Marcel Proust é autor de um dos maiores clássicos da literatura mundial, "Em busca do tempo perdido"
Em 10 de julho de 1871, nascia Marcel Proust. De família rica e tendo recebido boa educação, tornou-se um dos maiores nomes da literatura francesa e também mundial com o clássico Em busca do tempo perdido. Publicada em sete volumes entre 1913 e 1927, a obra trouxe uma visão filosófica sobre o tempo de forma inovadora, tendo influenciado o romance no século XX. Além disso, foi uma das primeiras grandes obras a ter a homossexualidade como um de seus temas.
Conversamos com Fillipe Augusto Galeti Mauro, mestre e doutorando pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP em Literatura Francesa sobre o legado do escritor, no ano em que se completa um século de sua morte.
Serviço de Comunicação Social: O que faz de Marcel Proust um dos mais importantes escritores do século XX
Fillipe Mauro: Não há grande tema do conhecimento que escape às meditações do narrador de Em busca do tempo perdido, o que torna esse longo romance em sete volumes um dos mais completos acervos do pensamento moderno. O leitor ali encontra reflexões sobre a filosofia do tempo e do espírito, ensaios sobre arte, música e literatura, crônicas da geopolítica europeia, tensões sociais de classe, inovações da técnica, indagações sobre sonhos, homossexualidade, amor e ciúmes anteriores até mesmo a Freud – que ele nunca leu e que nunca o leu. Mas cada um desses temas surge com Proust sob ótica renovada: a partir da perspectiva do subconsciente do narrador. Importa nesse romance o dinamismo da mente, a complexidade das associações que o pensamento é capaz de formular e as limitações da linguagem para exprimir aquilo que pensamos e que sentimos. O “tempo perdido” ao qual a obra se lança é muito mais que um lapso de memória, que um esquecimento. Trata-se dos dados, das informações do mundo e da vida que nossos órgãos dos sentidos um dia absorveram, mas que permaneceram inertes no subconsciente, que escaparam às abstrações da linguagem. A relevância de Proust para a literatura modernista provém, assim, dessas duas dimensões: Em busca do tempo perdido é uma das mais completas representações poéticas do pensamento ocidental e elabora uma estética, um estilo capaz de conceber esse vasto mosaico a partir da interioridade do homem, tomando sempre como ponto de partida os influxos da mente, da alma e do subconsciente.
Serviço de Comunicação Social: Em que contexto foi escrito Em busca do tempo perdido e o que o torna um clássico da literatura mundial?
Fillipe Mauro: A leitura de Proust nos coloca em contato com o rico contexto estético, técnico e político ao qual os historiadores atribuem o epíteto de belle époque. A literatura europeia apresenta então uma série de respostas e de reações ao estilo realista e a sua modalidade mais radical: o naturalismo. Correntes como o simbolismo (cujo melhor exemplo é a poética de Mallarmé, que fora, aliás, professor de inglês do jovem Proust no Liceu Condorcet), introduzem nas letras indagações sobre a maneira como o homem apreende a realidade e sobre as reverberações da realidade sobre os espaços mais ocultos, misteriosos e recônditos da existência. Em lugar de revelar a essência dos seres, como pretendiam os realistas, nossa carapaça moral (costumes, aspecto físico, procedência social) apenas encobre uma realidade muito maior e desconhecida. Na filosofia, esse é o tempo do espiritualismo de Bergson, que reverte os parâmetros das teorias do conhecimento e posiciona o homem no centro da sensibilidade, não seu meio. A tecnologia e a indústria da época se empenham como jamais em produzir extensões, instrumentos para esse novo entusiasmo humano. Não há inovação técnica da belle époque que Proust não integre a seu romance: Saint-Loup retrata a avó do narrador com uma máquina fotográfica Kodak; Albertine revolta os banhistas mais conservadores de Balbec atravessando a orla sobre uma bicicleta; o narrador viaja pelas paragens francesas primeiro de trem, depois de automóvel; ele teme pela morte de sua avó ao conversar com ela por um telefone, que separa o corpo da voz; ele tem medo de ascender a seu quarto no grande hotel de Balbec por meio de um “lift”, o elevador; “aeroplanos” cruzam os céus como grandes insetos voadores; as damas burguesas do Faubourg Saint-Germain, dentre elas Madame Cottard, se gabam da instalação da luz elétrica em seus apartamentos. Burguesia essa, por sinal, que conclui na virada do século seu projeto de ascensão social e que toma à velha aristocracia francesa sua hegemonia política e econômica. O último movimento que lhe resta em seu xadrez é a legitimidade cultural, e ela o conquista pelas vias do dinheiro, casando seus filhos com uma nobreza arruinada e trocando abastados dotes pela poeira dos sobrenomes (Gilberte Swann, que se casa com Robert de Saint-Loup, unindo o caminho de Swann ao caminho de Guermantes; Madame Verdurin enviuvada que se casa com o Duque de Guermantes). O apogeu dessa grande festa entre nobres e burgueses é a primeira grande guerra (um belíssimo poema de Apollinaire compara bombardeios a fogos de artifício), que consolida a fé do narrador de Em busca do tempo perdido no poder incomparável da arte e da literatura para a preservação das verdades humanas. Esse é o tempo de Proust: tempo de interiorização da arte e da filosofia, tempo de apoteose da técnica humana, tempo de estremecimento e de transformação de estruturas econômicas, políticas e sociais.
Serviço de Comunicação Social: Este ano marca o centenário da morte do escritor. Qual foi a influência de Proust na literatura brasileira?
Fillipe Mauro: A presença de Proust nas letras brasileiras é importante e atravessa todo o século XX. Esse é meu tema de pesquisa e, para responder a sua pergunta, tomo a liberdade de lhe enviar um artigo que publiquei recentemente em uma revista de vulgarização. Está tudo bem sintetizado por lá, você vai ver: https://revistarosa.com/4/as-margens-do-vivonne.
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Fillipe Augusto Galeti Mauro possui mestrado em Literatura Francesa pela FFLCH USP (2018), com período sanduíche na Escola Normal Superior de Paris, e é doutorando em Literatura Francesa pela mesma instituição (2018-presente), em cotutela com a Universidade de Paris III - Sorbonne Nouvelle. Sua dissertação de mestrado, A máscara e o espírito: estudo comparado dos retratos jornalísticos de Marcel Proust e Jorge Andrade, está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.