Autor do clássico "A Metamorfose", Kafka é reconhecido como um dos maiores nomes da literatura mundial do século 20
Franz Kafka, famoso por obras como A Metamorfose ou O Processo, é reconhecido como um dos maiores nomes da literatura mundial do século 20. Dentre contos, fragmentos, ou romances inacabados, grande parte da obra de Kafka foi publicada postumamente, e inspirou autores como Albert Camus, Gabriel García Márquez, Jean-Paul Sartre, e José Saramago.
Conversamos com Sâmella Michelly Freitas Russo, doutora em Língua e Literatura Alemã pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, sobre o legado do escritor cuja linguagem simples contrasta com a profundidade de sentidos.
Serviço de Comunicação Social: Quais elementos caracterizam a escrita de Kafka?
Sâmella Russo: Quase um século depois de sua morte, falar de Kafka é certamente um desafio, em que não apresentar mais do mesmo nem sempre é possível. Muitos são os que elencaram uma longa lista de adjetivos que caracterizariam a sua escrita: uma escrita que se valeria de uma linguagem protocolar, seca, muito em decorrência do alemão particular de Kafka – um alemão “de gueto”; uma escrita caracterizada ora por um tom alegórico, ora simbólico.
Para os mais familiarizados com a escrita do autor, o que se observa é que a sua linguagem é permeada de uma “simplicidade” advinda de um tcheco que escrevia em alemão; o que há de “enigmático” em Kafka não é portanto a linguagem em si – essa um tanto simples –, mas sim a sofisticação dos sentidos atribuídos a um vocabulário, digamos, despretensioso. Em termos de linguagem, existe uma diferença profunda entre ler Goethe ou mesmo Thomas Mann e Kafka, e isso porque o que nos constrange no escritor tcheco não é a linguagem em si e sim a conotação não óbvia dada ao que é através dela escrito: uma semântica ambígua, aberta, que muito colaboraria para a inacessibilidade de seus textos.
As estruturas semânticas e sintáticas de Kafka vão também guardar estreita relação com a inteligibilidade de seus textos, colaborando para um efeito suspensivo na sua compreensão. Com isso, não se quer dizer que ele recorreu a uma escrita coloquial; antes, a um alemão oficial desprovido de lirismos. Por meio desse alemão “sóbrio”, “frio”, Kafka narra cenários que escapam àquilo que, à primeira vista, entende-se por normalidade. Assim era no início do século XX e assim permanece neste século. Afinal, o que exatamente significaria acordar transformado em um inseto monstruoso ou ser acusado de um crime de que não se tem conhecimento?
Serviço de Comunicação Social: Qual a importância de Franz Kafka para a literatura mundial?
Sâmella Russo: Kafka é um dos expoentes da literatura em língua alemã e integra o que se convencionou chamar de literatura clássica. Leitura “obrigatória” entre os interessados por literatura e nos cursos de Letras e Literatura, Kafka permanece sendo uma importante referência literária por ter apresentado uma forma peculiar de representar o mundo. Toda arte, toda literatura, fala de um lugar, de um tempo. Por óbvio, os textos de Kafka falam muito mais para um boêmio do início do século, mas, por retratar a interioridade inquietante do indivíduo, eles ressoam para muito além daquelas fronteiras geográficas e mesmo hoje, um século mais tarde. A importância de Kafka para a literatura mundial consiste precisamente nisso: intrigar e inquietar, ainda hoje, tantos leitores. Não por acaso, os seus romances, todos inacabados, continuam a ter lugar cativo nas estantes de leitores no mundo inteiro.
Serviço de Comunicação Social: Sua obra mais conhecida, A Metamorfose, mantém-se atual?
Sâmella Russo: Cento e dez anos depois de escrita, A Metamorfose permanece fonte de inquietação e discussões infindáveis entre interessados por literatura, críticos literários e acadêmicos, e isso, em grande parte, pela “atualidade” de que seu enredo dispõe. Essa atualidade não é, claro, uma prerrogativa exclusiva de seu autor, mas de todos aqueles que foram capazes de falar de uma perspectiva interiorizada, daqueles que se propuseram a desenvolver um projeto epistemológico da investigação de si mesmo. Em A Metamorfose – assim como em grande parte da escrita de Franz Kafka –, os fatores externos são coadjuvantes de uma escrita que prioriza o indivíduo por ele mesmo. É isso que faz de Kafka, Hesse ou Proust atemporais. Escrita em 1912, A Metamorfose é, muitas vezes, vista como uma narrativa de “vanguarda”, além de seu tempo. Fato é que ela reflete as sombras daquele difícil século recém-iniciado prestes a ver eclodir duas grandes guerras e que promete permanecer atual até quando o indivíduo buscar a consciência de si mesmo, das suas limitações, das suas inquietações, das suas incertezas, dos seus medos. E, claro, por ser obra aberta – lembrando aqui Eco –, por permitir uma infinidade de interpretações, A Metamorfose – assim como Demian ou Em Busca do Tempo Perdido – pode mesmo mostrar-se atual de perspectivas inúmeras: política, econômica, social. E é esse tipo de convite que faz essa “velha” novela tão instigante em tempos como o nosso.
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Sâmella Michelly Freitas Russo desenvolve pesquisa na área de Literatura e outras artes, com foco especial em cinema, e é membra-associada da Deutsche-Kafka-Gesellschaft, um centro de estudo que visa coordenar estudos sobre o escritor. Para quem se interessar mais sobre o tema, sua tese “A escrita e os diários: a luta pelo reconhecimento da singularidade de Franz Kafka” foi reconhecida com a menção honrosa da Grande Área – Linguística, Letras e Artes do Prêmio Tese Destaque USP.