Nobel: um prêmio cercado de prestígio e controvérsias

Apesar de algumas polêmicas históricas, o Nobel reconheceu diversos avanços positivos em diferentes áreas, incluindo os laureados deste ano

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Redação
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O Nobel se consolidou, em parte, pelo valor financeiro elevado e em dinheiro, algo pouco usual em premiações do gênero – Foto: Adam Baker – Wikipedia

Os Prêmios Nobel são um marco de prestígio internacional, celebrados por suas contribuições ao progresso humano. Idealizado por Alfred Nobel em 1895, um ano antes de sua morte, e concretizado pela primeira vez em 1901, é, atualmente, um conjunto de seis prêmios, que envolvem as áreas da Paz, Literatura, Medicina, Física, Química e Ciências Econômicas. Seu objetivo é reconhecer pessoas ou instituições que realizaram pesquisas, descobertas e contribuições notáveis para a humanidade.

No entanto, como argumenta Gildo Magalhães, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e coordenador do Grupo de Pesquisa Khronos do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, o mérito das premiações nem sempre é isento de questionamentos. Para ele, o Nobel se consolidou, em parte, pelo valor financeiro elevado e em dinheiro, algo pouco usual em premiações do gênero, mas também carrega uma forte dimensão política que influencia as decisões e levanta debates sobre sua imparcialidade. “O que tem de merecimento no Prêmio Nobel é muito discutível, e isso dá para ver historicamente”, comenta.

Segundo o especialista, os critérios adotados para escolher laureados frequentemente foram além da qualidade científica ou literária. Ele cita, como exemplo, os debates históricos sobre o Nobel de Literatura, evidenciando que figuras como Liev Tolstói foram preteridas por questões políticas — o autor russo viveu até 1910 e, em seus últimos anos de vida, já era uma figura incontornável não apenas da literatura russa, mas da mundial. Apesar de sua relevância literária inquestionável, Magalhães explica que o escritor enfrentou resistência devido às suas ideias socialistas. “Isso influenciou muito mais do que a qualidade do que ele escrevia”, destaca.

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Gildo Magalhães – Foto: Leonor Calasans/IEA

Na ciência as controvérsias também são marcantes. O docente lembra a exclusão de Rosalind Franklin na premiação pela descoberta da dupla hélice do DNA, atribuída apenas a Watson, Crick e Wilkins, além de ressaltar casos brasileiros: “Carlos Chagas foi indicado mais de uma vez e, apesar de ser o descobridor de todo o ciclo da doença de Chagas, desde o vetor até o agente, não foi agraciado por intriga de próprios concorrentes brasileiros dele. O caso do César Lattes é sempre lembrado exatamente porque ele deveria ter recebido, como parte da equipe que descobriu o Méson Pi, o prêmio. E não foi por questão política, outra vez”.

Magalhães entende que esses prêmios estão cercados de controvérsia, como o Nobel da Paz, que já premiou promotores de guerra. Ele reforça a importância de olhar para o Nobel com cautela, ponderando sua relevância sob a ótica de uma globalização e de critérios considerados “politicamente corretos”. Apesar das críticas, o historiador reconhece o impacto duradouro e positivo de algumas premiações, que muitas vezes só tiveram o seu reflexo reconhecido anos depois, como a descoberta do transistor, o impacto dos estudos sobre o genoma humano e até mesmo a relevância literária de Rudyard Kipling, laureado relativamente jovem e autor do livro sobre a história de Mowgli (The Jungle Book).

Literatura, Paz e Economia

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Yun Jung Im Park – Foto: Arquivo pessoal

Neste ano, o Nobel de Literatura também trouxe impactos significativos ao premiar a escritora Han Kang, da Coreia do Sul, “por sua prosa poética intensa que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana”, como informou a Academia Sueca. Conforme Yun Jung Im Park, professora do Departamento de Letras Orientais da FFLCH, o laurel representa a primeira apreciação de um autor coreano, além de ser a primeira mulher asiática a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura. “É interessante porque nós estamos vendo um movimento feminista mundialmente, mas na Coreia, especificamente, tem sido muito forte. É como se o Nobel viesse coroar esse movimento, de um lado a causa feminista, mas o reconhecimento mundial do valor cultural da Coreia”, comenta.

De acordo com a especialista, a Academia Sueca levou em grande consideração três obras: A Vegetariana (2007), Atos Humanos (2014) e I do Not Bid Farewell (2021) — ainda sem tradução para o português. Ela explica que os últimos dois livros são sobre traumas históricos, cuja interpretação divide opiniões na Coreia, muito polarizada. “É como se a comunidade acadêmica internacional estivesse chancelando uma visão histórico-política dela. Ela toma partido não da posição política em si, mas daqueles que sofreram o incidente, do ponto de vista das vítimas. Então, a importância da premiação é que ela traz essas questões históricas, que são ‘feridas mal curadas’, para o mundo ver”, afirma.

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Kai Enno Lehmann – Foto: Reprodução/ResearchGate

Essa importância histórica ainda é vista no Prêmio Nobel da Paz, principalmente pelo contexto geopolítico. De acordo com Kai Enno Lehmann, professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP, o prêmio é um reconhecimento do trabalho feito em torno de um problema, e o histórico político das guerras mundiais traz ao Nobel uma importância não somente prática, mas simbólica de pessoas e organizações que se esforçam nessa questão das relações internacionais. “Esse prêmio recebe, politicamente, em termos de cobertura, sempre mais atenção do que os demais, que são muito especializados. O Nobel da Paz é uma coisa muito mais ampla e tem um aspecto muito mais normativo”, complementa.

Mesmo dentro desse contexto histórico, o cenário de guerras ainda é uma pauta muito atual, refletida no vencedor do Nobel de 2024 — a organização japonesa Nihon Hidankyo, formada por sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki e que luta pela abolição das armas nucleares. Motivada por conflitos atuais — como o conflito entre Rússia e Ucrânia —, a premiação visa a atingir um simbolismo importante a favor de preservar a memória dos dois lançamentos de armas nucleares que houve na história. “Eu espero que seja um recado de que estamos cientes e valorizamos aqueles que trabalham para que isso nunca mais aconteça, diante do cenário atual que indica que talvez possa acontecer de novo”, conclui.

No Prêmio Nobel de Ciências Econômicas, concedido a Daron Acemoglu, James A. Robinson e Simon Johnson, destacou-se a relevância das contribuições sobre o papel das instituições no desenvolvimento econômico das nações. Segundo Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP, a pesquisa dos vencedores mostrou como instituições inclusivistas, que promovem benefícios para toda a sociedade, são cruciais para o crescimento, enquanto instituições extrativistas, que privilegiam elites, perpetuam o atraso. Um exemplo marcante é a análise das Coreias: enquanto a do Sul prosperou com instituições inclusivas, a do Norte ficou limitada por estruturas extrativistas.

Os estudos premiados também resgataram a influência do colonialismo e das características culturais na formação das instituições, comparando países de diferentes regiões, da África até o Brasil. Embora a importância das instituições no desenvolvimento econômico não seja uma novidade — tendo sido introduzida por Douglas North, também laureado com o Nobel —, os vencedores de 2024 inovaram ao analisar profundamente como elites moldam instituições para benefício próprio ou coletivo. “Os três agraciados estudaram a fundo países, e a grande contribuição deles, maior ainda do que perceber a importância das instituições, foi a de perceber que as instituições podem ser dominadas por elites, que vão definir para que rumo vai o país”, opina.

Física, Química e Medicina

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Henrique Eisi Toma – Foto: Pedro Bolle / USP Imagens

No campo da ciência, o Prêmio Nobel é caracterizado, muitas vezes, por representar o ponto máximo do reconhecimento de um cientista, gravando na história nomes como Albert Einstein, Marie Curie — primeira mulher a ganhar o Prêmio Nobel, inclusive em dois campos científicos diferentes —, Linus Pauling, entre outros. Neste ano, os Prêmios Nobel de Física e Química trouxeram um ponto em comum que reflete o momento histórico atual: a inteligência artificial (IA). “Os dois Prêmios Nobel tratam do mesmo assunto, o que é muito bacana. Eles acertaram direitinho, está um timing perfeito”, aponta Henrique Eisi Toma, professor do Instituto de Química (IQ) da USP. Enquanto a premiação em Física reconheceu pessoas que trabalharam e tornaram viável o uso da inteligência artificial para outras áreas — John Hopfield e Geoffrey Hinton —, o Nobel de Química foi uma aplicação desse trabalho, interligando as gratificações.

Toma comenta que durante seu pós-doutorado no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) conheceu Hopfield, figura central na concepção das redes neurais artificiais. Segundo o especialista, o laureado trouxe uma abordagem que lembra um neurônio, ideia revolucionária que permitiu modelar matematicamente o processamento de informações, conferindo peso a diferentes variáveis para gerar resultados. “A rede neural sempre existiu, mas ele aplicou esse tipo de estratégia primeiro estudando transferência eletrônica biológica. Então Hopfield desenvolveu toda a teoria matemática em um plano só e fez um emaranhado de articulações, e funcionou muito bem”, explica.

O trabalho de Hopfield abriu caminho para avanços posteriores, como os de José Onuchic — brasileiro orientado pelo físico e que trabalhava com rede neural, procurando transferência eletrônica em biomoléculas — e Hinton, laureado que ampliou a teoria para aplicações mais complexas e universais. “É isso que nós estamos usando hoje, uma rede neural não de um plano, como Hopfield fez, mas de multiplanos. Uma rede neural mais poderosa, inspirada nas ideias do Hopfield. Hinton trabalhou na parte de estender a rede neural para um plano universal mais amplo, com ideias que acabaram deslanchando a inteligência artificial”, informa.]

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Shaker Chuck Farah – Foto: Luiza Caires

Já o Prêmio Nobel de Química foi dado para Demis Hassabis, John Jumper e David Baker por desenvolverem métodos computacionais para predizer a estrutura de proteínas a partir das suas sequências e para usar esta capacidade de predição para desenhar novas proteínas com novas funções, como relata Shaker Chuck Farah, professor do IQ. “Isso é importante porque as proteínas participam intimamente em quase todos os processos dentro das nossas células. Logo, somente entendendo como as proteínas funcionam cientistas podem racionalmente desenhar fármacos contra doenças infecciosas, desenvolver organismos geneticamente modificados com aplicações em agricultura e medicina e sentirem confiança que um dia poderiam intervir para reverter os efeitos de doenças hereditárias e curar as diferentes formas de câncer”, afirma.

Farah explica que as proteínas são, provavelmente, as moléculas mais complexas que existem no nosso planeta, o que gera muita dificuldade para determinar suas estruturas experimentalmente — requerem instrumentos altamente sofisticados e muito caros. “É neste ponto onde as contribuições do Baker, Hassabis e Jumper deram um salto para cima. Aproveitando do aumento exponencial no número de sequências de proteínas conhecidas nos últimos anos e do aumento de poder computacional disponível, estes pesquisadores empregaram algoritmos de modelagem computacional e inteligência artificial para predizer a estrutura de milhões de proteínas com uma precisão que até recentemente era inimaginável”, esclarece. Conforme o especialista, o pulo de qualidade nos modelos permite novas hipóteses sobre o funcionamento das proteínas em estudos de todas as áreas de biologia e medicina.

Sobre o Nobel de Fisiologia e Medicina, Carlos Alberto Moreira Filho, professor da Faculdade de Medicina (FM) da USP, entende que o prêmio não apenas distingu

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Carlos Alberto Moreira Filho – Foto: Linkedin

e carreiras notáveis, mas principalmente cientistas com contribuições inovadoras que, em muitos casos, fizeram avançar de forma significativa o conhecimento em um determinado campo da ciência. Em 2024, Victor Ambros e Gary Ruvkun foram laureados pela descoberta de como pequenas moléculas chamadas microRNAs — que desempenham um papel regulador importante na adaptação do organismo às condições ambientais e na resposta às doenças e aos medicamentos — governam o funcionamento dos genes em organismos multicelulares, incluindo o homem.

O docente explica que Ambros e Ruvkun desvendaram o papel dos microRNAs ao investigar os mecanismos de diferenciação celular, no qual controlam a expressão dos genes de forma distinta em diferentes órgãos e tecidos, essenciais para o desenvolvimento e funcionamento de um organismo multicelular. “O estudo de miRNAs na saúde é um campo florescente de investigação em todo o mundo, inclusive no Brasil e na USP. A detecção cada vez mais precisa e quantitativa de miRNAs em diferentes tecidos e fluidos orgânicos permite validar essas moléculas como marcadores diagnósticos e de resposta ao tratamento em diferentes patologias”, completa.

*Por Davi Caldas com supervisão de Paulo Capuzzo e Cinderela Caldeira

Texto original: https://jornal.usp.br/radio-usp/nobel-um-premio-cercado-de-prestigio-e-…