Hegel é um dos filósofos mais influentes da história, autor do clássico "Fenomenologia do Espírito", de 1807
Principal representante do idealismo alemão, Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em 27 de agosto de 1770. Ele se empenhou em reconsiderar a relação do pensamento com o mundo externo, buscando uma forma de superar a dicotomia posta pela subjetividade moderna entre o sujeito e o objeto, entre o homem e o mundo. “O resultado disso é uma obra rica e profunda que aborda dentro de si uma gama enorme de assuntos, tais como a consciência, a ética, a política, a estética, a religião e a história”, afirma Raphael Feliciano, mestre em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. A obra mais conhecida de Hegel é a Fenomenologia do Espírito (1807); outras obras que publicou foram a Ciência da Lógica (1812), a Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1817) e as Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito (1820). Hegel inovou ao articular as noções de “conceito”, “ideia” e “espírito”, mediante um movimento que é conhecido como dialética.
Seu pensamento se mostra relevante, de acordo com Feliciano, não só por seus próprios méritos, mas por ter servido como base do pensamento de importantes filósofos. “É comum que muitos dos mais influentes pensadores tenham sido diretamente influenciados por Hegel ou tiveram, em algum momento, que prestar contas com pressupostos de sua filosofia.” Ele cita como exemplo o também alemão Karl Marx, baseado em larga medida na dialética hegeliana. Marx inclusive discutiu temas do pensamento hegeliano em Crítica à Filosofia do Direito de Hegel (1843). A lista de filósofos influenciados por Hegel também inclui nomes como Friedrich Schelling, Ludwig Feuerbach, Søren Kierkegaard e Martin Heidegger.
Para Feliciano, o grande mérito de Hegel é pensar no todo como dotado de racionalidade, rompendo com uma forma de se pensar centrada somente no ponto de vista do indivíduo. “Sua aposta na razão ainda é desafiadora na medida em que rejeita todo tipo de imediatismo e traz o entendimento de a racionalidade deve ser algo trabalhado com paciência considerando sempre a contrariedade e a racionalidade que emerge do conflito, pois só esse lento erigir através dos obstáculos pode de fato surgir algo que seja verdadeiro e efetivo”, explica.
Confira a entrevista na íntegra com Raphael Feliciano a respeito do legado de Hegel.
Serviço de Comunicação Social: Quem foi Hegel?
Raphael Feliciano: Hegel foi um filósofo nascido em 27 de agosto de 1770 em Stuttgart, Alemanha. É tido como o nome mais conhecido do chamado “idealismo alemão”, movimento intelectual que também contou com Schelling e Fichte. Foi contemporâneo de muitos pensadores românticos de relevo e foi crítico das posições românticas em relação a temas levantados pela filosofia crítica de Kant e pelo iluminismo.
Hegel foi um pensador que se notabilizou por ter elaborado o que se considera o “último sistema de filosofia”. De fato, a empreitada hegeliana envolveu uma tentativa de reconsiderar a relação do pensamento com a exterioridade e se propôs a pensar uma forma de superar a dicotomia posta pela subjetividade moderna entre o sujeito e o objeto, entre o homem e o mundo. O resultado disso é uma obra rica e profunda que aborda dentro de si uma gama enorme de assuntos, tais como a consciência, a ética, a política, a estética, a religião e a história. De forma geral, costuma-se dividir a reflexão de Hegel em dois períodos, comumente chamados de “Jovem Hegel”, período em que elaboração de seu sistema ainda não tem a formulação que encontrou mais tarde, e o “Hegel de maturidade”, também considerado o “Hegel sistemático”. O primeiro período é o que compreende a publicação de textos em que o filósofo se esforça para encontrar um princípio capaz de superar a oposição mencionada acima, mas ainda não encontra um ponto firme para desenvolver seu sistema. Finalmente, com a publicação da Fenomenologia do Espírito em 1807, Hegel finalmente consegue elaborar o seu sistema de forma completa. A partir de então, considera-se o período daí em diante de período “de maturidade”.
Além da citada Fenomenologia do Espírito, Hegel publicou no período de maturidade a Ciência da Lógica (1812), a Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1817) e as Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito (1820), além de ter proferido diversos cursos na Universidade de Berlim que se tornaram importantes fontes de reflexão sobre a estética, a religião e a história da filosofia, por exemplo.
Sua obra é relevante não só por seus próprios méritos, mas pelo debate que suscitou entre seus admiradores e detratores, como Feuerbach, Marx e Kierkegaard.
Serviço de Comunicação Social: Você pode nos explicar em linhas gerais a filosofia de Hegel?
Raphael Feliciano: Não é fácil resumir em linhas gerais uma filosofia tão complexa e detalhada, mas é possível dizer que a principal originalidade de Hegel é a forma como articula as ideias de “conceito”, “ideia” e “espírito”, para alcançar uma totalidade que supere de fato as cisões que eram o fundamento de suas reflexões. Essa articulação se dá mediante um movimento que é conhecido como dialética. Para entender como isso funciona é importante observar, rapidamente, o que estava em questão para ele e para seus interlocutores intelectuais da época. O foco do interesse desses intelectuais era debater a possibilidade de se reencontrar a unidade além da cisão. Por “cisão” entendem a divisão que a cultura ocidental moderna, especialmente com a filosofia cartesiana e a ciência do renascimento, promoveu entre o sujeito e seu entorno. Para esses autores, incluindo Hegel, os antigos pensavam o sujeito como algo construído em relação com a ordem ao redor. Do contrário, a filosofia moderna coloca o sujeito como uma presença imediata, alcançada com a abstração da ordem ao redor e do recolhimento da reflexão sobre si mesma. Desta forma, esse sujeito prescinde totalmente do mundo ao redor para entender a si mesmo como presença. O resultado tanto implica em isolamento do sujeito em relação a tudo como também um abandono do lado objetivo a relações mecânicas, como uma ordem puramente dada e natural.
A reação a esse sentimento de incompletude, por assim dizer, foram inúmeras tentativas de encontrar um elemento comum capaz de trazer de volta o acesso a algo que seja completo, um todo, o absoluto. Os românticos, de forma geral e bem simplificada, tentam acessar essa totalidade rejeitando o entendimento e buscando uma via imediata, um refúgio na pura interioridade dos sentimentos.
Hegel também se insere nesse debate, mas sua solução o distancia dos demais, porque ele entende, especialmente no período maduro, que o acesso ao todo não pode ser imediato, rejeitando-se qualquer tipo de mediação promovida pelo entendimento; mas que deve ser realizado como um processo através das mediações postas por este mesmo entendimento. A solução encontrada por ele foi considerar o pensamento não algo interior, um inventário de categorias e representações, mas sim que o pensamento é concreto. Por esta razão ele foi um crítico das ciências empíricas, pois entendia que todo saber deveria ser integrado em um todo (daí ter chamado a exposição de seu sistema de Enciclopédia). O saber verdadeiro, portanto, é o todo, e a verdadeira exposição se dá no conjunto do sistema.
Nesse sentido, o pensamento, para Hegel, deve ser algo concreto e não meramente subjetivo. E foi a partir da ideia de conceito, de inspiração da crítica kantiana, que se possibilitou realizar essa mudança de concepção. Para Kant, grosso modo, o conceito permite ao sujeito organizar a sua experiência e organizar os dados da experiência sensível, com a ressalva que para ele os conceitos sempre necessitam dos dados da sensibilidade. Hegel, contudo, não se contentou só com essa concepção e foi além dela. Para ele, o objeto sensível que aparentemente é imediato e posto diante de nós, também é algo relativo a nós; é objetivo porque está diante de nós. Isso quer dizer que esse objeto, primeiramente em si e independente de nosso conhecimento, também é posto como tal por nós. Assim, Hegel explica de forma original que essa objetividade que é posta diante do sujeito como algo já dado, imediato como um limite, na verdade é algo posto pela própria atividade do conceito. Em outras palavras, é o conceito, o conceituar, a atividade do sujeito que opera a própria objetividade a partir de si mesma. Ele guarda em si a unidade e a diferença, subjetividade e a objetividade como etapas de um processo que lentamente mantém e supera as diferenças (aufhebung). Quando o conceito, através deste movimento gradativo de conservação e superação de momentos opostos (dialética) supera a parcialidade destes (subjetivo/objetivo), ele se torna ideia, a verdadeira efetividade, o conceito em si e para si.
Por essa razão Hegel entende que o verdadeiro é o todo que resulta do processo e não os seus momentos anteriores, que são somente etapas na construção do concreto. A ideia, por se constituir pelo encadeamento de seus momentos que se medeiam mutuamente, é sempre algo processual, gradativo, construído pacientemente. Justamente quando a subjetividade compreende que o que está diante de si, a natureza, é também algo subjetivo, posto pelo pensamento, ela se compreende como espírito. Espírito, para Hegel, é o resultado desse movimento do pensamento que interioriza o que está posto de forma contraposta a ele. Como diz o próprio Hegel na Enciclopédia das Ciências Filosóficas, “o espírito nega a exterioridade da natureza, assimila a si a natureza e por isso a idealiza”, isto é, o movimento dialético é um movimento que eleva as oposições à concretude do todo, da ideia.
Serviço de Comunicação Social: Como o pensamento hegeliano se mantém atual?
Raphael Feliciano: O pensamento de Hegel se mantém atual por ter sido a base de pensamentos e filosofias extremamente influentes contemporaneamente. É comum que muitos dos mais influentes pensadores tenham sido diretamente influenciados por Hegel ou tiveram, em algum momento, que prestar contas com pressupostos de sua filosofia. Um bom exemplo é Marx e todo o pensamento que deriva dele, baseado em larga medida na dialética hegeliana. O próprio Marx dedicou obra para discutir temas do pensamento hegeliano como a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel. Nesta lista podemos incluir Schelling, Feuerbach, Kierkegaard, Heidegger dentre outros.
O grande mérito de Hegel foi ter tentado pensar no todo como dotado de racionalidade, rompendo com uma forma de se pensar centrada somente no ponto de vista do indivíduo. Sua aposta na razão ainda é desafiadora na medida em que rejeita todo tipo de imediatismo e traz o entendimento de a racionalidade deve ser algo trabalhado com paciência considerando sempre a contrariedade e a racionalidade que emerge do conflito, pois só esse lento erigir através dos obstáculos pode de fato surgir algo que seja verdadeiro e efetivo.
Essa posição fez com que fosse relevante em vários assuntos, e é possível citar, por exemplo, a questão do fim da obra de arte no campo da estética ou sua interpretação muito debatida sobre o “fim da história”. No campo da religião, suscitou intenso debate acerca do caráter histórico do cristianismo (que fez surgir entre seus seguidores as chamadas “esquerda e direita hegeliana”).
Contudo, o campo do direito e da ética talvez seja um dos campos em que Hegel revela-se mais fecundo nos dias de hoje. Sua concepção de totalidade, nessa área, que rejeita uma ordem social baseada no modelo dos regulamentos e contratos e se esforça por pensar o direito como realização da liberdade, como eticidade, acaba por destacar o papel da política e da razão que existe na contradição dos espaços públicos, posição que aproxima Hegel de autores que rejeitam a autonomia completa do direito em relação à política. No campo das relações internacionais, por exemplo, isso resulta em uma relativização da legitimidade do direito internacional, já que entre os estados soberanos predominam soluções políticas mais do que os regulamentos na resolução de conflitos, em uma posição que contemporaneamente se chama “realista”. Isso se dá especialmente porque ele entendia que os estados sempre se comportam como totalidades autônomas diante de uns dos outros, dado que não há nenhuma espécie de tribunal ou poder comum a todos eles que seja capaz de aplicar um direito a partes conflitantes.
Por todos esses motivos Hegel é atual. Concordando ou não com seu grandioso projeto filosófico, é impossível ignorá-lo.
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Raphael Feliciano é graduado e mestre em Filosofia pela FFLCH. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Filosofia da Religião e Estética. Sua dissertação A religião como representação na filosofia de Hegel: os manuscritos de 1821 está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.