No mês da visibilidade trans, a busca pelo ingresso e permanência de corpos trans nas universidades públicas é destaque
O Dia Nacional da Visibilidade Trans, comemorado em 29 de janeiro, busca visibilizar as lutas e reivindicações da comunidade trans, além de combater a violência. “O dia da visibilidade trans no Brasil permite reconhecer os direitos e as atuações das pessoas trans envolvidas na transformação social e no combate à transfobia. E não menos importante, valorizar a memória e a história de quem veio antes de nós e que puderam garantir que nós estivéssemos aqui.”, ressalta Silvana de Souza Nascimento, vice-diretore da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Em 2004, o Ministério da Saúde, com apoio de ativistas e organizações como a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), realizou a primeira campanha nacional contra a transfobia no Brasil. Chamada “Travesti e Respeito”, a ação tinha o objetivo de conscientizar educadores e profissionais da saúde e representou um marco na história do movimento. Desde então, janeiro se tornou o mês da visibilidade trans e o dia 29 uma celebração nacional.
Duas décadas depois desse marco, é possível identificar avanços significativos para a comunidade trans, como a garantia do uso do nome social e o enquadramento de condutas transfóbicas na lei de discriminação racial. Em 2012, o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a realizar tratamentos hormonais e cirurgias de redesignação sexual. Em 2014, foi permitido o uso do nome social no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) por candidatos trans. Em 2022, entrou em vigor o CID-11, Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS), que deixou de considerar a transgeneridade como um transtorno mental.
Mesmo com essas conquistas, o Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo pelo 16º ano consecutivo, de acordo com dados da Transgender Europe (TGEU). O dossiê da Antra, de 2023, mapeou 145 assassinatos, sendo 136 contra travestis e mulheres trans.
Na educação, o índice de evasão escolar de alunes trans é crescente, muitas crianças e adolescentes sentem-se ameaçados nos ambientes de ensino. Um estudo realizado pelo Grupo Dignidade em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e o Programa Conjunto das Nações Unidas HIV/AIDS (UNAIDS) apontou que 77,5% de crianças e adolescentes trans, entre 5 e 17 anos, sofreram bullying na escola. A pesquisa ouviu 120 famílias de 62 cidades brasileiras e, além de violência física, foram consideradas também agressões emocionais, verbais e cyberbullying.
Práticas transfóbicas em ambientes de ensino prejudicam o desempenho de alunes, levam à depressão e ideação suicida e potencializam o abandono dos estudos. De acordo com levantamento feito pela Rede Nacional de Pessoas Trans, em 2017, mais de 80% das pessoas trans não completaram o ensino médio.
Acesso à educação
A evasão escolar é o ponto de partida para entender os desafios de ingresso de pessoas trans nas universidades públicas. O mapeamento feito pela coletiva de pesquisa e extensão Corpas Trans da USP, junto aos dados do Anuário Estatístico USP de 2022, revelou que as pessoas trans correspondem a 0,15% do corpo discente na graduação, 0,04% da pós-graduação, 0,04% do corpo docente e 0,02% do corpo técnico.
Como forma de promover a permanência dos poucos ingressantes trans, grupos de alunes se unem para acolher e debater pautas da comunidade. “Para além de ser uma coletiva, um agrupamento de pessoas, nós visamos lutar pelo nosso ingresso aqui dentro, pelas nossas demandas aqui dentro e também fora da universidade.”, explica Ídris Paes, aluno de Ciências Sociais e representante discente da Coletiva Intertransvestigênere Xica Manicongo da USP.
A Coletiva Xica Manicongo da USP agrega mais de 200 pessoas e já realizou diversos eventos, calouradas trans e, atualmente, dirige a campanha Caravana por Cotas Trans, em parceria com o Diretório Central dos Estudantes (DCE) Livre da USP. A iniciativa tem o intuito de conscientizar os alunos em todos os campi sobre a importância da implementação de cotas para pessoas trans na universidade.
Nilce Gal Ibarra, aluna de Ciências Sociais e participante da CITG, reclama que muitas unidades numerosas da USP apresentam uma quantidade muito pequena de pessoas trans, desproporcional ao total de alunes matriculades. “As cotas trans são justamente por causa disso, porque numa amostra da Faculdade de Economia e Administração de algumas milhares de pessoas, tem só duas pessoas que são trans. E a FFLCH, apesar de ter um número maior, não está proporcionalmente muito longe disso. Mesmo aqui, a gente vive bem ilhado e consegue passar a semana sem ver outra pessoa trans por aí.”
Quem são as pessoas trans da FFLCH?
Em 2024, a FFLCH aprovou uma moção em apoio às cotas trans na USP, com o objetivo de contribuir para a iniciativa estudantil que visa implementar políticas afirmativas de ingresso nos cursos de graduação da USP para pessoas trans e travestis. A Unidade possui três programas de pós-graduação com cotas destinadas a pessoas trans, sendo eles Antropologia Social, História e Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades.
A permanência des alunes no ambiente universitário começa quando são vistes e ouvides. Como forma de dar visibilidade a alunes de nossa Faculdade, conversamos com pessoas trans que se dispuseram a contar sua história.
Graduação
Maria Andoyiki é uma travesti negra formada em Ciências Sociais que, atualmente, está finalizando a licenciatura e trabalhando com análise de dados. Ela nasceu no Ceará e veio com sua família para Cotia, região metropolitana de São Paulo, no primeiro ano de idade.
Maria conta que, desde pequena, não correspondia às expectativas de gênero impostas sobre ela e carregou esse incômodo ao longo dos anos. O processo de se reconhecer como pessoa trans começou quando tinha 24 anos, ela transformou sua inconformidade de gênero em uma busca por referências, por pessoas para conversar e entender o incômodo que sempre carregou. “Eu acho que mais do que uma descoberta é você se reconhecer enquanto um corpo trans e, a partir do momento que você reconhece, você busca se aceitar de alguma forma. Você busca se posicionar a partir desse outro lugar”, ela explica.
A USP ajudou no processo de Maria de se reconhecer e expressar seu gênero. “O espaço universitário fez isso. A USP fez isso também, de me colocar em contato com outras pessoas trans”. Ela também destaca que transicionar em um ambiente universitário não é fácil, mas talvez transicionar dentro da USP seja menos difícil do que externamente.
Para a aluna, só é possível transformar a USP em um espaço acolhedor para corpos trans se uma mudança estrutural for realizada: “Não é só uma questão de votar por cotas, mas ouvir os movimentos sociais a ponto de criar também as referências. Esses espaços dentro dos cursos, dentro das bibliografias, dentro do corpo docente.” e finaliza: “Como que a gente vai implementar cotas trans? Essas pessoas vão entrar num espaço onde a gente não fala sobre isso, onde não existe uma semelhança dos nossos corpos nas bibliografias, no corpo docente. Como que a gente permanece nesse espaço se a gente não consegue se reconhecer?”
Pós-Graduação
Francisco das Águas é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) em Juazeiro, Bahia. Ele cresceu no sertão baiano, na cidade de Sobradinho e, quando adolescente, mudou-se com a família para Petrolina-PE.
Ao final de sua graduação na Univasf, Francisco se interessou pelo programa de mestrado da USP. Em 2019, mudou-se para São Paulo e descobriu o Conjunto Residencial da USP (CRUSP), onde mora atualmente.
Passado o período de pandemia e qualificado no mestrado, em 2022, o pesquisador iniciou seu processo de transição de gênero “Eu começo a colocar o meu corpo à frente das minhas decisões”, ele relata. Uma performance Drag King ajudou nessa trajetória, o pesquisador se interessou pela categoria e acabou conhecendo Valentim Dias (Don Valentim, drag king), performando e se reconhecendo como transmasculino, conforme ele explica: “A ideia de experimentação da proposta drag é muito sintomática, corporalmente falando. E para a relação que você começa a ter com o outro, que as pessoas começam a ter com você, e você tem com o seu próprio corpo”.
Seu nome “Francisco das Águas” remete ao Rio São Francisco, que corre na região de Sobradinho, Juazeiro e Petrolina. Desde de criança, Francisco se banhava no rio e até hoje mantém esse ritual que se transformou em uma relação espiritual com as águas.“Você entende a vivacidade do rio a partir da velocidade dos movimentos da correnteza, então, quando o rio não tem correnteza, é porque de alguma forma está morto. E é nesse sentido que percebo meus deslocamentos geográficos e corporais".
Da infância na cidade baiana, Francisco hoje reverencia dissidências transfemininas que fizeram e fazem a memória de Sobradinho-BA: Sarita, que prepara refeições com peixe na beira do rio São Francisco em seu quiosque. Desde criança, quando ia se banhar no rio, Francisco a via fazendo o alimento. E Neritânia (in memoriam).
Atualmente, Francisco realiza sua pesquisa de doutorado “O gênero das práticas: uma etnografia com profissionais de saúde, crianças e adolescentes trans e seus familiares em um serviço no SUS”, com orientação de Silvana de Souza Nascimento.
Pós-Doutorado
Brune Mantese de Souza é alune do programa de Pós-Doutorado em Antropologia da FFLCH, formade em Ciências Sociais pela USP e cabelereire no seu salão Peluqueria Furiosas.
Elu conta que passou parte da vida se identificando como sapatão acompanhade da inconformidade de gênero: “Esse lugar de sapatão pra mim era um lugar de identidade, de orientação sexual, mas ele também era algo sobre o meu gênero, porque as pessoas falavam de mulheres e essa mulher não fazia nenhum sentido pra mim”.
Foi após um período difícil no doutorado na Unicamp que Brune começou o processo de transição e reconhecimento, conforme elu conta: “Na Unicamp eu vi coisas que eu começo a entender que eram uma camada a mais, que tinha a ver com uma inconformidade de gênero na época já, como ser uma dissidência de gênero e de ser LGBT. Então, tinham coisas que eu vivia que podiam estar no guarda-chuva da lesbofobia, tinham coisas que eu vivia que podiam estar no guarda-chuva da transfobia”. O preconceito sofrido enquanto realizava sua pesquisa fez com que Brune se afastasse da academia e fosse trabalhar com ONGs.
Pouco tempo depois, Brune fez uma transição de carreira e passou a trabalhar com cortes de cabelo, onde, anteriormente, encontrou formas de se expressar e se reconhecer. “Eu ia nos salões tentar cortar o meu cabelo e eu morria de explicar o que eu queria com o meu cabelo, que em geral era curto, com partes raspadas. Então eu chegava em casa com um cabelo que não era o cabelo que eu queria ter e eu precisava mexer no meu próprio cabelo porque eu não aguentava. Depois eu entendi que o meu cabelo, da forma como eu saía desses lugares, me dava disforia.”, elu conta.
Hoje, Brune tem seu antissalão, como gosta de chamar, que é um ambiente LGBT centrado e busca prestar serviço acolhedor para pessoas trans. “Dentro do meu trabalho aqui, com tesoura, fazendo cabelo, fazendo barba, cortando, pintando, fazendo tudo, eu comecei a ver uma série de pessoas trans para as quais a questão do cabelo era muito importante também no processo de transição. Assim como foi para mim, para muita gente é muito importante.”
Isso guiou Brune a pesquisar o cabelo como tecnologia social de transição de gênero. Atualmente, elu realiza pesquisa de pós-doutorado “Fazendo cabeças Transfronteiriças: Intervenções capilares e produção do gênero em salões de Tabatinga (Brasil) / Leticia (Colômbia) / Santa Rosa (Peru)”, supervisionada por Silvana de Souza Nascimento.