Pesquisa mergulhou no acervo do geógrafo atrás dos diálogos que o intelectual estabeleceu com o tema da integração da população negra na sociedade brasileira
O geógrafo Milton Santos foi um dos maiores pensadores, autor de uma importante obra que tratou de temas como o espaço urbano e as migrações. Apesar das contribuições de Milton Santos ao pensamento social brasileiro serem bem reconhecidas, a negritude do autor muitas vezes é uma questão que passa batida no debate acadêmico. Esse silêncio chamou a atenção de Tadeu Batista Alves durante sua graduação em Geografia, que cursou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP entre os anos de 2007 e 2013. Anos depois, ele levou essa inquietação para o mestrado, procurando entender como se deu esse processo de silenciamento da negritude de Santos.
“Pensei muito durante a graduação como a voz negra de Milton Santos, muitas vezes, não era percebida, ou passava ao redor do processo da produção acadêmica de seus leitores e intérpretes”, conta Alves, que defendeu a dissertação Milton Santos: Narrativas em construção sobre ser negro no Brasil ao final do século XX no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, com orientação do professor Jaime Tadeu Oliva.

O trabalho analisa o legado de Milton Santos como um homem negro que estabeleceu conexões e diálogos com a temática da população negra. Mas também olha para a recepção de suas ideias pela academia, considerando que a sociedade brasileira se desenvolveu a partir de uma dinâmica colonial e escravocrata.
Para Alves, Milton Santos é, acima de tudo, um importante brasileiro e um intelectual que tentou entender não só o Brasil e o mundo de sua época, mas também o negro e sua verdadeira inclusão ao Brasil. “Ele identificava a integração do negro como uma questão central para sua verdadeira cidadania na sociedade brasileira”, afirma.
O pesquisador analisou entrevistas, depoimentos e trabalhos acadêmicos que Milton Santos produziu entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990, com foco nas questões da população negra e sua cidadania no Brasil. Também examinou em seu acervo, mantido no arquivo do IEB, fotografias e textos que ele identificava como leituras obrigatórias sobre a população negra no Brasil e sua integração na sociedade. “Meu objetivo foi entender Milton Santos como um personagem do Brasil, revisitando sua negritude e sua participação na universidade para melhor entender a realidade do negro no século 20”, declara Alves.
Trajetória
Milton Santos nasceu no dia 3 de maio de 1926, na cidade de Brotas de Macaúbas, na região da Chapada Diamantina, na Bahia. Mudou-se mais tarde para Salvador, para estudar no Instituto Baiano de Ensino. Ao término do segundo grau, demonstrou interesse pelas ciências humanas e fez a opção pelo curso de Direito na Universidade Federal da Bahia. Influenciado desde o ensino secundário pelas obras do médico, professor e geógrafo pernambucano Josué de Castro, desenvolveu grande interesse por temas centrais da geografia, como paisagens, regiões, cidades e migrações.
Sua trajetória no Brasil do século 20, com suas heranças históricas e condições sociais específicas, é importante para uma compreensão mais profunda das condições do negro e da negritude. A formação acadêmica de Santos está principalmente ligada ao período de 1930 a 1945, a era Vargas, na qual a ideia de “democracia racial” foi utilizada para justificar e perpetuar o racismo institucional.
“É importante falar sobre sua vida e por onde ele passou, de onde ele surgiu e com quem teve relações, pois sua trajetória, de certa maneira, mostra um caminho importante para compreendermos o personagem e como ele produziu a sua obra. Inclusive, podemos observar mudanças, bem sutis, sobre a questão da negritude que em um segundo momento identificamos em sua obra”, ressalta Alves.
Autor de uma complexa produção acadêmica, Milton Santos se preocupava com a renovação e reconstrução das abordagens da geografia no Brasil e no mundo. Livros como O Trabalho do Geógrafo no Terceiro Mundo e Espaço e Sociedade , ambos de 1979, Pensando o Espaço e o Homem, de 1982, Espaço e Método, de 1985, e Metamorfoses do Espaço Habitado, de 1996, confirmam essa inquietação.
No final da década de 1980 e no início dos anos 1990, Milton Santos alcançou o auge midiático e tornou-se um pensador não só da geografia, como também um analista de questões sobre a cidadania brasileira, a desigualdade e os problemas do Brasil que resultam na prática do racismo.
“Muitas vezes foi dito que Milton Santos não discutia a questão do negro no Brasil, mas quando ele está abordando a cidadania, ele está expondo exatamente como o negro deve ser inserido na sociedade brasileira. Nesse ponto eu destaco como seu pensamento é vivo, pois trata de questões como o pertencimento ao espaço e a situação dos corpos negros, ou os diferentes corpos na cidade”, comenta Alves.
Silenciamento
Alves descreve Milton Santos como um grande ator da representatividade negra dentro da universidade, que sempre colocou em pauta a questão da negritude, mas foi silenciado por ser interlocutores. “Um exemplo desse silenciamento ocorreu quando ele foi homenageado pela USP e em seu discurso falou sobre a necessidade de ampliar o acesso da população negra à Universidade. Quando vamos ver se essa menção teve algum destaque, achamos somente notas de rodapé sobre o assunto abordado por ele”, diz o pesquisador.
O ponto mais importante para Milton Santos era a desconstrução do mito da democracia racial. Ele defendia que a integração do negro no Brasil só ocorreria se houvesse, de fato, sua real cidadania. “Para Milton Santos, o negro só será um cidadão quando ele de fato pertencer ao Brasil. Usam a democracia para integrar, mas na verdade não integram”, conclui Alves.
*Por Marcos Santos
Texto original: https://jornal.usp.br/diversidade/pensamento-de-milton-santos-sobre-a-q…