticivilizatórios.
 

Serviço de Comunicação Social da FFLCH: Fale resumidamente sobre o que é a “ação comunicativa” e comente as principais diferenças da teoria “razão instrumental” de Max Horkheimer.

Luiz Sérgio Repa: A ação comunicativa é um conceito crucial da teoria habermasiana da sociedade. Ela representa um tipo de ação social cotidiana por meio da qual os indivíduos coordenam seus projetos a partir de um certo entendimento compartilhado sobre o que eles pretendem com suas falas, manifestadas uns para os outros. De maneira mais corriqueira, esse entendimento é pressuposto, já é dado como um saber de fundo, como o sentido de certas regras gramaticais e semânticas, o sentido de regras sociais elementares, o sentido de certos valores sociais etc. Esse saber de fundo constitui o mundo da vida dos indivíduos em suas falas cotidianas. Mesmo uma
simples manifestação de dor física é compreendida a partir de um saber de fundo, por exemplo, a respeito de qual expressão linguística é adequada para manifestar dor.
Porém, a ação comunicativa traz consigo um potencial de crítica considerável, porque os indivíduos só realizam suas operações recíprocas porque confiam na possibilidade de questionar as razões de um possível desvio, de uma falha, de uma dúvida. A ação social só é possível com base nessa confiança. Aquele entendimento
de fundo, pressuposto, pode assim ser questionado a qualquer momento, porque a validade de tudo o que é dito depende de poder ser aceito com um sim – mas isso
significa um não a um não sempre possível. Nesse caso, surge a necessidade de um novo entendimento. Para Habermas, em sociedades modernas, laicas, em que o
tradicionalismo se atenua, esse potencial crítico é atiçado e pode até mesmo ganhar densidade na forma de movimento social.
De acordo com Habermas, a ação comunicativa se ergue sobre o entendimento a respeito de diversas dimensões de validade. Ela tem uma dimensão de conhecimento
e verdade, de expressividade subjetiva e estética, de aceitabilidade ética e moral no que concerne ao que é dito. Uma das teses mais fort/;es da teoria da ação
comunicativa é aquela segundo a qual qualquer proferimento pode ser questionado sempre por três aspectos de validade: se ele é verdadeiro, se o sujeito se manifesta
veraz e adequadamente, se o que é dito é correto no contexto de valores e normas. A partir daí ele pode reconstruir um conceito de racionalidade comunicativa dotada
dessas três dimensões.
Para Habermas, sua teoria da racionalidade comunicativa se diferencia do conceito de razão instrumental de Max Horkheimer pelo fato de que este realiza uma crítica
correta à instrumentalização da natureza e da sociedade, mas cai em contradição ao não poder contar com as diversas dimensões da racionalidade que são afetadas por
essa reificação. Horkheimer não teria conseguido discernir critérios de uma razão mais ampla, mais complexa, a partir do qual se pode perceber essa instrumentalização como distorção da razão. Se a razão é apenas instrumental, como é possível uma crítica racional da instrumentalização, da reificação? Este é o teor da crítica de Jürgen Habermas a Max Horkheimer.

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O professor Luiz Sérgio Repa é doutor em Filosofia pela USP e livre docente no Departamento de Filosofia da FFLCH. Foi coordenador do projeto USP-Humboldt "Critical Theory goes global".