Exposta na pandemia, a fragilidade humana pode fazer emergir uma sociedade mais solidária? SIM

Novos pactos surgirão, virá a lume um momento de esperanças

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Redação
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Em “A Peste”, Albert Camus constrói uma magistral alegoria, narrando as consequências sociais e morais de uma epidemia em Orã, na Argélia. A obra, uma reflexão sobre o domínio nazista que submeteu a França, põe a nu a suposta elite francesa que “comandava” o país a partir de Vichy e desembocará na derrocada dos nazistas de Berlim e seus colaboradores franceses. Como resultado da peste, o romance vertiginosamente nos deixa entrever a solidariedade, a amizade e os sentimentos que servem como contraponto de um flagelo da natureza e da humanidade. Em Camus as pestes acabam, tanto aquela gerada pelos ratos como a gerada pelos vermes.

Como sou um otimista incorrigível —embora os fatos, muita vez, me desmintam—, creio que, após a pandemia, nossa sociedade em particular e o mundo em geral irão emergir mais conscientes da nossa fragilidade. E isso nos encaminhará para um tipo de sociedade mais solidária, respeitosa e cidadã.

O ser humano, quando em contato com o perigo, volta-se para seu interior e, ensimesmado, passa a refletir o quanto o outro lhe é importante e tem valor; e, nesse sentido, o quanto a alteridade precisa ser preservada. Passado o perigo, refazemos nossos laços e buscamos nos aproximar daqueles que se distanciaram, seja por questões físicas, seja por questões, digamos, ideológicas.

Outro elemento importante, decorrente da mesma circunstância, é a construção de consensos. Começamos a observar dissensos e desacordos, matizando-os de acordo com seu nível de admissibilidade; isto é, existe um Rubicão existencial que separa aqueles que pregam o desrespeito à vida, o egoísmo e o egocentrismo exacerbados, os negacionismos de toda ordem e o autoritarismo —hoje minoritários, ainda bem— daqueles que pautam sua vida pela civilidade, pelo respeito ao próximo, pelo altruísmo, pela solidariedade, pelo valor da ciência e pela democracia.

Posso dizer com bom nível de certeza que dissensos encontrados nesse grupo serão revistos com a pandemia, donde a tolerância irá sair revigorada, em nome de uma sociedade melhor. Já aquele outro grupo, no qual o modo de agir é caracterizado pelo baixíssimo nível de admissibilidade, irá ficar cada vez mais isolado, fraco, mas (talvez) perigoso.

A se confirmar essa hipótese, penso que muitas ações governamentais deletérias serão desmascaradas e, portanto, estaremos mais próximos de consensos maiores que poderão reestabelecer o lugar da boa política, da política republicana e democrática, que não se apega à mesquinhez comezinha e que não imiscui o público com o privado.

Irá surgir, quero crer, o interesse do coletivo no lugar do pessoal, já que o outro, com a pandemia, renascerá para o eu. Nas relações interpessoais, os últimos dois anos assistiram ao esfacelamento de núcleos familiares e de amizade por conta de um jogo político brasileiro que se sentou à nossa mesa de jantar, frequentou o churrasco de domingo, participou de nossos aniversários. Isso acabou por afastar grupos que outrora eram unidos, ainda que discordes.

Assim como a peste da ficção, que encaminhou Orã para outro momento muito mais solidário, a pandemia de Covid-19, creio, irá oportunizar novos pactos, virá a lume um momento de esperanças e alegrias ressurgirão.

Como amiúde “a vida imita a arte”, nós, no Brasil —“mutatis mutandis”, na Hungria, no Turcomenistão ou em Belarus— sairemos da pandemia livres de um vírus e de alguns vermes.

 

Paulo Martins
Professor livre-docente de letras clássicas e vice-diretor da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo); autor de 'Imagem e Poder' (Edusp), entre outros

Texto publicado no jornal Folha de São Paulo, em 25 de abril de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/exposta-na-pandemia-a-fragilidade-humana-pode-fazer-emergir-uma-sociedade-mais-solidaria-sim.shtml