Antropólogo que oferece oficinas audiovisuais em aldeias no Mato Grosso analisou filmes sobre temas como jogos e rituais tradicionais e as relações entre humanos e não humanos
Por meio da linguagem audiovisual, os povos indígenas Manoki e Myky encontraram uma forma de compartilhar suas práticas e histórias. O engajamento dos jovens com o audiovisual levou à reativação de tradições desses povos, que vivem no Mato Grosso, à criação de um coletivo de cinema e à produção de alguns filmes premiados. Foi a partir do contato e relação do pesquisador André Lopes com esse processo que nasceu a tese de doutorado Ijã Mytyli: Os Manoki e os Mỹky em seus novos caminhos-histórias audiovisuais, vencedora do Prêmio Tese Destaque USP 2024 na categoria Inovação.
Formado em Ciências Sociais, André Lopes trabalha desde 2008 com os Manoki no estado do Mato Grosso e, desde 2009, auxilia no processo de filmagem e produção de filmes, oferecendo oficinas audiovisuais. O primeiro documentário, O Batizado dos Meninos Manoki, foi produzido em 2009. O filme apresenta o ritual de iniciação dos jovens à vida adulta, que não era feito há 14 anos.
“A possibilidade de gravar essa cerimônia foi um dos fatores que contribuíram para a reativação dela. Esse foi o primeiro trabalho e depois a gente continuou fazendo vídeos. O mestrado e doutorado foram formas de continuar a relação de colaboração e parceria com essas pessoas nas aldeias”, conta Lopes.
De acordo com o antropólogo, o seu doutorado é uma ampliação de seu mestrado, que também consistiu no trabalho de pesquisa e produção audiovisual, porém restrito aos indígenas Manoki. Após uma visita à aldeia Myky, ele decidiu expandir sua pesquisa e oferecer as oficinas para essa comunidade. Sob orientação do professor Renato Sztutman, o pesquisador defendeu sua tese de doutorado em Antropologia Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP em 2023.
Protagonismo indígena
O pesquisador explica a importância do uso de ferramentas pelos povos indígenas para que eles criem o próprio cinema. “A ideia é que eles se apropriem dessas ferramentas audiovisuais para que eles continuem sendo protagonistas das suas próprias histórias. Para que eles mesmos contem as histórias de seus povos. Até então, a experiência que eles tinham era de pessoas de fora que iam e falavam sobre eles ou os gravavam, levavam embora e não retornavam à comunidade. Eles não tinham muito controle de como esse material era exibido e distribuído”, conta Lopes.
Durante a pesquisa, os jovens dessas comunidades criaram, junto com o antropólogo, o Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Mỹky para que pudessem dar continuidade às produções. “A criação de um coletivo de cinema indígena foi uma proposta que a gente criou juntos. A gente reuniu os jovens desses dois povos para dar uma sinergia maior a essas produções e conseguimos, ao longo dos anos, financiamento para que essas comunidades também tivessem equipamento. Então, hoje as três maiores comunidades têm câmeras profissionais, microfone e tripé, eles estão bem equipados para continuar a fazer essas atividades audiovisuais”, explica o pesquisador.
A pesquisa de doutorado de Lopes se concentrou em estudar os temas que foram retratados nos filmes feitos pelos indígenas. O antropólogo definiu as abordagens em parceria com os moradores das aldeias. “Os indígenas escolhiam o que eles iam filmar. À medida que eles foram escolhendo os assuntos da pesquisa, a gente foi aprofundando os temas antropologicamente. Então, a escolha dos temas da tese foi feita em parceria com esses jovens”, diz.
Narrativas audiovisuais
Com apoio do Laboratório de Imagem e Som em Antropologia (Lisa) da USP, Lopes produziu três longas-metragens e cinco curtas-metragens dirigidos por indígenas, que fazem parte de sua pesquisa. O objetivo foi compreender os usos das imagens audiovisuais e os significados das apropriações dessa linguagem pelos povos indígenas. Para isso, ele usa o conceito de cosmopolítica, que se refere aos vínculos entre seres humanos e não humanos em uma concepção de mundo que não divide cultura e natureza como universos separados.
“A circulação de imagens e sons entre povos indígenas opera mediações interétnicas, entre indígenas e não indígenas, ou mediações intergeracionais, entre diferentes grupos dentro de uma mesma sociedade. Mas, muitas vezes, os filmes indígenas trazem não só os humanos que habitam esse plano, mas seres que habitam outros mundos ontologicamente diferentes e com os quais eles devem ter uma diplomacia cosmopolítica”, pontua.
Segundo o pesquisador, o uso do vídeo pelos povos indígenas funciona como uma mediação cosmopolítica amplificada. “O cinema indígena opera uma mediação cosmopolítica amplificada porque eles também querem passar essas mensagens que vêm desses mundos espirituais múltiplos. Eles querem passar essa mensagem para os não indígenas, que desconhecem a existência desses seres”, complementa Lopes.
Entre os filmes que entraram na pesquisa, dois retratam os jogos de bola de cabeça dos Manoki e Myky, um tipo de futebol jogado exclusivamente por homens, em que apenas a cabeça pode encostar na bola. O filme Ãjãí: o jogo de cabeça dos Myky e Manoki apresenta essa prática e os preparativos para o jogo e foi ganhador do prêmio de melhor documentário longa-metragem no Cine Kurumin.
Nesse jogo, os participantes devem atingir o campo do time adversário sem que eles consigam rebater a jogada. Para obter o ponto, os times devem fazer três jogadas sucessivas vitoriosas. As competições podem durar até três dias, já que as disputas só terminam quando todas as apostas, prêmios disputados, são ganhas. Os prêmios são variados, como bens, sementes e elementos de cultivo. Apesar de não participarem em campo, as mulheres têm um papel central nos jogos porque preparam as apostas e a alimentação para os dias de festa.
As outras produções que compõem a pesquisa são Os espíritos só entendem o nosso idioma, Tecendo nossos caminhos, Piny Pyta: a força de nossas medicinas, Pinjawuli: o veneno me alcançou e Jãkany Ãkakjey: nossos alimentos. As duas primeiras mostram a resistência do povo Manoki e a esperança de voltarem a falar a sua língua indígena, pois atualmente apenas seis anciões da comunidade ainda falam o idioma, que é uma forma de se comunicarem com os espíritos. O terceiro filme apresenta os meios de resistência dos indígenas durante a pandemia. Já Pinjawuli é baseado em um sonho do próprio diretor, Bih Kezo, e faz uma crítica à contaminação das lavouras pelo uso de agrotóxicos. Jãkany Ãkakjey discute a relação entre vivos e mortos e os preparativos na roça comunitária para a realização do ritual sagrado Yetá.
*Texto publicado originalmente em Jornal da USP, sob autoria de Gabriela Varão