Dia Nacional da Visibilidade Trans

Data reforça luta por reconhecimento e respeito

Por
Rafael Dourador
Data de Publicação

Bandeira trans em prédio
(Arte: Rafael Dourador / Serviço de Comunicação Social FFLCH USP)

Em 29 de janeiro de 2004, o ato para o lançamento da campanha “Travesti e Respeito” no Congresso, lançada pelo Programa Nacional em parceria com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), marcou aquele que seria escolhido como o Dia Nacional da Visibilidade Trans.

“A campanha se tornou um marco porque muitas das travestis que fizeram parte nunca tinham entrado no Congresso Nacional. Os parlamentares estavam incomodados com a presença de tantas travestis, porque eles nunca tinham visto tantas no Congresso. Então, dessa reação toda se fez algo tão positivo dentro daquela casa, que nós idealizamos a comemoração daquela data no ano seguinte”, explica Keila Simpson, ativista que, na época, era presidente da ANTRA.

Nesta data, não apenas celebra-se as vidas trans, mas também é reforçada a sua luta por reconhecimento e garantia de direitos. Luta esta que, segundo Lux Ferreira Lima, doutore em Antropologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, antecede em décadas a campanha de 2004. Lux aponta que o fortalecimento da militância trans desde 1980 levou ao ato, vinte e quatro anos depois, e culminou em algumas conquistas importantes da atualidade, como o atendimento específico à população pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a alteração de dados em documentos oficiais e a adoção de cotas nas universidades do país.

Contudo, ile aponta que ainda há muito a ser feito. A violência transfóbica sofrida em diversas camadas da sociedade e a precariedade de garantia dos direitos das pessoas trans são apenas alguns dos pontos levantados por Lux. Confira a entrevista completa: 

 

Serviço de Comunicação Social: Poderia falar sobre a sua relação com a causa trans?

Lux Ferreira Lima: Eu tinha, até os vinte e poucos anos (que se deram no começo da década de 2010), contato com o trânsito de gênero muito pautado pela representação hegemônica da grande mídia. Um pouco antes de entrar no mestrado, tive a sorte de esbarrar nas mobilizações argentinas pelo direito à retificação de registro civil de pessoas trans em cartório sem requisição de laudos médicos, que culminou na Lei de Identidade de Gênero. A partir daí, me despertou a vontade de conhecer, analisar e participar da publicização da luta trans no Brasil por direitos – algo sobre o qual me debrucei no mestrado, especialmente sobre pedidos de retificação de registro pedidos por pessoas trans em Tribunais Estaduais brasileiros, e os argumentos elaborados por desembargadoras e desembargadores no processo de autorização ou recusa de tais pedidos (no Brasil, até  decisão do Supremo Tribunal em 2018, para conseguir ter nome e “sexo” retificados em documentos de identidade era necessário entrar com uma ação no Poder Judiciário).

No doutorado, fui atraíde por narrativas autobiográficas trans – um movimento que num primeiro momento vi como intelectual, como um interesse em investigar como a escrita do passado e a elaboração da experiência de transição se apresentou, historicamente, como formas de luta por inteligibilidade e legitimação da própria existência e subjetividade. Depois, compreendi que havia aí também um desejo pessoal: ao longo do doutorado, tive a sorte de, a partir de tantas biografias e autobiografias, conseguir nomear um horizonte de possibilidade de existência que até então nem considerava imaginável – e assim começar meu processo de trânsito e assunção da não binariedade. Nesses últimos anos, tenho tentado contribuir no campo acadêmico e em espaços de reflexão mais amplos para a disseminação de perspectivas trans – não só sobre transição e sobre dissidências de gênero, mas sobre o mundo em que vivemos, sobre os pressupostos que organizam nossa cognição e entendimento, sobre passados apagados e futuros que podemos desejar. Em salas de aula, na condução de pesquisas, em espaços de debate, na tradução de textos, e na publicização de arte trans e de estudos trans, esse tem sido meu trabalho, minha forma de participar no que podemos chamar de causa trans, mas também de: uma confiança no e uma defesa inabalável do trânsito como norte de vida.

 

Serviço de Comunicação Social: Quais avanços tivemos desde 2004 para cá? Quais desafios permanecem?

Lux Ferreira Lima: Não tem como pensar em todas as conquistas que podemos vivenciar hoje em dia sem reconhecer e celebrar a coragem, a ousadia e a persistência de ativistas trans, em especial travestis negras, como Fernanda Benvenutty, Janaina Dutra, Jovanna Cardoso e Keila Simpson, dentre muitas outras - desde o enfrentamento à ditadura militar, à brutalidade policial e ao projeto necropolítico de “gestão” do HIV/AIDS durante a epidemia nos anos 1980 e 1990. O fortalecimento dessa militância nos levou até a campanha em 2004, e essa prática ativista que era na verdade uma luta cotidiana pelo direito à vida e à dignidade foi se consolidando e tendo papel central em uma série de conquistas que hoje são tão familiares: como o protocolo de atendimento específico à população no Sistema Único de Saúde; o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal do direito de pessoas trans alterarem nome e “sexo” em seus documentos de identidade em cartório sem a necessidade de laudos médicos ou comprovação de alteração corporal; a pressão em partidos políticos por apoio a candidaturas trans, que tem levado a um aumento gradual de pessoas trans eleitas em cargos do Poder Legislativo nos últimos anos; e à onda imparável que estamos vendo de instituições de ensino superior aprovando cotas para pessoas trans na graduação e na pós-graduação. Isso é efeito dessa luta de décadas.

Infelizmente, também viemos de um processo histórico de atualização de um regime transfóbico de existência, cujos termos organizam a condução da vida social no Brasil. Isso leva a uma violência transfóbica em diversas camadas – desde transfeminicídios cuja contabilização (feita de forma precária, por movimentos sociais) ultrapassa as centenas anualmente, passando por representações estigmatizantes e essencialistas em programas de TV e conteúdo digital, até a racionalidade de suspeição e o pânico moral que políticos de ultradireita vêm construindo em torno de pessoas trans, com o objetivo de silenciar reflexões e conversas sobre diversidade sexual e de gênero nas escolas, na mídia, no debate público e em espaços de decisão. Grande parte do enfrentamento dessa violência reside não apenas em ter pessoas trans nesses espaços – apenas a sua presença não é suficiente para dar conta dessa rede cisnormativa capilarizada; nem é justo demandar essa presença sem considerar qual é o grau de salubridade possível nesse ocupar esses espaços. Faz-se necessário um engajamento, também em coalizão, em aliança, de reorganização do currículo escolar, dos padrões de representação de comunidades historicamente vulnerabilizadas, de modos de habitar espaços (fazer valer o uso de nome social, repensar divisão de banheiros, etc) – faz-se necessário interpelar, questionar, desfazer o pressuposto de naturalidade dos termos a partir dos quais entendemos o mundo: termos como normal e anormal, natural e construído, verdadeiro e falso, masculino e feminino.

 

Serviço de Comunicação Social: De que forma o Dia Nacional da Visibilidade Trans combate o preconceito?

Lux Ferreira Lima: Quando a gente mergulha na história do surgimento da data, vemos como essas ativistas trans tinham como enfoque o combate ao preconceito pelo estímulo à naturalização de pessoas trans ocupando espaços – e não apenas zonas marginais das cidades, à noite, no exercício do trabalho sexual – uma consequência de transfobia estrutural que levava à expulsão de pessoas trans jovens de suas casas ou a fuga diante da violência doméstica; à evasão escolar; à discriminação no mercado de trabalho formal e ao desemprego; etc. Esse objetivo ainda tem uma importância incontestável atualmente: a cisnormatividade que toma a cisgeneridade como natural e universal e o trânsito de gênero como anormal, suspeito, falso, imoral ainda tem como consequência ser incomum termos pessoas trans médicas, pessoas trans advogadas, pessoas trans docentes. O Dia Nacional da Visibilidade Trans é um marco no sentido de nos convidar a refletir sobre isso, refletir sobre as causas que levam à excepcionalidade das poucas pessoas trans que alcançam espaços de prestígio.

Mas também a data, lá em 2004, destacava que pessoas trans têm o direito à informação – sobre aspectos de saúde, sobre procedimentos de alteração corporal, sobre direitos. Então gostaria de trazer esse elemento de reivindicação chave presente no começo da data pra dizer que até hoje ela serve não apenas como uma forma de chamar a atenção de pessoas cis; é uma forma de nos manter em contato umes com outres, de compartilhar saberes, de criar uma rede que tenta ao máximo evitar que pessoas como nós se sintam sozinhas, isoladas, sem apoio. É um modo de passar adiante o que aprendemos e nessa coletividade permitir que mais e mais pessoas conheçam a nossa história, tenham um repertório para lutar pelos próprios direitos, saibam como cuidar de si e de sues companheires, tenham horizontes de futuro de realização e bem viver, e se comprometam com um projeto por dignidade, autodeterminação e equidade. Ela é um norte para a gente se organizar.

Mas evidentemente uma data não é o suficiente. Como disse, ela não pode ser vista como apenas um dia, um momento em que se fala sobre vida e cidadania trans. Ela precisa ser, como muitos movimentos sociais trans têm feito, um norte e um marco que é a culminação de uma prática cotidiana, de um trabalho rotineiro. Senão, teríamos apenas um dia de visibilidade, enquanto os outros 364 seriam dias de visibilidade cis. E também não é suficiente esse enfoque em visibilidade; é necessário que a gente pense quem tem o controle do entendimento do visível, de sua inteligibilidade. Colocar-nos em destaque pode significar tanto celebrar nossa existência quanto nos tornar o grande símbolo de inimizade, de perigo, de pânico moral – algo que a ultradireita tem feito pelo menos nos últimos 10 anos não só aqui no Brasil como nos Estados Unidos, no Reino Unido, etc. Mais do que visibilidade, o acesso ao conhecimento mencionado lá na campanha “Travesti e Respeito” faz parte de um projeto de fortalecimento da comunidade, de defesa de nossa autodeterminação, de nossa participação em debates públicos e em reorganização do enquadramento do entendimento social sobre gênero, sobre transformação, sobre identidade e sobre humanidade.

 

Serviço de Comunicação Social: Por que é importante termos figuras políticas trans, como a deputada federal Erika Hilton?

Lux Ferreira Lima: Em um primeiro momento, poderíamos pegar a parte “figuras políticas

trans” e dar uma resposta imediata que caberia na palavra “representatividade” – ou seja, a importância de ter uma pessoa trans em espaços de poder, de representação política e de decisão no que toca a questões de interesse do povo e a como isso se materializa em um corpo regulatório. Embora isso seja muito importante, não creio que seja o central – podemos, por exemplo, ter pessoas trans conservadoras, pessoas trans de direita; afinal, nós somos sujeitos complexos, diversos e contraditórios como quaisquer outros.

Eu prefiro ver a questão considerando o que a intelectual Sofia Favero elabora em um texto brilhante, intitulado “Por uma ética pajubariana”: para além do que somos, cis ou trans, é necessário considerar de que modos o mundo nos inscreveu (em termos interseccionais – considerando gênero mas também classe, raça, deficiência, geração etc), marcou nosso campo de entendimento de nós mesmes e nossas possibilidades de circulação no mundo, e o que decidimos fazer com isso.  Por isso, gostaria de pegar a outra parte da pergunta, a saber: “como a Erika Hilton.” Porque o que ela, e outras parlamentares como Duda Salabert e anteriormente Érica Malunguinho, por exemplo, fizeram foi trazer essa perspectiva atravessada por uma série de violências sistêmicas e por luta ativista, bem como pelo compromisso em enfrentar racionalidades e práticas de dominação, exploração e extermínio que afetam sujeitos diversos de modo diferente, mas afetam a todos. São parlamentares que não apenas se voltam à defesa e à efetivação de direitos da população trans, mas também de pessoas em situação de rua, de profissionais do sexo, de trabalhadores precarizados, de povos originários, de modos de vida não humana contra a lógica extrativa da monocultura e a crise climática etc. Tais figuras políticas trans têm outro projeto ético, e é delas que precisamos tanto – porque sua trajetória as mostrou que o regime normativo de discriminação e violência nos fragiliza coletivamente; logo, o enfoque não é em proteção de um grupo e sua inclusão em tal regime; mas desmantelamento do modo como esse regime se estrutura e a conformação de uma configuração social de cidadania pautada em justiça e equidade.

 

Serviço de Comunicação Social: Do seu ponto de vista, o que é mais alarmante na questão dos direitos das pessoas trans?

Lux Ferreira Lima: Duas coisas são mais alarmantes: a natureza de tais direitos; e o modo como se efetivam.

Explico o que quero dizer com isso. No que toca à natureza de tais direitos: grande parte dos direitos conquistados – ao atendimento especializado no SUS, ao uso de nome social, à retificação de registro em cartório – se dão em considerável precariedade. Ou são atos infralegais (não tem o mesmo caráter de uma lei ordinária- são resoluções, portarias, etc) e por isso não têm a mesma força que uma lei, podendo ser revogados com facilidade, tendo uma competência limitada etc.; ou são direitos reconhecidos pelo Poder Judiciário, também não tendo a mesma estabilidade que uma lei (um órgão como o STF pode mudar entendimento sobre determinado tema, ou o Poder Legislativo pode elaborar uma lei que se contrapõe a uma decisão – e aí o tema será analisado novamente em controle de constitucionalidade). Isso confere a tais direitos certa precariedade, parcialidade, incompletude – assim como à cidadania de pessoas trans. Ela se torna frágil, facilmente reversível: esses atos infralegais e decisões judiciais são considerados necessários porque, penso eu, operadores do direito sistematicamente não consideram que o corpo jurídico amplo valha para pessoas trans. A implicação óbvia aqui é que não somos consideradas detentoras de todos os direitos previstos em lei como qualquer cidadão; a nós são previstas apenas algumas normas, sempre sob risco de não serem aplicadas em determinados órgãos, municípios e estados; sempre sob risco de revogação.

Quanto à efetivação de direitos: refiro-me ao modo como a materialização de tais direitos tem sido historicamente desenhada por pessoas cis que muitas vezes compreendem pouco ou nada sobre existências trans. Então quando falamos sobre o desenho de políticas de atendimento à saúde, por exemplo, ao longo da história tivemos em alguns momentos a expectativa de que pessoas transexuais odiassem seus corpos (tal expectativa inscrita em portarias e resoluções do SUS, por mais incrível que pareça), e quisessem realizar todos os procedimentos hormonais e cirúrgicos para terem corpos similares aos de pessoas cis (portanto, para ter acesso a determinados procedimentos corporais, pessoas deveriam se comprometer a realizar todos – não importa se isso não correspondesse à imagem de si que sonhavam); ou, no caso de uso do nome social, instituições como escolas euniversidades que inseriram em documentos de circulação ampla como listas de chamada, o nome de registro junto do nome social. Isso demonstra uma mentalidade cisgênera na implementação de direitos e políticas a pessoas trans, que sequer imagina os danos que uma política que em tese está concretizando direitos pode causar. Se queremos que tais direitos e políticas sejam eficazes, é necessário chamar pessoas trans para participarem de seu desenho – ouvir de que modo práticas partem de pressupostos cisnormativos e podem reiterar violências. Não dá para apenas ver a população trans como alvo de políticas – é necessário que ela seja sujeito central no seu desenho e materialização, que seus saberes, experiências e perspectivas diversos sejam considerados de modo tal que normas existentes para nos protegerem enquanto uma comunidade complexa e diversa efetivamente o façam, não reproduzindo uma expectativa de transexualidade e travestilidade monolíticas, essencialistas, repletas de herança de modelos patologizantes de compreensão.

A luta, assim, não é apenas pelo reconhecimento de um ou outro direito, pela sua efetivação melhor elaborada; é pelo reconhecimento de nossa legitimidade intelectual e enunciativa, de nossa subjetividade política, de nossa dignidade e humanidade. É pela reconfiguração do entendimento do corpo legal brasileiro e da estrutura de políticas públicas de uma forma não cisnormativa.

Lux Ferreira Lima é mestre e doutore em Antropologia pela Universidade de São Paulo, com graduação em Direito e em Ciências Sociais pela mesma instituição. Atualmente é professore colaboradore e realiza pesquisa de pós-doutorado sobre pensamento social trans na Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É pesquisadore vinculade à Rede de Estudos Trans-Travestis, ao Coletivo de Estudos (In)Disciplinares do Corpo e do Território (COCCIX/NAU) e ao Núcleo de Estudos dos Marcadores Sociais da Diferença (NUMAS), estes dois últimos da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).